quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Sorria 2: o horror que ri por último

 

Lançado em 2022, o thriller de horror Sorria foi uma das boas surpresas da temporada no gênero que costuma repetir fórmulas, sem grandes novidades. Encontrou ressonância entre o público, que garantiu boas bilheterias em todo o mundo, e também junto à crítica, merecendo de modo geral resenhas positivas. Por ser aquele um ano ainda marcado pelos efeitos da quarentena pandêmica, o filme dirigido por Parker Finn foi considerado por muita gente uma analogia ao pânico vivido naquele momento pela ameaça de contaminação da Covid. A relação, neste caso, ainda que possível, foi meramente incidental e involuntária, pois o conceito do longa-metragem é uma expansão do tema já desenvolvido em 2019 (portanto, anterior à pandemia mundial) no curta-metragem de 11 minutos Laura Hasn’t Slept, (“Laura não dormiu”) do próprio Parker Finn, lançado apenas no fatídico ano de 2020, no qual o primeiro Sorria foi inspirado.

Para evitar uma semelhança com a ideia central de A Hora do Pesadelo, onde o vilão Freddy Kruger surge somente durante os sonhos, a proposta original que deu origem à Sorria foi alterada. Desta vez o Mal surge em alucinações e delírios despertos, não dependendo dos sonhos dos infectados pela maldição apresentada no primeiro filme. O sinal da contaminação, como já sabemos, está na cara: um largo, assustador e inusitado sorriso estampado na face.


Há uma curiosa e esperta ligação simbólica que “contamina” todos os filmes. A personagem central do curta-metragem reaparece no primeiro longa-metragem como a paciente zero que se consulta com a doutora protagonista. Para dar continuidade na saga, um dos personagens finais, testemunha da maldição no primeiro filme, ressurge desta vez no impactante prólogo que abre este Sorria 2 (Smile 2, 2024), ainda sob a direção de Parker Finn.

A “contaminação”, vale relembrar para os desavisados, ocorre quando a vítima é testemunha do suicídio de alguém (já contaminado). Após a morte consumada o “Mal” passa a habitar o novo corpo, como um parasita que invade um hospedeiro. A partir de então a nova vítima contaminada passa a ter alucinações, enxergando sorrisos macabros em rostos de familiares ou conhecidos, até que, em um delírio extremo de loucura, acaba cometendo suicídio, em frente a alguém que passa então a ser o novo hospedeiro da maldição de origem sobrenatural.


Em Sorria 2 a vítima da vez é a cantora pop Skye Riley (a ótima Naomi Scott), que está retomando a carreira após um trágico acidente ocorrido um ano atrás. Ao testemunhar o pavoroso suicídio de um fornecedor de drogas, Skye incorpora a “entidade maligna” e passa a viver momentos perturbadores, com alucinações e delírios. Sem distinguir o que é real do que é perturbação mental, a jovem cantora enfrenta seus fantasmas internos em busca de respostas antes de chegar ao limite da insanidade e consequente morte.

A pressão da fama, os compromissos de agenda e a constante necessidade de superar limites no universo competitivo do mundo artístico já são razões suficientes para exigir o máximo da saúde física e mental de Skye, ainda em recuperação do acidente sofrido. Os primeiros sinais da manifestação do Mal que tomou conta de seu corpo inicialmente foram atribuídos às exigências estressantes da sua atividade profissional. Mas logo a coisas fogem do controle. Há algo mais profundo e perturbador tomando o controle da sua vida.


Sorria 2 faz uma mistura bem temperada que reúne terror, gore, suspense psicológico e slasher, transitando por todos os estilos com a habilidade reconhecida do realizador Parker Finn. Ainda assim, o filme por vezes comete o pecado da utilização pouco inspirada da técnica do jump scare (o famoso susto repentino), um truque um tanto clichê que costuma ser uma cilada quando utilizado em demasia ou de forma gratuita. Aqui ficamos no limite do tolerável para uma produção que demonstra uma clara intenção de buscar renovação do gênero com a inserção de elementos psicológicos.

O filme apresenta situações e momentos realmente perturbadores na espiral de loucura, que transforma a vida de Skye em uma jornada rumo à insanidade suicida. Os conflitos interiores manifestados pela protagonista conduzem a narrativa para uma abordagem de temas complexos como traumas, culpas e vivência do luto, por um passado que ainda assombra seu presente.


Contribui decisivamente para a verossimilhança deste sombrio mergulho vertiginoso rumo à mais completa alucinação o desempenho realmente diferenciado da atriz protagonista, Naomi Scott. Sua entrega ao papel é intensa, transmitindo com vigor toda a angústia da cantora pop assombrada por delírios persecutórios. De origem britânica, Naomi é conhecida pelo papel da princesa Jasmine em Aladdin, a versão live-action dirigida por Guy Ritchie em 2019, protagonizada por Will Smith no papel-título. Além de mostrar sua capacidade de atuação, em Sorria 2 a atriz também teve oportunidade de exibir seu talento no canto e na dança em alguns números musicais ao longo da trama (não, o filme não é musical!), cujo estilo das canções e interpretação lembram a performance teatral de Lady Gaga.


Frequentemente nos deparamos nas redes sociais com memes e listagens que apontam sequências de filmes que superam o original. O Exterminador do Futuro 2 e Star Wars – O Império Contra-Ataca são dois exemplos sempre lembrados. Pois então, no gênero horror surgiu um novo postulante a este título. Sorria 2 supera o Sorria original, que, a propósito, é um bom filme. Nesta continuação foi expandido o conceito original introduzindo novas camadas, sem a necessidade de dar explicações sobre a origem do fenômeno. A experiência aterradora da vítima é a grande matéria prima trabalhada por Parker Finn com apuro técnico e visual caprichado. Sorria 2 é um horror que dialoga com a inteligência e a sensibilidade do público, que sai da sala de exibição com um sorriso no rosto. Não por estarem “contaminados”, mas pelo prazer de assistir um filme de horror que não deixa ninguém indiferente.  

Assista ao trailer: Sorria 2


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Super/Man – A História de Christopher Reeve: retrato de um herói

Uma ironia dolorosa resume a vida de Christopher Reeve. O ator que construiu o mito em torno de si ao interpretar um super-herói com poderes praticamente ilimitados, dentre eles a capacidade de voar, teve seu destino final em vida restrito e imobilizado em uma cadeira de rodas, com limitadíssima capacidade motora. O homem de aço do cinema encontrou sua kriptonita na vida real ao sofrer a trágica queda de um cavalo em 1995.

Vinte anos após sua morte a trajetória do ator é retratada no emocionante e sensível documentário Super/Man: A História de Christopher Reeve (Super/Man: The Christopher Reeve Story, 2024), uma realização da dupla Ian Bonhôte e Peter Ettedgui que teve sua primeira exibição mundial no Sundance Film Festival, em janeiro deste ano. Após a repercussão extremamente positiva na audiência, a produção atraiu a atenção dos grandes players do mercado. Os direitos de distribuição foram adquiridos pelas gigantes Warner, DC Studios, HBO e CNN Films, o que garante uma grande circulação e visibilidade da obra.


O filme faz uma ampla crônica da carreira artística de Christopher Reeve, desde os primeiros tempos de ator iniciante, na escola de teatro, passando por sua ascensão à galeria dos mais renomados atores de Hollywood em sua época, até seus últimos momentos de vida, em 2004. Dentro desta trajetória destacam-se os dois momentos mais significativos da sua vida pública: a escolha para interpretar o disputadíssimo papel de Superman, no filme de 1978, e o terrível acidente que o deixou tetraplégico até o fim da vida. Estes dois episódios formam o eixo narrativo sob o qual se constrói o documentário.


O roteiro de Super/Man é constituído de imagens de arquivo, registros de vídeos domésticos, áudios do próprio ator e entrevistas com familiares e amigos mais íntimos. Este material é utilizado pelos realizadores de maneira não cronológica. A edição propõe saltos narrativos que levam o espectador alternativamente para trás e para a frente, em termos de linha do tempo da vida de Christopher Reeve. Esta técnica proporciona um dinamismo que imprime um ritmo que distancia o documentário de um tradicional registro jornalístico.


O ambiente familiar do ator, antes e após o acidente, também é bastante explorado em Super/Man, com participação dos filhos, já adultos, em depoimentos emocionados e tocantes, relembrando a figura do pai com o qual só conviveram quando ainda eram crianças. As duas companheiras que Christopher Reeve teve também registram sua presença, em espacial Dana Reeve, com quem estava casado à época do acidente, e que ficou a seu lado até os últimos dias. Juntos criaram a “Fundação Christopher & Dana Reeve”, que atua no estímulo à pesquisa científica visando a cura ou à melhoria da qualidade de vida das pessoas com paralisia. Atualmente os filhos estão à frente na gestão da Fundação, ainda ativa e influente.


As relações de Christopher Reeve com outros artistas, diretores e produtores de Hollywood revelam um ator com livre trânsito e muita consideração por parte de seus colegas de trabalho. Sabe-se que este tipo de amizade profissional costuma ser superficial e motivada por interesses momentâneos. No entanto, uma amizade muito intensa e verdadeira surgiu entre Christopher Reeve e Robin Williams. Ambos foram colegas de apartamento nos tempos das vacas magras, quando tentavam uma oportunidade em grandes produções. A ascensão dos dois foi simultânea e fortaleceu um poderoso elo de cumplicidade. Super/Man abre espaço para contar um pouco desta amizade verdadeira, que inclusive se intensificou após o acidente. Robin Williams, que nunca abandonou Christopher Reeve, esteve sempre a seu lado, tentando levar alegria e leveza à vida do ator quando a escuridão mostrava sua assustadora face. Tragicamente, exatos dez anos após a morte do amigo, o próprio Robin Williams deu fim à sua vida. O documentário não trata diretamente deste tema, embora faça uma breve e contundente referência em uma fala da atriz Susan Sarandon.


Super/Man não foge das armadilhas sentimentais que filmes deste tipo enfrentam. Há que se convir, no entanto, que não haveria de ser diferente, dada a natureza da personagem retratada e seu devastador fim de carreira e morte. Os realizadores evitam a manipulação fácil das emoções, ainda que seja inevitável o apelo às lágrimas em determinadas passagens, como os discursos de despedida de Robin Williams e Dana Reeves. O paralelo entre o homem e o mito, o ator e o super-herói, estão constantemente presentes na abordagem, muito bem sintetizado no jogo de palavras criado para o título original: Super/Man. O documentário é um registro necessário, honesto e sincero, que confirma que os grandes confrontos não ocorrem apenas na ficção dos duelos entre super-heróis e vilões dos quadrinhos. Grandes combates também são travados vida real, na luta eterna entre o ser humano e a inevitabilidade do seu fim. Como homem e como super-herói, Christopher Reeve foi gigante em todas suas batalhas.

Assista ao trailer: Super/Man – A História de Christopher Reeve

 

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Robô Selvagem: mãe natureza


A nova animação da DreamWorks reúne dois temas que estão na ordem do dia: tecnologia e meio ambiente. Robô Selvagem (The Wild Robot, 2024) é uma fábula que consegue a proeza de dialogar simultaneamente com o intocável universo da vida selvagem e as possibilidades ilimitadas da utilização da Inteligência Artificial na evolução da civilização humana sobre o planeta. O resultado é uma das mais emocionantes e tocantes animações dos últimos anos, superando com larga vantagem a animação da Disney Pixar lançada em 2008, WALL-E, com a qual possui alguma semelhança temática. 

A história inicia com um acidente que joga uma robô – a unidade ROZZUM 7134, ou apenas “Roz” – em uma remota e desabitada ilha. Naquele ambiente desconhecido a unidade robótica necessita se adaptar e aprender as regras de sobrevivência, enquanto aguarda por resgate. Neste processo Roz descobre os mecanismos que regem a flora e a fauna local. Aos poucos desenvolve uma relação de amizade e cumplicidade com Bico-Vivo, um filhotinho de ganso órfão que precisa aprender a voar, e Astuto, uma solitária e ardilosa raposa.


O elemento humano é um sujeito oculto em Robô Selvagem, pois não aparece objetivamente em cena. Apenas são percebidos e identificáveis, de maneira indireta, os reflexos e as consequências da sua existência. A Natureza profunda, intocada pelo “homem”, inadvertidamente se transfigura pela presença surpresa de um robô de alta tecnologia que literalmente cai do céu para romper o equilíbrio do ambiente de um ecossistema inexplorado e virgem (sob o ponto de vista humano). Uma subversão da ordem natural das coisas é a consequência imediata desta invasão involuntária. Daí surge uma história inspiradora com forte componente emocional que transmite lições de vida, civilização, família e empatia.

Os primeiros momentos de Robô Selvagem são vacilantes, parecem um tanto rotineiros e a animação não diz exatamente a que veio. Funcionam essencialmente para estabelecer o contexto e apresentar os “personagens” principais. No entanto, logo a animação encontra seu eixo narrativo e conquista definitivamente o interesse do espectador. Passamos a acompanhar com interesse genuíno o destino do improvável trio de protagonistas: a robô (mãe), o bebê ganso e a raposa.



A animação, dirigida por Chris Sanders (o mesmo de Lilo & Stitch e Como Treinar seu Dragão), faz uma espécie releitura do conto de fadas “O Patinho Feio” de Hans Christian Andersen, atualizado para temas como inclusão, representatividade de papeis e liberdade para exercer o direito de ser diferente em meio a hegemonia social, no caso específico do filme, em meio ao reino animal. O foco desta vez não está na figura do filhote em busca de acolhimento, mas sim na figura da robô que encarna uma mítica “mãe coragem”, que assume o papel de provedora e protetora. Com estes elementos o roteiro desenvolve uma emocionante jornada de autoconhecimento, tolerância e sobrevivência dos integrantes de uma família disfuncional, reunida por circunstâncias aleatórias em ambiente hostil. 

O gregarismo dos animais é, sob certa ótica, colocado em risco pela presença intrusa de um elemento externo que desiquilibra a harmonia ancestral do ambiente. Pois é justamente aí que ocorre o grande fato transformador, exemplar como simbologia, que promove uma necessidade colaborativa entre as espécies, subvertendo o instinto natural de preservação pela convivência entre os iguais. A mente cibernética da robô Roz não estava programada para interagir e muito menos se ocupar dos problemas das diversas espécies de animais que encontrou naquele ambiente. Ainda assim, sua inteligência superior foi tocada de alguma maneira pelos problemas de sobrevivência e os ciclos da vida aos quais os seres vivos são submetidos. Neste ponto a inteligência artificial foi substituída pela inteligência emocional, que despertou sentimentos que a máquina desconhecia até então.


Temas atuais como a preservação da natureza e a sustentação da vida estão presentes como forças vitais que sustentam a narrativa. O componente emocional, presente ao longo de todo o filme, aliado ao carisma das personagens centrais, cativam o espectador do início ao fim. Robô Selvagem é uma diversão exuberante para todas as idades. O resultado é uma experiência de cores e movimentos que proporciona uma jornada divertida, sensível e criativa. Robô Selvagem chegou para rivalizar com Divertida Mente 2 como a melhor animação de 2024.

Assista ao trailer: Robô Selvagem


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Coringa – Delírio a Dois: entre o asilo e o tribunal

 

O primeiro filme solo do Coringa causou alguma surpresa aos fãs quando se revelou uma produção que ambicionava um realismo incomum nas aventuras de personagens de HQs. Ainda que, ao longo da trama, o longa assumisse pouco a pouco um clima de farsa com pretensão política. Para a segunda incursão solo do personagem o realizador Todd Phillips (de Se Beber Não Case!) acelera e radicaliza, transformando tudo em uma delirante fantasia musical.

Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux, 2024) inicia dois anos depois dos eventos do filme anterior. Após os crimes cometidos, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é internado no Asilo Arkham, hospital psiquiátrico destinado aos criminosos alucinados e mentalmente perturbados. Enquanto espera pelo julgamento – onde a alegação de insanidade o tornaria inimputável – Arthur conhece Lee Quinzel (Lady Gaga), também internada na instituição. Juntos passam a viver uma louca paixão, motivados pelo desejo de fuga e embalados por delírios musicais.


O Coringa de 2019 reverenciou o estilo de cinema urbano e pessimista dos anos 70, tendo Taxi Driver como a grande matriz inspiradora. A continuação segue bebendo nesta fonte setentista. Aqui temos ecos de Um Estranho no Ninho nas sequências que se passam na instituição psiquiátrica. Em termos de estrutura o longa é dividido em dois grandes atos. O primeiro se passa totalmente no Asilo Arkham, onde Arthur Fleck passa por péssimos momentos de violência física e mental. A segunda metade do filme tem como cenário o Tribunal, onde acontece seu longo julgamento pelos cinco assassinatos ocorridos no filme anterior. 

Para o bem ou para o mal, a decisão mais significativa de Todd Phillips (também roteirista) foi a transformação de Coringa: Delírio a Dois em musical. Então, estamos diante do clássico dilema do ovo e da galinha. O filme é um musical porque Lady Gaga está no elenco, ou Lady Gaga está no elenco porque o filme é um musical? O fato objetivo é que a inclusão de números musicais se revela um tanto gratuita pois não acrescenta nada substancial à narrativa. A sensação que transmite é de estarem ali apenas para alongar um roteiro que tem pouca história a contar. Isto para não falarmos que não existe nenhum número sequer próximo do memorável.



Coringa: Delírio a Dois prossegue no caminho do primeiro filme. O interesse da trama permanece totalmente focado no personagem central. Não abre espaço para outras abordagens, nem tramas paralelas, muito menos a elaboração de um plano criminoso, como seria de esperar em um vilão em formação. A bem da verdade Arthur Fleck / Coringa é um personagem essencialmente covarde, cujas circunstâncias, que independeram do seu desejo, o transformam em um involuntário agente catalizador do caos e da anarquia. O fato objetivo é que aqui o Coringa ainda não possui adversários, além dele próprio.

O foco do diretor Todd Phillips permanece o mesmo, promover um mergulho na psique perturbada de Arthur Fleck, estabelecendo as bases que constituem sua personalidade fracionada e seu viés vilanesco, manifestado pela origem do narcisista Coringa. Enredado nesta perspectiva o filme não avança, se move em círculos, não apresenta um caminho. Ainda não foi desta vez que vimos o primeiro enfrentamento entre Coringa e Batman. No universo das adaptações de HQs para o cinema já assistimos muitas vezes filmes de origem. O ineditismo aqui é o fato de termos dois filmes inteiros contando essencialmente um imenso arco dramático: a origem profunda do vilão piadista e sua risada maligna.



A expectativa para a sequência de Coringa era grande. O que entrega de fato é uma profunda decepção, que frustra totalmente qualquer tipo de espectador, do fã mais dedicado ao interessado eventual. O final aberto coloca possibilidades para o futuro. Caso haja um terceiro filme solo do personagem, que encontrem urgente o caminho certo, porque desta vez a piada não teve graça alguma. Coringa: Delírio a Dois é redundante, pretencioso e vazio.

Assista ao trailer: Coringa: Delírio a Dois


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Os Fantasmas Ainda se Divertem: sessão nostalgia

Com um atraso de 36 anos finalmente os fãs do morto-vivo mais engraçado do cinema – Beetlejuice - tem o tão esperado reencontro. Uma geração inteira se passou entre o filme original, Os Fantasmas se Divertem (1988), e esta continuação tardia, Os Fantasmas Ainda se Divertem (Beetlejuice, Beetlejuice, 2024). Este tempo todo que se passou entre um filme e outro possibilita então que aqueles que se divertiram no final dos anos 80 voltem aos cinemas com seus filhos, sobrinhos ou netos para um ótimo programa em família. A diversão é garantida. Uma sessão nostálgica para os velhos fãs e uma descoberta para os mais jovens.

Este projeto de continuação chega em um momento de impasse criativo do diretor Tim Burton, um realizador que já viveu melhores momentos. O auge do sucesso foi nos anos 80 e 90 com filmes como Batman (a primeira versão, de 1989); Batman – O Retorno; Edward Mãos de Tesoura; Ed Wood e A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. A partir da segunda década dos anos 2000, com filmes pouco inspirados como Sombras da Noite; Grandes Olhos; O Lar das Crianças Peculiares e Dumbo, seus trabalhos perderam o brilho e o folego. A repetição de uma estética e uma narrativa muito particulares do realizador acabou aprisionando Tim Burton em um previsível formulismo que cansou e afastou o público. Portanto, este retorno ao passado, revisitando um de seus maiores sucessos é, antes de tudo, uma estratégia para retomar um caminho que se perdeu com o passar dos anos.


Neste momento crítico da carreira Tim Burton recorreu ao resgate de um de seus filmes de maior prestígio e êxito criativo. Ao aceitar fazer a continuação de Os Fantasmas se Divertem o realizador arriscou e jogou todas as fichas. O resultado não é o desastre que muitos chegaram a prever, no entanto, também não se situa entre seus melhores trabalhos. Podemos entender Os Fantasmas Ainda se Divertem como uma obra de passagem, que abre possibilidades para Burton se reencontrar com suas melhores habilidades como contador de fábulas que transitam entre o humor e o bizarro, com toques de terror censura livre. 

A história de Os Fantasmas Ainda se Divertem inicia quando os Deetz, após uma tragédia familiar, precisam retornar à antiga casa em que moravam em Winter River, que conhecemos no primeiro filme. Lydia Deetz (Winona Ryder) já é adulta e mãe da adolescente Astrid (Jenna Ortega, da série Wandinha, produzida e dirigida por Tim Burton para a Netflix). Ao visitar o sótão da casa a jovem Astrid se depara com uma misteriosa maquete da cidade. Mal sabe ela que aquela maquete funciona como um portal que dá acesso a um mundo habitado por mortos-vivos. Uma destas criaturas é o extravagante fantasma Beetlejuice (novamente interpretado por um afiado Michael Keaton), que mais uma vez vai assombrar e colocar a vida da família Deetz de cabeça para baixo.


Os Fantasmas Ainda se Divertem está longe de ser um filme perfeito ou mesmo memorável, mas funciona suficientemente bem para recolocar o trabalho de Tim Burton nos trilhos. Há muito tempo ele não se mostrava tão à vontade em um projeto. Isto se reflete na tela, quando percebemos que Burton parece estar se divertindo tanto ou mais que os personagens que dirige. Algo como um garoto que ganha um brinquedo novo que muito desejava. O espírito de garoto de Burton reencontra velhos amigos do passado com um olhar amadurecido pela passagem dos anos, porém sem perder a ternura.

Esta continuação não traz exatamente novas ideias, apenas revive um momento que trouxe muitas alegrias há quase quatro décadas. O filme ganhou até um reforço luxuoso com a presenças de Willien Dafoe e Monica Bellucci interpretando novas personagens que, a bem da verdade, tem pouco a dizer. Há aqui e ali algumas tentativas de expandir o universo criado no filme original, mas o excesso de subtramas que não chegam a lugar algum prejudicam o resultado. Porém, não ao ponto de comprometer na totalidade a experiência, que segue sendo prazerosa e divertida na maior parte do tempo. Talvez a maior qualidade de Os Fantasmas Ainda se Divertem esteja mesmo nas partes e não no todo.


Quem entra em uma sala de cinema para assistir um filme de Tim Burton já possui minimamente uma ideia do que vai encontrar. Afinal, ele é um realizador que possui o que poderíamos definir como uma assinatura autoral. Sob esta perspectiva, Os Fantasmas Ainda se Divertem traz evidentemente as marcas características do seu cinema. O universo particular de Tim Burton está lá, com suas regras, seu humor nonsense, sua estética característica e personagens bizarros. Se o propósito primeiro de Os Fantasmas Ainda se Divertem era reconectar o diretor com os melhores momentos de sua filmografia, pode-se afirmar que o objetivo foi alcançado. O filme é OK e recoloca Tim Burton no jogo.

Assista ao trailer: Os Fantasmas Ainda se Divertem

 

Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris: três é demais


Exibido em première mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 2023, o novo filme de Woody Allen chega às telas brasileiras com um ano de atraso. Não é novidade que a circulação dos trabalhos do realizador vem sendo cada vez mais restrita, bem distante dos tempos de sucesso popular, particularmente nos anos 80 e 90. Um novo filme dirigido por Woody Allen costumava ser um acontecimento. Mas, isto é passado.

Após a virada do século o cineasta passou a receber menos atenção do público. E, por consequência, também dos Estúdios. Esta nova realidade levou Allen a explorar novos territórios, longe de sua amada Nova Iorque. Esta fase da carreira o levou para a Europa, onde encontrou novos financiadores para os projetos, novos cenários e possibilidade de explorar temas mais universais, distantes do contexto da América.

Golpe de Sorte em Paris (Coup de chance, 2023), seu 50º longa-metragem, foi inteiramente filmado em Paris e falado em francês, língua que ele próprio reconhece que não domina totalmente. Este fato, por si só, revela um espírito de desprendimento e ousadia para um cineasta veterano que completa 90 anos em 2025. Há quem diga – ele próprio não desmente – que este poderá ser o seu último filme, encerrando uma carreira cinematográfica de quase 60 anos.


A trama inicialmente romântica de Golpe de Sorte em Paris em algum momento se transforma em um pequeno thriller de mistério e suspense, algo que se aproxima do que vimos em Ponto Final: Match Point, sucesso que Allen dirigiu em 2005. Tudo começa nas calçadas de Paris, quando uma mulher, Fanny (Lou de Laâge), caminha até o trabalho. Em meio aos passantes, um encontro casual. Um homem, Alain (Niels Schneider), reconhece Fanny como uma antiga colega de escola. Conversam, relembram o passado, trocam pequenas confidências. Renasce uma antiga paixão não consumada que se transforma em caso de adultério. Fanny está casada com um rico e poderoso empresário, conhecido por seu caráter controlador e um passado suspeito. Ele a trata como a perfeita “esposa troféu”, apresentada como trunfo nas altas rodas da sociedade parisiense. Surge então o dilema de Fanny: viver todas as possibilidades do novo amor ou permanecer em um estável casamento sem paixão. O destino dos três, por fim, se resolve por um golpe do destino. Ou seria um golpe de sorte?


Marcas indeléveis da marca autoral de Woody Allen estão presentes na narrativa que situa sua trama no alto extrato da sociedade, onde transitam personagens afetadas, hedonistas e niilistas, com seus jogos de poder e aparências. Temperando este universo o realizador insere a usual trilha sonora de jazz. Porém, desta vez, não recorreu ao antigo jazz tradicional. Sua opção foi conceder espaço para o jazz mais moderno. Presentes também estão as citações e referências artísticas e literárias, aqui absolutamente contextualizadas, pois Alain vive um escritor em processo de criação de seu novo romance. Este universo artístico agiu como fator de sedução para Fanny, que identificou uma oportunidade de exercer suas latentes inclinações artísticas sufocadas pelo casamento. O roteiro coloca habilmente em contraste a vida de liberdade do artista em oposição à prisão que as conveniências sociais impõem. A tese colocada aqui indica que apenas a arte permite o pleno exercício da liberdade.

A elegância, no sentido literal e figurativo, é uma marca muito presente em Golpe de Sorte em Paris. Seja pelos ambientes refinados, seja pela apresentação das personagens – principais e secundárias – ou pelos diálogos, sempre precisos, enxutos, afiados e perspicazes. O conjunto funciona maravilhosamente bem em um roteiro escrito com inteligência, sem excessos.

O elenco sem estrelas, formado por atores e atrizes com pouca visibilidade internacional fora da França, está muito à vontade com atuações naturalistas que a direção de Woody Allen costuma imprimir em seus filmes. Um destaque para a protagonista Lou de Laâge (de O Baile das Loucas), cuja fisionomia possui traços de semelhança com a atriz Anna Karina, musa de Jean-Luc Godard.


Caso se confirme que Golpe de Sorte em Paris seja efetivamente o último filme dirigido por Woody Allen podemos afirmar que o encerramento de sua carreira se dá com um trabalho que reúne a essência de alguns dos melhores momentos da obra do cineasta. Seu estilo peculiar vem sendo depurado ano após ano. Aqui, mais uma vez, encontra uma síntese bem equilibrada que assistimos com grande prazer. Não há o humor que marcou fortemente seus primeiros trabalhos. Ele foi substituído por uma abordagem que investe na graça e ironia, com um refinamento que é puro deleite.

Assista ao trailer: Golpe de Sorte em Paris


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Não Fale o Mal: viagem de pesadelo

 

Lançada há apenas dois anos, a produção dinamarquesa Não Fale o Mal alcançou grande repercussão no Festival Sundance de 2022 e atraiu a atenção do mercado internacional. Vislumbrando o alto potencial de bilheteria para as grandes massas, Hollywood rapidamente tratou de comprar os direitos para produzir uma refilmagem, retrabalhando o tema e o contexto do filme com elenco e cenários mais identificáveis para os mercados norte-americano e internacionais. Assim surgiu o tenso thriller psicológico Não Fale o Mal (Speak no Evil, 2024) made in USA, com a grife da produtora Blumhouse, especialista em filmes de horror, terror e suspense de baixo orçamento e grande bilheteria como Atividade Paranormal, Corra!, O Homem Invisível e M3gan. A direção ficou a cargo de James Watkins, realizador de Sem Saída (2008) e A Mulher de Preto (2012).

Família (casal e filha) em visita à Toscana, na Itália, acaba se relacionando com outra família (casal e filho) que encontra por acaso no passeio. Aos poucos cresce entre eles uma amizade de ocasião em terra estranha. Tempos depois, após retornarem para suas cidades, uma das famílias convida a outra para passar alguns dias em sua tranquila e isolada casa de campo no interior da Inglaterra. Logo os hóspedes visitantes descobrem, contudo, que o que deveria ser um simples final de semana de descanso e lazer se transforma em um terrível pesado que coloca suas vidas em perigo.



Desde o primeiro minuto sabemos que algo de sinistro e perigoso ressoa com gravidade em Paddy (James McAvoy), o pai da família anfitriã do passeio. Um gesto, um olhar, uma palavra mal colocada, uma fala fora do tom. Assim se constrói o andamento da trama, distribuindo pistas e informações de que algo muito errado não está certo naquela personalidade aparentemente amável e expansiva. Contribui decisivamente para esta sensação de desconforto o desempenho intenso de James McAvoy, operando em um registro assustador, que nos remete inevitavelmente ao seu personagem multifacetado em Fragmentado. A partir deste personagem emblemático, Não Fale o Mal se estabelece como um estudo de personalidade, que examina diferentes níveis de violência psicológica que se materializam em violência física. Sob esta ótica o longa de James Watkins lembra por vezes alguns trabalhos do austríaco Michael Haneke, que exploram questões perturbadoras que se escondem sob o verniz social.


O thriller é admirável na sustentação de uma atmosfera tensa e sufocante por mais de uma hora, com efetivamente poucos fatos significativos ocorrendo em cena. Na verdade, aí está o truque. Não Fale o Mal possui uma construção lenta e consistente, quase minimalista, levando tudo num crescendo até o violento e catártico final. Não força nos clichês, que são quase uma regra de ouro quando se trata de thrillers de suspense, horror, terror e afins. Aliás, neste aspecto, até de maneira um tanto surpreendente, o remake norte-americano é mais sutil em muitos aspectos do que a versão original dinamarquesa. Uma refilmagem de um grande estúdio de Hollywood, usualmente produzida com mais recursos, costuma cair na armadilha de turbinar excessivamente o ritmo e a estética da obra original. Pois é aí que mora o pecado. Aqui, porém, houve um exercício de contenção, ao menos nos dois primeiros atos.


O remake norte-americano trouxe novos elementos e perspectivas em relação à versão dinamarquesa. Dois pontos são particularmente significativos. O Não Fale o Mal de Watkins traz em seu desenvolvimento, como acréscimo de roteiro, uma abordagem sobre a masculinidade desconstruída quando confronta a fragilidade de Ben (o pai da família visitante) em oposição ao macho dominante e confiante representado por Paddy. O outro ponto, que destoa muito em relação ao filme de 2022, diz respeito ao desfecho, que apresenta uma solução totalmente diversa, que acaba por transformar o produto final em algo completamente distinto daquele que o originou. O que o filme dinamarquês omitiu em respostas e explicações, o remake hollywoodiano explica em demasia, particularmente em seu terço final, furtando da plateia o espaço para a fantasia e a imaginação.

Efetivamente Não Fale o Mal é envolvente em seu suspense que se intensifica cena após cena, num jogo psicológico com personagens bem constituídos. Apesar do segmento final abraçar a previsibilidade dos filmes do gênero, o que compromete parcialmente a experiência, o longa tem mais acertos do que erros. É um remake que não supera o original, mas é um remake que ousa com autonomia ao reinterpretar o longa original.


Assista ao trailer: Não Fale o Mal


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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