domingo, 14 de janeiro de 2024

Priscilla e Leonard: do rei ao maestro

 


O final da temporada cinematográfica de 2023 e o início da temporada 2024 foi marcado pelo lançamento de duas cinebiografias de figuras ilustres da música norte-americana. O maestro e compositor Leonard Bernstein, autor das composições do musical West Side Story (adaptada para o cinema com o título de Amor Sublime Amor, no Brasil), e Priscilla Presley, ex-esposa de Elvis, chegaram aos cinemas em longas-metragens onde o único ponto comum é o universo da música. Pois as abordagens e resultados não poderiam ser mais distintos.

Maestro se apresenta como um filme de flagrantes pretensões autorais, um verdadeiro tour de force de Bradley Cooper, aqui fazendo dupla jornada como ator e diretor, em sua segunda obra como realizador. Já Priscilla, que traz na direção a assinatura de Sofia Coppola, mostra episódios do atribulado relacionamento de Priscilla e Elvis Presley, desde o primeiro encontro até o rompimento.

Há, por definição, uma sensível diferença entre os dois filmes. Maestro se apresenta menos como uma cinebiografia e mais como um perfil distanciado e interpretativo do artista, onde o papel de sua esposa ganha um genuíno papel de protagonismo (interpretado magnificamente por Carey Mulligan). Por sua vez, o filme de Sofia Coppola tem uma proposta mais, digamos, convencional, pois desenvolve a trajetória da protagonista de forma mais efetivamente biográfica, quase episódica, mas sempre com um olhar comprometido, afetuoso e compreensivo, revelador da identificação feminina e feminista.

Curiosamente, as duas obras, oriundas do universo da música, prescindem absolutamente da música para narrar suas histórias. As composições clássicas de Leonard Bernstein e os rocks irresistíveis de Elvis Presley são praticamente sonegados ao público, pois não passam de coadjuvantes com pouco tempo de tela. Em poucas e pontuais sequências marcam presença, mas longe, muito longe, de saciar a expectativa da audiência. O que, convenhamos, dado o tamanho dos artistas, é uma frustração inicial. Faz falta? Faz. Compromete a experiência? Absolutamente não.


Após a bem sucedida versão século 21 de Nasce Uma Estrela (2018) o ator Bradley Cooper encontrou sua nova persona cinematográfica e se impôs uma tarefa difícil: achar um lugar ao sol como realizador de prestígio. Maestro é sua aposta para conquistar este lugar. Que virada de mesa. Da comédia Se Beber, Não Case! Bradley chega, com Maestro, ao drama (dilema?) de “se casar, não beba”. Tudo em seu filme gira em torno do seu casamento, da paixão arrebatadora com a amiga / amante / esposa Felicia até o ato final da história do casal. Por tratar-se de um melodrama, com toques biográficos, Maestro é, em essência, um filme sobre sua mulher, e não do artista como criador. É desta perspectiva que vem a força do protagonismo de Felicia como contraponto e eventualmente musa inspiradora de Leonard Bernstein.


Neste aspecto há que se louvar o desprendimento de Bradley Cooper que generosamente abre espaço para sua parceira de elenco brilhar. Ainda que, nos momentos onde o foco narrativo é exclusivamente o artista, a interpretação do ator exija para si muitos holofotes (metafóricos e literais). O resultado, no mais das vezes, é um desempenho elogiável, mesmo que aqui e ali demonstre um que de overacting e histrionismo. Um exemplo: a longa sequência do concerto na catedral, com Bradley reproduzindo com excelência os gestos exagerados e eloquentes de Bernstein com a batuta à frente da orquestra. O melhor momento do ator/diretor representando o maestro é justamente este. Pura entrega, sem falas, apenas expressão corporal.


O casamento também é o centro das atenções de Priscilla. Um casamento imperfeito que iniciou de maneira um tanto bizarra quando Elvis prestava serviço militar em uma base norte-americana na Alemanha. A bizarrice não está no cenário, mas na pouca idade de Priscilla quando começaram a namorar (sem sexo, segundo Elvis). Priscilla tinha 14 anos e Elvis 24. Algo impensável para um artista de sucesso nos dias de hoje. Além da pouca idade, Priscilla enfrentou ainda outro desafio. Naquela época (final dos anos 50) Elvis era o ídolo da música mais desejado pelas mulheres, de todas as idades. Então, a solução foi “escondê-la” dos olhos do público, segundo orientação do empresário Coronel Tom Parker que comandava a carreira de Elvis com mão de ferro. Priscilla ficou oculta da vida pública do rei do rock nos primeiros anos de relacionamento, vivendo na mansão de Graceland em Memphis (Tennessee) como uma princesa aprisionada numa gaiola dourada.


Esta ocultação da mulher de Elvis da vida pública é o objeto de interesse de Sofia Coppola, que adaptou a autobiografia de Priscilla Presley, lançada em 1985. Seu filme mostra o dilema de uma jovem inexperiente que aceita abrir mão de sua individualidade em nome do amor por Elvis. O arco narrativo de Priscilla percorre a jornada da protagonista, da perda da inocência até a tomada de consciência e o amadurecimento. De quebra mostra um lado B de Elvis raramente exposto: um homem inseguro, infantil e autoritário (com a esposa). Ou seja, o casamento de Elvis e Priscilla estava longe de ser um conto de fadas.


Já quanto ao filme, Priscilla está bem distante de ser um trabalho memorável na filmografia de Sofia Coppola. O filme se ressente de sua estrutura absolutamente acadêmica e episódica (conforme já citado) que enfraquece a força narrativa do longa ao buscar o realismo. Nos identificamos com o contexto histórico, compactuamos com a tragédia pessoal de Priscilla, mas falta paixão. Desta vez a escolha de Sofia deixou a desejar.

Assista ao trailer: Maestro e Priscilla


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O Judoka: em busca do filme perdido

Os 50 anos da pioneira adaptação de quadrinhos brasileira 

Neste ano de 2023 completaram-se 50 anos do lançamento do filme O Judoka, longa-metragem brasileiro que adaptou o personagem das histórias em quadrinhos para o cinema. O personagem Judoka, lançado em uma publicação mensal da EBAL (Editora Brasil-América) em 1969, foi apresentado à época como o “primeiro herói genuinamente brasileiro”. Aquele período foi marcado pela chegada às bancas de revista brasileiras dos super-heróis da Marvel, como Homem-de-Ferro, Thor, Hulk, Namor e Capitão América. Este último parece ter sido uma forte referência para o uniforme utilizado pelo Judoka. Assim como o Capitão América utiliza as cores da bandeira norte-americana, o nosso herói nacional utiliza o verde e amarelo em sua vestimenta (lembrando que as cores só eram percebidas nas capas coloridas, pois as páginas do miolo eram impressas em preto e branco).

Capa da edição nº 1 da revista em quadrinhos (1969) e o cartaz do filme (1973) 

Lançado em 1973, o filme O Judoka, dirigido por Marcelo Ramos Motta, possui inegável valor histórico para a produção cinematográfica brasileira, seja pelo ineditismo e ousadia da proposta, seja pelo mito que se criou em torno do longa-metragem. Naquele período inicial dos anos 70 as adaptações de histórias em quadrinhos eram desconsideradas pela indústria. O primeiro movimento realmente efetivo, com a força dos grandes estúdios de Hollywood, foi a adaptação de Superman, dirigida por Richard Donner, em 1978. O êxito da produção despertou o interesse e alavancou uma série de outras produções baseadas nas HQs, até chegarmos ao domínio absoluto dos blockbusters da Marvel e DC que tomou conta das salas de cinema na virada do século e perdura até hoje.

Portanto, dentro deste cenário, O Judoka, produzido cinco anos antes de Superman, foi precursor e visionário, ainda que involuntário e aleatório, devido à falta de continuidade e ao absoluto fracasso de bilheteria da produção. O filme ficou em cartaz apenas uma semana no Rio de Janeiro, onde foi produzido, As poucas cópias existentes (consta que eram apenas 7 ou 8) foram posteriormente exibidas, por alguns dias, nas maiores capitais do país: São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador. Após este breve período de exibição o filme saiu completamente de circulação, entrou no limbo e sumiu sem deixar vestígio. A ponto de muita gente duvidar que o filme um dia realmente existiu, que tudo havia sido um delírio coletivo, particularmente dos fãs da revista.


Uma lenda se formou em torno da produção, mas efetivamente o filme existiu. Algumas pessoas diretamente envolvidas ainda estão por aí para confirmar. O Judoka foi estrelado por Pedro Aguinaga, que à época detinha o título de “homem mais bonito do Brasil”, após vencer concurso promovido pelo programa de Flávio Cavalcanti. Figura bastante conhecida no jet set carioca, Pedrinho Aguinaga (como era chamado) chegou a atuar posteriormente com alguma regularidade no cinema brasileiro, em filmes como Os Trapalhões na Guerra dos Planetas e algumas produções de Neville D’Almeida: Rio Babilônia, Matou a Família e foi ao Cinema e Navalha na Carne.

O par romântico de Aguinaga em O Judoka foi interpretado pela atriz Elizângela (recentemente falecida) estrela em ascensão das telenovelas da Globo na época. Quando o filme foi lançado ela estava no elenco da novela Cavalo de Aço. Outro nome de destaque do elenco é Marcus Alvisi (como um dos vilões da história), que posteriormente fez carreira como professor de interpretação e diretor teatral.


Não consta que haja nenhuma cópia pública disponível do filme dirigido por Marcelo Ramos Motta. A versão integral de O Judoka é objeto de busca permanente de pesquisadores do cinema brasileiro. O filme, até o momento inacessível, assumiu a condição de objeto de culto, quase um “santo graal” para os cinéfilos em geral e fãs do personagem em particular.

A realização do longa-metragem foi a primeira e única experiência de direção de Marcelo Ramos Motta, uma figura um tanto misteriosa e enigmática do cinema nacional. Sua vida certamente daria um filme, como se diz usualmente para personagens que nos fascinam. O pouco que se sabe da trajetória de Marcelo se parece por demais com a biografia de um personagem de ficção. Não existem mais do que meia dúzia de fotos com o registro da imagem do realizador. Curiosamente, uma delas é justamente um lobby card de divulgação de O Judoka, onde ele aparece orientando Pedrinho Aguinaga na coreografia de uma luta.

No set de filmagem Marcelo Ramos Motta (no centro) passa instruções para Pedro Aguinaga

Nascido no Rio de Janeiro, na adolescência Marcelo falava fluentemente o inglês, sem sotaque, algo um tanto raro nos anos 50. Posteriormente morou por vários anos nos Estados Unidos. Por lá escreveu alguns contos, todos no gênero da ficção científica, e chegou ainda a desenvolver dois roteiros para o programa General Motors Theatre, uma série dramática de antologia da televisão canadense (ambos também de ficção científica). A obra em inglês de Marcelo Ramos Motta (contos e roteiros) foram publicadas em livro por uma pequena editora norte-americana.



Ao retornar ao Brasil, no início dos anos 60, Marcelo investiu na área que realmente era seu maior interesse: o ocultismo e o esoterismo. Publicou livros e artigos sobre o tema e filiou-se a grupos como a A.M.O.R.C. (Antiga e Mística Ordem Rosacruz) e a FRA (Fraternitas Rosicruciana Antiqua). Marcelo também propagava e divulgava as ideias do ocultista britânico Aleister Crowley. No círculo de amizades de Marcelo no Rio de Janeiro estavam dois futuros personagens de sucesso da música e da literatura brasileira: Raul Seixas e Paulo Coelho. Ambos foram inseridos no universo do esoterismo por influência de Marcelo Ramos Motta, que fazia as vezes de mentor de Raul e Paulo. A experiência coletiva do trio foi intensa e deu frutos também como parceria musical. Marcelo foi parceiro de composição em várias canções, inclusive “Tente Outra Vez”, sucesso lançado em 1975.

Especula-se que o propósito de Marcelo Ramos Motta ao realizar O Judoka (um personagem de sucesso naquele momento) era faturar uma boa bilheteria para futuramente utilizar os lucros para seus projetos relacionados à expansão das ordens místicas por todo o Brasil. O cinema propriamente nunca foi o interesse principal de Marcelo, mas um meio para angariar recursos. Porém, o projeto naufragou nas bilheterias. Jamais recuperou o investimento, inclusive deixou dívidas que o amarguraram pelo restante da vida. Marcelo Ramos Motta morreu em 1987, aos 56 anos. Não deixou herdeiros. Por esta razão, seus direitos autorais das canções foram repassados para as filhas de Raul Seixas. Uma informação equivocada que circula é de que Marcelo também teria dirigido A Estranha Hospedaria dos Prazeres (1976) em parceria com José Mojica Marins. Trata-se de um homônimo, que assina apenas como Marcelo Motta.



Como já citado, não existem cópias integrais de O Judoka. O que há, em estado muito precário, são cerca de 25 minutos do filme, preservados pela Cinemateca do MAM (RJ). Recentemente o pesquisador e restaurador Fábio Vellozo localizou uma lata com o trailer original, que foi recuperado e digitalizado. Um documento histórico que merece ser conhecido desta aventura da cinematografia brasileira.

Assista o trailer de O Judokahttps://vimeo.com/775177231


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Melhores Filmes de 2023

 


O ano cinematográfico de 2023 encerra com uma clara sinalização de esgotamento dos filmes de super-heróis, explorados até a última gota pela Marvel e DC por duas décadas. Uma série de fracassos e decepções ao longo ano propiciou uma sensível oxigenação do mercado exibidor, o que permitiu que a atenção do público fosse parcialmente direcionada às produções do que, na falta de termo mais adequado, poderíamos chamar de “cinema adulto” (com a devida ressalva).

O resultado efetivo deste movimento foi a maior circulação de produções internacionais (off-Hollywood) para além dos circuitos das plataformas de streaming. Ainda que timidamente, muitas destas produções foram efetivamente lançadas em Cinemas, tanto nas salas de Arte quanto nos grandes circuitos dos shopping centers.

Esta diversidade está representada na pluralidade das nacionalidades dos filmes desta lista com os destaques do ano: 3 norte-americanos, 2 brasileiros, 1 alemão, 1 japonês, 1 italiano, 1 francês e 1 sul-coreano.


Melhores Filmes de 2023 (ordem aleatória)


01 – AFIRE – Direção: Christian Petzold


02 – MONSTER – Direção: Kore-eda Hirokazu


03 – ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES – Direção: Martin Scorsese


04 – RETRATOS FANTASMAS – Direção: Kleber Mendonça Filho


05 – AS OITO MONTANHAS – Direção: Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch


06 – RESISTÊNCIA – Direção: Gareth Edwards


07 – OPPENHEIMER – Direção: Christopher Nolan


08 – ANATOMIA DE UMA QUEDA – Direção: Justine Triet


09 – PEDÁGIO – Direção: Carolina Markowicz


10 – DECISÃO DE PARTIR – Direção: Park Chan-Wook



Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ferrolho

 


por Leila Silveira

Neste momento onde todos filmes parecem prontos para serem mastigáveis, assisto Ferrolho. Um filme para assistir com atenção, qualquer piscada pode deixar passar a percepção, que não é dada de pronto.

O diretor, Alexandre Derlam, mergulhou nos sentidos do personagem, mostrando que é possível extravasar sem palavras e arrepiar no vazio, nas distâncias, no âmago do debate interior.

Para quê palavras se tem o olhar, beirando o pedido de socorro de quem assiste?

Cinema arte, quase poético, com boa atuação do ator Ângelo Sérgio, que parece arrancar da gente, as palavras que não são pronunciadas. A temática do filme é sobre ausências? Ou demência? Ou seriam todas as modernas questões do ser humano, que descobre ser absolutamente solitário, em seus temas mais fundamentais, como pensar, lembrar e a eterna necessidade de ser amado.

A trilha, bem conduzida do Marcelo Corsetti somado com a atuação de Ângelo Sérgio, (ele que já tinha despertado nossa atenção em Railander - outro curta de Derlam de 2018), enfim o conjunto da obra, nos mostra que o diretor está buscando outros desafios na sua carreira.

É preciso destacar as locações, escolhidas com apuro e a fotografia, que dá o distanciamento na medida. O filme é bem sucedido, fazendo a junção, na trama, do exterior com o interior do personagem.

Propositalmente quero evidenciar preciosa contribuição: Bebeto Alves. Um universo inteiro de emoção e parceria com Alexandre Derlam e equipe, amigos desde muito, trocas desde sempre. Ressaltar sua obra imensa, é chover no molhado, falar que a sua participação nos vocais foi justamente em um dos seus últimos trabalhos, remete ao eterno do cinema. Sempre descobrindo, sempre misturando as artes, (no presente, porque Bebeto se faz presente). Afinal seu legado musical segue, instigando e inspirando.

A história de Ferrolho é introspectiva e enigmática, despertando o imaginário de quem assiste. Mas pensando bem, quem consegue decifrar o ser humano?

Leila Silveira

Produtora Cultural, atriz, diretora de teatro, roteirista, pesquisadora do audiovisual


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Resistência: épico futurista e político

 


Nos primeiros 100 anos de existência do gênero Ficção Científica no cinema muitos ciclos temáticos se sucederam. Nos primeiros anos a base eram as adaptações de novelas de escritores visionários, como Jules Verne e H. G. Wells. Depois, nos anos 50, chegou a vez de explorar os medos do perigo atômico. Nos anos 60 o foco era a exploração espacial. Nos anos 70, as grandes utopias ganham as telas. Nos anos 80, as fantasias espaciais. Nos anos 90 veio a ressaca, com as distopias. Por fim, no novo milênio a bola da vez nos filmes de Ficção Científica é a onipresente Inteligência Artificial.

Resistência (The Creator, 2023), de Gareth Edwards (de Rogue One e Godzilla, de 2014) é mais uma produção que tem a IA como tema principal. No caso, não pelo o que ela possibilita de benefícios quase ilimitados, mas sim por seus efeitos negativos e danosos a longo prazo. O filme explora, de maneira dramática, as perigosas consequências que a utilização massiva desta tecnologia pode causar nos destinos da civilização.


Após explosão nuclear, que devasta Los Angeles, deliberadamente provocada por Inteligência Artificial, a tecnologia é banida e restrita no Ocidente. Apenas os países asiáticos ainda permitem a utilização da IA. Em meio a este mundo de opõe Ocidente x Oriente (algo tipo Guerra Fria), um ex-agente das forças especiais, Joshua (John David Washington), é recrutado para caçar e eliminar o Criador, responsável pelo desenvolvimento de uma poderosa arma que teria a capacidade de eliminar os humanos e conquistar o planeta. Joshua e sua equipe de agentes de elite atravessam as linhas inimigas e entram no coração sombrio do território ocupado pela IA para cumprir a missão. Lá descobrem que a poderosa arma secreta é uma criança, tecnologicamente construída, cujo destino pode alterar o rumo da guerra.


Resistência é um deslumbrante e original épico de ficção científica, apesar do tema central não ser exatamente uma novidade. O fato é que o filme apresenta várias camadas, o que já o coloca, de antemão, em um local de destaque na atual produção do gênero. Em sua face mais superficial se apresenta como uma movimentada aventura futurista. Há, porém, em seu subtexto, um interessante comentário político que aborda questões de xenofobia, colonialismo e expansionismo em países do terceiro mundo asiático. Isto sem falar no arco dramático do protagonista Joshua, que apresenta uma transição do homem belicista e violento até o humanismo e a empatia.


Visualmente o filme de Gareth Edwards é impactante, seja pelo desenho de produção criativo e original, seja pela fascinante cenografia. Contribuiu decisivamente para isto o fato de o filme ter sido realizado em grande parte em locações reais em países asiáticos, em substituição ao frio cenário verde de estúdio, utilizado na quase totalidade das produções do gênero. A pós-produção apenas adicionou elementos de computação gráfica sobre uma imagem captada em cenários reais. Isto faz total diferença para a verossimilhança e o resultado diferencial é visível.


Outro ponto a se destacar é a ausência do fetichismo pelos aparatos tecnológicos. Tudo que vemos tem função utilitária, e não está lá apenas pelo impacto estético que possa causar. Algo semelhante já vimos em Distrito 9, com aquela tecnologia “suja”, bastante convincente. Resistência optou acertadamente por este caminho. O roteiro, escrito por Gareth Edwards e Chris Weitz (de Um Grande Garoto e Pinóquio), é 100% original, algo raro em grandes produções, que costumam estar ancoradas em grandes referências de outras mídias, tipo livros, histórias em quadrinhos, séries, etc.


O nem tão admirável mundo novo apresentado por Resistência propõe analogias políticas muito identificadas com os tempos que vivemos. Este é o tipo de filme que as salas de cinema devem agradecer, especialmente neste momento de reconquista de público. Resistência é um filme cuja grandiosidade cênica e estética só são devidamente apreciadas na telona do cinema.

Assista ao trailer: Resistência


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Som da Liberdade: resgate heroico

 

Desde o período de produção, passando pela divulgação até o lançamento, a polêmica está intimamente ligada ao filme Som da Liberdade (Sound of freedom). Finalizada em 2018, a produção seria lançada por uma subsidiária da 20th Century Fox. Mas os planos foram alterados quando a Disney adquiriu a Fox. A produção ficou arquivada por cinco anos. O filme só ganhou uma oportunidade de lançamento quando a pequena distribuidora Angel Studios adquiriu os direitos da obra. As acusações que sempre rondaram a produção é de que se trataria de um filme com perfil radicalmente direitista.

Elogios de Donald Trump, Elon Musk e Mel Gibson (envolvido na produção) colocaram mais lenha na fogueira. A tentativa de boicote e cancelamento só contribuíram para acender o interesse. O resultado, contrariando expectativas, é um inesperado sucesso de bilheteria no mercado norte-americano, com tendência a repetir o êxito no mercado latino-americano. Estabelecida esta premissa, vamos nos ater aqui exclusivamente à apreciação da obra em si como realização cinematográfica, abstendo este contexto externo.


Há, além de tudo isso, um ponto que parece inequívoco, acima de qualquer discussão: o tema central de Som da Liberdade é por demais importante para ser considerado algo secundário e irrelevante. O sequestro de crianças para serem utilizadas como escravas sexuais por pedófilos do submundo, que se escondem nas sombras da deep web, é o pano de fundo onde se desenrola este misto de drama, ação e biografia dirigido pelo mexicano Alejandro Monteverde.

O aspecto biográfico fica por conta da recriação da jornada real de Tim Ballard (interpretado com convicção religiosa por Jim Caviezel), um agente federal dos Estados Unidos que atua na identificação e captura de pedófilos em território norte-americano. Insatisfeito com o sucesso relativo das suas ações, decide empreender uma missão solitária para combater o tráfico infantil. Desliga-se do governo e parte para em busca de uma criança sequestrada e levada por criminosos para a Colômbia. Sozinho, clandestino, sem apoio das forças policiais dos EUA e infiltrado em terra estranha, Tim parte para uma perigosa operação de resgate.


Baseado em fatos, Som da Liberdade claramente romantiza e ficcionaliza em demasia a história de Tim Ballard. A santificação do personagem glorifica seus atos, a ponto de transformá-lo em herói ungido por uma missão divina. A interpretação messiânica de Jim Caviezel, ainda e sempre marcado pelo recall de A Paixão de Cristo (2004), transforma um personagem real, de carne e osso, em uma entidade justiceira martirizada pela culpa.

Apesar da origem latina do realizador Alejandro Monteverde, o filme não supera os clichês latinos tão usuais em produções sob o olhar de Hollywood. O indefectível filtro amarelo, que solariza tudo, e as cores quentes estão presentes. Todos os personagens secundários, quando a ação se passa na Colômbia, são fortemente marcados pelos mais rasteiros estereótipos de caráter, estética e comportamento, tantas vezes associados às populações que vivem na Linha e abaixo da Linha do Equador.


Como já citado, a temática de Som da Liberdade é seu grande e inequívoco mérito, a ponto de suplantar as virtudes da realização cinematográfica. Um assunto por demais doloroso, mas que deve ganhar luzes para que haja um combate realmente efetivo. Infelizmente a realização pesa muito a mão no caráter emocional e faz uso excessivo de recursos de manipulação da emoção do espectador: música, frases de efeito, atos heroicos. Reconheça-se, no entanto, que se trata de uma produção de grande impacto, que dificilmente deixará a plateia indiferente. A sensação final de incomodo é real e palpável, ficando ainda mais evidente após o recado de Jim Caviezel (o ator, fora do personagem), ao término dos créditos finais.


Eliminando – como se fosse possível - o componente alegadamente verídico da trama e o discurso político/moral que imprime do início ao fim, Som da Liberdade poderia ser considerado apenas uma aventura de resgate convencional, na linha, por exemplo, de Lágrimas do Sol (2003), estrelado por Bruce Willis em missão humanitária clandestina na selva nigeriana.

Assista ao trailer: Som da Liberdade


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Sem Ar: tensão no fundo mar



Refilmagem do sucesso do cinema sueco, Além das Profundezas (Breaking surface, 2020), Sem Ar (The Dive, 2023) é rápido e objetivo. Vai direto ao ponto, sem protelar a entrega do que se propõe. No caso, um tenso suspense, de tirar o fôlego, com perdão do trocadilho involuntário.

De imediato somos apresentados às duas irmãs protagonistas, que decidem fazer mergulho recreativo em um lugar lindo e remoto. O que deveria ser um tranquilo reencontro anual das irmãs, rapidamente se transforma em uma tragédia. Durante o passeio uma delas fica presa em uma rocha, abaixo d’agua. Sem poder se mover, ela ficará totalmente dependente de sua irmã que terá que lutar por sua vida enquanto ela lida com um nível perigosamente baixo de oxigênio, ao mesmo tempo em que busca desesperadamente por ajuda na superfície.


Produção alemã, dirigida por Maximilian Erlenwein, Sem Ar teve suas locações no arquipélago de Malta, na região central do Mediterrâneo. Como é comum em filmes assemelhados, como A Queda, por exemplo, um fio de enredo sustenta a encenação dramática, a começar com a relação um tanto conflitada, mas nunca devidamente explicada, entre as irmãs. Uma questão mal resolvida no passado se manifesta justamente no momento mais crítico da vida de ambas. Mas nada tão significativo a ponto de suplantar o principal foco narrativo, que é a exploração do medo da morte, a tensão máxima, o efeito de confinamento e a solidão extrema.

Sem Ar é, antes de tudo, claustrofóbico ao explorar a sensação imersiva e sensorial que só um mergulho subaquático – e um passeio orbital – são capazes de proporcionar. Os gatilhos do medo, disparados pelo receio da morte e da solidão, são manipulados pelo filme, no mais das vezes, com bons resultados do início ao fim.


O artifício de incluir relógios, marcadores de tempo, e referências e informações que demarcam a passagem do tempo, reforçam a aflição das personagens, e também a nossa aflição, que compartilhamos em tempo real, pois a ação do filme transcorre em paralelo ao nosso tempo real.


As soluções de roteiro, casuísticas e por vezes um tanto forçadas, são suficientemente convincentes a ponto de não comprometer a integridade da narrativa. Sem Ar, ainda que em sua essência não saia do lugar comum e carregue demais nos clichês dos filmes de sobrevivência, é um thriller de suspense que dá conta do recado, se a expectativa não for muito alta. Uma experiência de entretenimento a qual assistimos com algum prazer e sem dor.

Assista ao trailer: Sem Ar


Jorge Ghiorzi

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