terça-feira, 25 de abril de 2017

Alan Smithee: o cineasta das mil faces


Ele dirigiu mais de 31 longas-metragens de ficção para cinema e outros 34 para a televisão, sempre transitando por diversos gêneros cinematográficos. Dirigiu também documentários, curtas e vídeos. Atuou como roteirista, produziu e assinou várias funções técnicas com editor, diretor de fotografia, compositor e diretor de arte. A versatilidade é sua marca registrada. Seu nome é Alan Smithee, mas .... sempre tem um mas. Este cineasta completo nunca concedeu entrevistas, foge de qualquer exposição midiática e não se conhece sequer sua fisionomia. Alan Smithee poderia ser considerado uma espécie "prima donna" inatingível, à la Terrence Malick, não fosse por um detalhe muito peculiar: esta pessoa não existe. É um fantasma.


Vamos aos fatos.

"Nascido" em 1968, já no ano seguinte o precoce e prolífico cineasta assinava sua primeira direção para o cinema, o western Só Matando (Death of a Gunfighter). Na verdade a direção foi de Don Siegel, mas o crédito ficou com Alan Smithee. Explica-se: Alan Smithee é apenas um pseudônimo criado pela DGA (associação dos diretores norte-americanos) para assinar a direção (e outras funções) de filmes renegados por seus verdadeiros realizadores, pelas mais diversas razões: falta de controle criativo, montagens não autorizadas, vergonha ou constrangimento pelo produto final. O nome "Alan Smithee" é um anagrama para a expressão "the alias men", algo como "o homem apelido".


Na medida em que Smithee assina apenas projetos renunciados, pode-se imaginar a quantidade de "abacaxis" que fazem parte de sua filmografia. Com uma relação interminável de tranqueiras associadas ao seu nome pode-se considerar Alan Smithhe um realizador que se habilita a roubar de Ed Wood o título de "pior cineasta de todos os tempos".

Ao se ver obrigada a adotar a solução de um "realizador virtual", Hollywood acabou, por tabela, criando a figura de um diretor ideal, submisso, controlado, que não contesta, acata as regras da indústria e se submete aos desmandos dos chefões dos estúdios. É o cinema industrial em sua essência mais cruel.


Muitos diretores conhecidos já recorreram aos "serviços" de Alan Smithee, entre eles Dennis Hopper, Richard C. Sarafian, Arthur Hiller, Rick Rosenthal, Sam Raimi e David Lynch. Como destaques (se é que podemos falar assim) da filmografia de Smithee pode-se citar a continuação Os Pássaros II (1994 - TV); Atraída Pelo Perigo (1990), com Jodie Foster no elenco, e Duna (versão alternativa lançada em 2006).



Essa história tão curiosa de Hollywood poderia muito bem dar um filme. E deu mesmo. Em 1997 foi lançada a sátira Hollywood Muito Além das Câmeras, (An Alan Smithee Film: Burn, Hollywood, Burn) que conta a história de um diretor de cinema chamado Alan Smithee (interpretado por Eric Idle, do Monty Python) que não pode renegar seu filme justamente porque possui o mesmo nome do diretor "coringa" do pseudônimo criado pela DGA. Então, ele decide roubar os negativos do próprio filme para destruí-los. Mas, olha só que ironia, Hollywood Muito Além das Câmeras é tão, mas tão ruim, que o próprio diretor Arthur Hiller decidiu utilizar o pseudônimo de Smithee para assinar o desastre. E como desgraça pouca é bobagem, para desespero de todos os envolvidos o filme acabou ganhando cinco Framboesas de Ouro naquele ano. A partir deste caso, a própria DGA passou a adotar outros pseudônimos para assinar filmes fracassados. Mas o mito Alan Smithee segue assombrando os cineastas que pisam na bola.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em agosto de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Os 100 melhores do Cinema Brasileiro


Ainda que sujeitas a críticas, suspeitas, falhas, omissões e injustiças, o fato é que as listas são questionáveis já por definição. Ao ambicionar o ordenamento do juízo de valores, sejam eles positivos ou negativos, uma lista necessariamente sempre lida com o imponderável elemento subjetivo de uma avaliação particular. No entanto, ainda assim, não há como negar o irresistível apelo que elas, as listas, provocam. Ao concentrar uma imensa carga de informação, as listas fazem todo sentido nesses tempos de avassaladores volumes de conteúdos dispersos (por vezes desconexos) a que somos submetidos diariamente. Separar o joio do trigo é uma tarefa que devemos nos impor diariamente. E, convenhamos, uma lista facilita demais este trabalho.

Dito isto, vai uma ótima notícia para os cinéfilos interessados no cinema brasileiro. Os principais críticos de cinema do Brasil consolidaram uma oportuna e necessária lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. A grande virtude da iniciativa é a diversidade da avaliação, que não ficou limitada ao campo apenas dos longas-metragens e nem restrito ao universo dos filmes de ficção. Tratou-se da produção brasileira como um todo, independente de gênero, forma ou bitola. Some-se a esta amplitude a origem dos votantes. Participaram críticos de cinema de todas as regiões do país, todos eles integrantes da “Associação Brasileira de Críticos de Cinema” (Abraccine).


O resultado final da votação resultou no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros (Letramento) que publicou textos críticos/analíticos de cada um dos filmes, contextualizando sua origem, seu valor fílmico e sua importância na história da produção cinematográfica do Brasil em seus 120 anos de existência. O critério de redação dos textos foi simples: cada filme, um crítico. O resultado é um amplo panorama do cinema brasileiro onde constata-se a consolidação de alguns títulos unanimemente reconhecidos, ao lado de outros tantos que ganham uma projeção que não tiveram na época de seu lançamento e também alguns resgates históricos de obras que pareciam relegadas ao esquecimento.


Ao percorrer a lista, desde o 1º colocado (Limite, de Mário Peixoto) até o 100º filme (Meteorango Kid, Herói Intergalático, de André Luiz Oliveira), através das excelentes críticas, o leitor pode ficar certo de estar fazendo uma incrível viagem pelo o que de melhor o cinema brasileiro já produziu. Ainda que, com as ressalvas já feitas, uma lista sempre ofereça motivos para eventuais questionamentos justamente por não ser resultado de um experimento científico, mas sim fruto de uma reflexão específica, momentânea, sujeita ao tempo e espaço onde nascem. Assim, por este viés, entende-se que cerca de um terço dos filmes selecionados foram produzidos nos últimos 20 anos.


Claramente isto representa uma questão geracional que se manifesta pela predominância de uma grande presença de críticos mais jovens em detrimento da “velha guarda” da crítica brasileira. Mas, absolutamente isto não invalida nem contamina de forma injusta e comprometedora o resultado final da votação. É louvável e muito bem-vinda esta iniciativa e sua construção, ao longo do tempo, certamente pode ser revista, ajustada e reavaliada. Parabéns à Abraccine pela iniciativa e aos críticos pela virtuosa e abrangente seleção e seus fantásticos textos. O cinema brasileiro agradece. E aos cinéfilos, um recado final: vejam os filmes e leiam o livro.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

domingo, 9 de abril de 2017

O filme proibido de Jerry Lewis


No filme Crimes e Pecados, de Woody Allen, em dado momento o personagem de Alan Alda responde a uma questão crucial: "o que é comédia?" Segundo sua explicação, "comédia é tragédia somada ao tempo". Ou seja, decorrido algum tempo, qualquer tragédia pode ser transformada em comédia. Exemplo prosaico e elementar: o cidadão escorrega numa casca de banana, cai e quebra a perna. Fazer piada e rir disto no ato é constrangedor e inadequado. Mas, dê tempo ao tempo, e chegará o momento em que até a vítima será capaz de rir de si próprio. Essa é a magia. É necessário se distanciar da dor para rir.

A regra parece simples na teoria. Mas na realidade, quanto tempo é necessário para rirmos de uma tragédia? É difícil saber. Que o diga o comediante Jerry Lewis que experimentou fazer comédia com um tema difícil, como o extermínio de judeus nos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. As torturas da Inquisição na Idade Média já foram motivo de gags pelo grupo Monty Python, a Guerra da Coréia já foi esculachada por Robert Altman em Mash e a própria Segunda Guerra já foi inspiração para uma comédia semelhante como A Vida é Bela de Roberto Benigni. Mas, parece que Jerry Lewis foi um pouco além em seu filme proibido: as vítimas do extermínio eram crianças!


The Day the Clown Cried (O Dia em que o Palhaço Chorou), de 1972, é o filme maldito de Jerry Lewis, jamais lançado. Na verdade o filme nunca foi devidamente finalizado pelo diretor, o próprio Lewis. A morbidez do tema foi demais em sua época (e talvez ainda seja), e o filme tornou-se um daqueles mistérios a que poucos tiveram acesso ao material. O realizador retirou as filmagens de circulação, proibiu seu acesso e decidiu mante-la longe dos olhos do público. Apenas a sinopse já dá ideia das razões da proibição: um palhaço diverte crianças judias em seu caminho para as câmaras de gás nos campos de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial.


A abordagem totalmente inesperada para um comediante popular como Jerry Lewis, cuja filmografia jamais faria supor algo sequer parecido, surpreendeu meio mundo. Parecia totalmente inapropriado um filme com esta temática se considerarmos que o artista sempre foi reconhecido como um artista voltado para ações humanitárias em benefício das crianças, particularmente por seu famoso programa anual de TV "Jerry Lewis Telethon", que objetiva arrecadar recursos para crianças com distrofia muscular.


Recentemente foi divulgado que a Biblioteca do Congresso norte-americano recebeu o espólio do filme para seus arquivos, doados pelo próprio Jerry Lewis, que autorizou a liberação para o público somente em 2024

Algumas cenas de bastidores das filmagens de The Day the Clown Cried estão disponíveis no YouTube: goo.gl/aqqjkG

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em julho de 2016)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 31 de março de 2017

"Ponto Zero": longa jornada noite adentro


O período da puberdade é um momento de descobertas e perda da inocência, diante do mundo adulto que se descortina. A riqueza dos sentimentos intensos e contraditórios que esta fase provoca é fonte de inspiração para inúmeros filmes que narram o rito de passagem. Quando este caldeirão de anseios evocados pela chegada da adolescência não é tratado como um banal clichê, mas colocado a serviço de uma narrativa analítica, tem-se um encontro que tangencia o encantamento de uma poesia. É isto que nos oferece o filme Ponto Zero, dirigido por José Pedro Goulart.

Primeira experiência do realizador no formato de longa-metragem, Ponto Zero conta o drama de um núcleo familiar de quatro pessoas em desagregação, uma bolha de sentimentos represados prestes a explodir. Pai ausente, mãe fragilizada, filha indiferente e filho dividido. O protagonista, condutor da narrativa, é o adolescente Ênio (Sandro Aliprandini) que precisa sintonizar seus sentimentos de acordo com a dureza da realidade que o cerca. Em meio a um inevitável processo de separação dos pais o jovem busca restabelecer o equilíbrio emocional justamente no momento mais emocionalmente instável do ser humano: a passagem da adolescência para a vida adulta. Os hormônios em ebulição convivem com um mundo que conspira, e o sentimento de incompletude é uma fatalidade incontornável.


Oprimido, retraído, enclausurado em si próprio, o jovem não verbaliza seus sentimentos nem se rebela de forma efetiva ao mundo que o sufoca. A válvula de escape para manter a sanidade é o vasto universo interior do personagem. Dos silêncios externos se constrói uma sinfonia interior. A intensa realidade introspectiva de Ênio se transfigura numa realidade distorcida, utópica e idealizada. Neste aspecto, o filme de José Pedro Goulart assume contornos de uma experiência expressionista, quando a subjetividade do personagem se projeta para a realidade circundante.

A trajetória errante do jovem protagonista se configura em uma odisseia pessoal com a qual eventualmente nos identificamos ou, alternativamente, apenas testemunhamos. Mas sempre com grande interesse e nunca com passividade. Tecnicamente exuberante e sedutor, Ponto Zero é uma experiência sensorial na qual a plateia deve deixar-se levar, sob pena de não extrair na plenitude sua essência. 
(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em junho de 2016)
 Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 23 de março de 2017

O retorno de Sônia Braga


O Festival de Cannes de 2016 ficará marcado na história pelos brasileiros por um fato de repercussão internacional: o protesto da equipe do filme Aquarius no tapete vermelho da Croisette. Mas à esta edição do Festival deverá também ser creditado o bem-vindo resgate de uma importante personalidade do cinema brasileiro, nossa maior estrela internacional em atividade – Sônia Braga. Após alguns anos de relativo afastamento do protagonismo e das manchetes, a atriz recebeu o reconhecimento de uma verdadeira estrela que sempre foi. Seu elogiado desempenho em Aquarius foi apontado, na ocasião, como um dos favoritos ao prêmio de interpretação do Festival, que acabou agraciando a atriz filipina Jaclyn Jose do filme Ma’Rosa.


Neste momento tão especial na carreira da atriz, vale a pena relembrar um pouco de sua trajetória. Natural de Maringá (PR), Sônia Braga, ainda adolescente, iniciou a vida artística pelo teatro em pequenas montagens. Em 1970 participou da primeira montagem brasileira da icônica peça Hair, onde causou escândalo por aparecer nua em cena. Neste mesmo ano participou da sua primeira novela na TV, Irmãos Coragem, e atingiu o auge de popularidade em 1975 quando estrelou a novela Gabriela.


O cinema entrou na vida de Sônia Braga um pouco antes. Foi em 1968, quando a atriz ganhou um pequeno papel no clássico O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. O primeiro grande papel de Sônia Braga no cinema aconteceu oito anos depois. E que papel. Ela foi a Dona Flor no grande sucesso e recordista de bilheteria do cinema brasileiro: Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigido por Bruno Barreto. Dois anos depois fez A Dama do Lotação, que filme que a tornou o maior símbolo sexual brasileiro dos anos 70. No início da década de 80 faz Eu Te Amo, sob a direção de Arnaldo Jabor, papel com o qual conquista o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado.


Poucos anos depois vive uma primeira experiência internacional ao participar da adaptação cinematográfica Gabriela (1983), ao lado do astro italiano Marcello Mastroianni. O ano de 1985 marcou uma virada na carreira da atriz. Ao estrelar a coprodução Brasil-EUA O Beijo da Mulher Aranha, dirigida por Hector Babenco, Sônia Braga atraiu a atenção da imprensa internacional e dos produtores norte-americanos. Aproveitando o momento favorável, Sônia Braga decide tentar carreira internacional e se transfere para os Estados Unidos.


Em 1987 se torna a primeira brasileira a apresentar uma categoria na cerimônia de entrega do Oscar, ao lado de Michael Douglas. E logo no ano seguinte inicia de fato sua carreira em Hollywood ao fazer par romântico com Robert Redford no drama Rebelião em Milagro, papel que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro. Logo em seguida participa de Rookie – Um Profissional do Perigo, filme policial de ação dirigido e estrelado por Clint Eastwood.

Uma década depois volta ao Brasil e mergulha mais uma vez no universo de Jorge Amado, protagonizando a versão cinematográfica Tieta do Agreste (1996), dirigida por Cacá Diégues. No seu retorno aos EUA Sônia Braga participa de muitos telefilmes (de baixa repercussão e interesse) e episódios em várias séries de TV (Alias; C.S.I.; Sex and the City; Law & Order; Ghost Whisperer; Desperate Housewifes e outras).


Agora, Sonia Braga vive um comeback graças à Aquarius e tudo indica que retomará sua carreira em grande estilo.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em maio de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 13 de março de 2017

Bruce Lee: o mito do dragão vive


No próximo dia 20 de julho se completam 44 anos da morte de Bruce Lee. Maior ícone global dos filmes de artes marciais, reverenciado igualmente no Ocidente e Oriente, o astro sino-americano (ele possui dupla nacionalidade, americana e chinesa) foi o grande responsável pela mudança de status da imensa produção de filmes de ação produzidos em Hong Kong na virada dos anos 60 para os 70, genericamente chamados à época no Brasil como “filmes de kung fu”. Figura de grande apelo popular, à Bruce Lee também pode ser atribuído o crédito de ter contribuído para mudar os clichês da representação dos asiáticos em geral no cinema, particularmente em Hollywood. Havia enfim surgido um protagonista capaz de atrair a atenção das plateias além-fronteiras da China / Hong Kong, com imenso potencial nas bilheterias.

A carreira de Bruce Lee foi curta. Foram apenas quatro longas-metragens e um quinto filme incompleto, posteriormente finalizado com sequências pré-filmadas e a inclusão de um ator substituto, levemente semelhante ao astro. Bruce Lee teve pouco tempo para saborear as glórias do estrelato. Seus primeiros três filmes foram realmente sucessos mundiais somente após sua morte em 1973.


Mas Lee não fez apenas cinema. Começou, na verdade, com pequenas participações na TV americana. Sim, é fato que apareceu antes em pequenas produções chinesas, ainda muito jovem, inclusive quando ainda era bebê. Seus pais, ligados ao teatro operístico cantonês, foram seu primeiro contato com o mundo das artes. Nascido em São Francisco (EUA), ainda criança voltou com a família para Hong Kong. Na adolescência retornou aos EUA para estudar e buscar uma chance com ator. Já praticante de kung fu, foi “descoberto” numa apresentação de artes marciais pelo produtor William Dozier (da série de TV Batman), que o contratou para o papel de Kato no seriado Besouro Verde, que durou apenas uma temporada (1966). Após outras pequenas aparições em diversas séries de TV da época, Bruce Lee desenvolveu o conceito de um novo seriado, apresentou o projeto, mas a ideia não foi adiante. Desiludido e insatisfeito com sua trajetória como ator nos EUA, Bruce Lee retorna para Hong Kong.

“Tranquilo e infalível como Bruce Lee”
Caetano Veloso (canção “Um Índio”)

Pouco tempo depois, a Warner Bros. lançaria o seriado Kung Fu, estrelado por David Carradine. Consta que este projeto foi uma adaptação, não creditada, da ideia anteriormente apresentada por Bruce Lee. Mas, nem tudo estava perdido. Em seu novo período em Hong Kong acabou descobrindo que o seriado Besouro Verde era um imenso sucesso nos Estados Unidos, onde seu nome ganhou destaque.


Este foi o momento de virada na carreira de Bruce Lee. Assinou contrato com o produtor Raymond Chow para estrelar dois longas-metragens em Hong Kong, produzidos pela Golden Harvest. Os filmes quebraram todos os recordes de bilheteria no mercado chinês. De olho na mina de ouro que surgia, a Golden Harvest propõe a produção de mais outros dois filmes, desta vez com Bruce Lee atuando no controle criativo das produções, incluindo a direção.

Em 1972, quando estava em plena filmagem de Jogo da Morte, a produção foi interrompida para que Bruce Lee pudesse atender uma oferta irresistível da Warner para estrelar um filme nos Estados Unidos, o famoso Operação Dragão. Esta foi a produção que cristalizou a imagem de Bruce Lee no imaginário coletivo, transformando-o em astro incontestável. O filme foi um marco e virou febre mundial.

Com a morte do astro no ano seguinte, as filmagens de Jogo da Morte ficaram incompletas. Então, entra em cena a primeira das inúmeras picaretagens que marcaram o legado de Bruce Lee. O diretor Robert Clouse e o produtor Raymond Chow decidem completar o projeto utilizando um ator para substituir o astro no restante das filmagens. Foram inclusive utilizadas cenas reais do funeral de Bruce Lee, inseridas marotamente no roteiro que foi reescrito para se ajustar às novas condições. O filme acabou virando uma farsa constrangedora. Porém, o nome de Bruce Lee era tão forte que o filme ainda assim acabou sendo sucesso. Sem dúvida por um misto de curiosidade mórbida e uma maciça campanha de marketing que certamente ludibriou alguns desatentos. O maior mérito da produção foi eternizar o icônico macacão amarelo utilizado por Bruce Lee, que depois seria homenageado por Quentin Tarantino em Kill Bill – Volume 1, que mostra Uma Thurmann trajando o célebre figurino.



“O Dragão Chinês” (The Big Boss, 1971) – Direção: Lo Wei
Primeiro papel de destaque de Bruce Lee no cinema. Ele interpreta um jovem que passa a morar com os primos e trabalha em uma fábrica de gelo. A fábrica é uma empresa de fachada, cuja verdadeira atuação é o tráfico de drogas. Com o sumiço de alguns familiares, o personagem de Bruce Lee confronta o poderoso chefão da máfia local.

Produção modesta, beirando o amadorismo, ganha destaque pelas eficientes sequências de lutas dirigidas com o habitual talento pelo especialista Lo Wei. Bruce Lee, ainda que seu personagem seja frágil e vacilante em grande parte da história, já revela a empatia que despertaria plenamente em trabalhos futuros.



“A Fúria do Dragão” (Fist of Fury, 1972) – Direção: Lo Wei
Filme de época, baseado em fatos reais, que reconstitui livremente os fatos da morte de um mestre de famosa escola chinesa de artes marciais. Bruce Lee faz o papel de um antigo aluno da escola que retorna para os funerais de seu professor. Logo surgem suspeitas de que ele foi assassinado pelos rivais da escola concorrente (de tradição japonesa). No roteiro há claramente um subtexto que discute a relação belicosa entre chineses e os invasores japoneses que submeteram a China aos seus domínios territoriais.

Aqui Bruce Lee já apresenta pleno domínio da arte cinematográfica. Coreografias elaboradas e sequências memoráveis fazem deste filme a primeira produção a revelar a ascensão irresistível do futuro astro.



“O Voo do Dragão” (The Way of the Dragon, 1972) – Direção: Bruce Lee
Primeiro filme dirigido e estrelado por Bruce Lee. Fortemente influenciado pelo cinema de gênero de Hollywood, o ator/diretor resolveu imprimir um tom de comédia. Não foi totalmente feliz. Jackie Chan faria bem melhor anos depois.

A história se passa em Roma, para onde o personagem de Bruce Lee viaja para ajudar o tio e a prima nos negócios do restaurante da família. O local é alvo do interesse de uma gangue mafiosa. Para enfrentar a ameaça Bruce Lee fará uso da sua mortal habilidade no Kung Fu.

Destaque memorável de O Voo do Dragão, a luta final acontece em pleno Colisseu de Roma, onde Bruce Lee enfrenta ninguém mais, ninguém menos do que Chuck Norris (sim, ele mesmo!).



“Operação Dragão” (Enter the Dragon, 1973) – Direção: Robert Clouse
Primeira e única participação de Bruce Lee em uma produção de Hollywood. Típico produto de uma época, reflete forte influência dos filmes de James Bond do início dos anos 70. Desta vez Bruce Lee incorpora a figura de um agente secreto, recrutado por organização governamental, que recebe missão de investigar um torneio de lutas marciais, organizado por um inescrupuloso assassino, líder de um rentável negócio de venda ilegal de ópio.

Por tratar-se de um torneio de lutas, não faltam razões para Bruce Lee exibir suas habilidades, mas o roteiro investe mais numa narrativa de suspense e ação, mais ao gosto das plateias ocidentais. Porém, mesmo fora de seu registro (e cenário chinês), Bruce Lee se sai muito bem no ambiente urbano ocidental e convence plenamente como herói da vez.



“Jogo da Morte” (Game of Death, 1978) – Direção: Robert Clouse (e Bruce Lee – não creditado)
Bem, chegamos ao não-filme de Bruce Lee.
Por razões óbvias, um roteiro tortuoso tenta dar sentido à história de um notório lutador de artes marciais que passa a ser assediado para se incorporar a uma organização criminosa. Vítima de um atentado criminoso, o lutador simula sua própria morte e retorna para fazer justiça.

Misturando cenas reais de Bruce Lee com outras filmadas com um “ator” substituto, o filme é uma tremenda colcha de retalhos que tenta fazer algum sentido. Vale apenas pela curiosidade. E pela cara de pau dos envolvidos.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em abril de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 2 de março de 2017

“Amy”: a fama que consome


Premiado em 2016 com Oscar da categoria, o documentário Amy refaz a trajetória do surgimento, ascensão, glória, decadência e prematuro desaparecimento da cantora e compositora britânica Amy Winehouse, falecida aos míticos 27 anos, em 2011.

Nesses tempos de elevada exposição midiática a qual estamos expostos, a disponibilidade do registro digital é uma realidade onipresente. Ainda assim, é surpreendente a existência de tantas gravações caseiras e semiprofissionais da trajetória de Amy, seja no âmbito privado, familiar, seja no registro histórico dos primeiros momentos da sua meteórica carreira.

Convencional em seu formato, mas envolvente pela personagem retratada, o documentário foi dirigido por Asif Kapadia, o mesmo realizador da cinebiografia Senna. Consta que a próxima empreitada de Kapadia será um filme sobre Maradona, reafirmando assim sua vocação para ser o documentarista oficial (!) dos famosos.


“Você sempre machuca quem você ama”

Celebridade involuntária e relutante, Amy Winehouse mostrou-se desde cedo afetada pela excessiva exposição da sua vida. Artista movida pela paixão, um talento espontâneo, Amy lutou a vida inteira contra a fama que a fragilizava e consumia.

Ao retratar de forma detalhista a recusa de Amy Winehouse ao culto às celebridades, o filme de Kapadia acaba por desenhar um cenário crítico sobre este universo que suga e vampiriza suas vítimas-alvo. As fraquezas emocionais de um artista podem facilmente ser potencializadas pelo assédio invasivo. E Amy Winehouse foi uma dessas vítimas, que se refugiou no álcool e drogas, até seu trágico fim.


“De certa forma o amor está me matando”

Documentários sobre celebridades já falecidas não trazem surpresas sobre o final. O interesse está, portanto, na trajetória, nos fatos, razões e motivações que determinaram o caminho. E Amy é suficientemente rico na construção de sua narrativa para atrair um olhar mais atento do espectador. Em destaque a comovente e sincera sequência com o cantor Tony Bennett (seu ídolo), com quem Amy chegou a gravar um histórico dueto, e também o momento emocionante do anuncio da melhor “Gravação do Ano” no Grammy de 2008, “Rehab”, da própria Amy.


Ao celebrar e resgatar a vida e a música de Amy Winehouse, o documentário, que está disponível na Netflix, é honesto, equilibrado e contundente, sem relativizar a conduta, por vezes no mínimo questionável, da própria artista que, voluntária ou involuntariamente, acabou por sabotar sua curta carreira. Amy agrada aos fãs e desperta o interesse nos curiosos.

(Publicado originalmente no portal “Movi+” em março de 2016)

Jorge Ghiorzi