quinta-feira, 29 de maio de 2025

Chofer de Praça: um retrato do Brasil profundo

 

Lançada em 1958, a comédia CHOFER DE PRAÇA foi o 9º filme da extensa filmografia do humorista, ator e cantor paulista Amácio Mazzaropi. Esta produção marcou sua estreia como produtor e também a primeira aparição de Geny Prado, atriz que se tornaria sua parceira recorrente em quase todas as obras seguintes.

O filme inicia com a tomada de uma casinha modesta, isolada num meio rural típico do interior brasileiro. A câmera se aproxima da porta da casa. Ela abre e vemos um casal saindo. Ambos carregando malas, claramente demonstrando que estão partindo em viagem. O casal sai de cena, mas a câmera permanece mais alguns segundos no mesmo enquadramento. Então, a seguir surge um cachorro, reproduzindo o mesmo movimento de seus donos ou tutores. Ele sai da casa “carregando” uma pequena mala presa aos dentes. Ele também vai viajar. Nada mais é necessário para que a comédia conquiste o público desde o primeiro instante.

O enredo, seguindo o padrão dos filmes de Mazzaropi, é bastante singelo, sem complexidades maiores, mas sim, com uma habitual lição moral no terceiro ato. Chofer de Praça conta a história de um humilde casal que se muda para a capital de São Paulo com a missão de ajudar o filho mais velho a pagar e concluir a “faculidade” de Medicina. Para ganhar a vida, o pai consegue emprego como chofer de praça dirigindo um carro antigo, barulhento e caindo aos pedaços. Isto passa a ser motivo de piadas e humilhações da vizinhança e dos demais colegas de ofício. O filho, ainda que necessite muito do dinheiro, sente muita vergonha do trabalho do pai.

O filme segue por várias sequências e gags de humor que reforçam este contexto, revelando ao longo da narrativa um subtexto crítico que condena o alpinismo social em detrimento de valores morais. Ainda que trabalhe e reforce estereótipos da humildade rural em oposição a arrogância dos habitantes das zonas urbanas, Chofer de Praça aborda com muita simplicidade, comicidade e sensibilidade as questões de classe que estão constantemente presentes na realidade brasileira.

É inegável o timing de comédia de Amácio Mazzaropi. Apesar de sua origem na tradição da comédia circense, mais caracterizada pelo humor de performance física (da qual Os Trapalhões foram herdeiros), Mazzaropi demonstra seu talento no texto, no mais das vezes minimalista, e no perfeito “tempo de comédia”. Uma frase, um gesto, uma palavra, um resmungo monossilábico, tudo isto rende um humor mais eficiente – e atemporal – do que uma torta na cara ou um “pum do palhaço”. Mazzaropi era dotado deste dom e isto fez dele um dos grandes do nosso cinema.

Infelizmente o prestígio do artista foi se diluindo no decorrer dos anos, particularmente por suas últimas produções dos anos 70 e 80, que contaminaram negativamente a avaliação de toda sua obra. Esta rejeição ou mesmo desconhecimento da sua obra é uma realidade para as novas gerações, para as quais Mazzaropi não passa de um artista menor de uma certa subcultura brasileira. A decadência, em alguma medida, é natural na carreira de qualquer artista. Mal comparando, e respeitando as devidas dimensões, vale lembrar que isto ocorreu também com gênios da comédia como Jacques Tati e Charles Chaplin, apenas para citar dois grandes. Os últimos trabalhos destes artistas também já não demonstravam o brilho criativo de outros tempos. Apesar das oscilações em sua carreira, Mazzaropi não apenas assegurou seu lugar na história do cinema brasileiro, mas também construiu um imaginário popular que resiste como testemunho de uma identidade nacional muitas vezes esquecida.


Chofer de Praça, assim como toda a filmografia de Mazzaropi, permanece não apenas como um registro do humor brasileiro de seu tempo, mas também como um espelho das contradições sociais que, décadas depois, ainda se repetem — prova de que sua obra, longe de ser 'menor', é um retrato atemporal de um país em eterna transformação.

Assista ao trailer: Chofer de Praça

Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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terça-feira, 27 de maio de 2025

O Esquema Fenício: a gaiola de ouro de Wes Anderson

 

Autor de um cinema geométrico, matemático e sensorial, Wes Anderson consolida-se como um devoto da simetria — mais rigoroso que Stanley Kubrick, outro cineasta obcecado pelo tema. Seus filmes funcionam como livros para colorir vistos por um olhar obsessivo, nos quais a forma sempre suplanta o discurso. Em O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme, 2025) essa assinatura atinge seu ápice onde cada plano é uma equação resolvida com a precisão de um ourives, mas também com a frieza de um teorema matemático.

Ambientado nos anos 1950, o filme acompanha o magnata europeu Zsa-Zsa Korda (Benício Del Toro), que, após sobreviver a múltiplos atentados, nomeia sua filha — uma freira — como herdeira de seu império. Juntos, embarcam numa jornada repleta de espionagem internacional, traições e dilemas morais entre família e poder. O enredo, no entanto, é mero pretexto para Anderson explorar seu verdadeiro interesse: a arquitetura da narrativa.

O roteiro trata o inesperado como um jogo de RPG de derivações infinitas e Anderson deleita-se em explorar cada possibilidade narrativa. A construção labiríntica exige atenção redobrada, mesclando complexidade estrutural e uma estética deliberadamente delicada — um equilíbrio que revela seu fascínio pela fragmentação e pelo controle minucioso. É o caos traduzido em precisão visual com cenários exuberantes, ação desenfreada e situações absurdas que coexistem sob uma mesma lente simétrica.

Comparado a Asteroid City, seu filme anterior, aqui Anderson introduz o humor de maneira orgânica (ainda que contida), sem recorrer a grandes efeitos cômicos. Essa leveza descontraída, marca de seus melhores trabalhos — como O Grande Hotel Budapeste, outro filme de espionagem e aventura com humor ácido —, serve de contraponto ao formalismo estético, quase como uma homenagem ao tom das aventuras de Tintim, de Hergé. Referências temáticas e visuais à obra do quadrinista ecoam nos planos meticulosamente diagramados e na aura de 'missão impossível' europeia.

Caro leitor, até aqui nos detivemos apenas na parte positiva da história, destacando seus méritos e aspectos criativos, amplamente reconhecidos. O lado menos solar dessa narrativa, porém, é a recorrente repetição de uma fórmula que, com pouca margem de erro, parece estar à beira do esgotamento. Wes Anderson vive um paradoxo em sua obra. O mesmo conjunto de elementos que o consagrou como um cineasta de estilo inconfundível agora o aproxima perigosamente de se tornar um pastiche de si mesmo. O diretor, afinal, está enclausurado em sua própria gaiola de ouro. Seu excesso de simetria e paletas de cores impecáveis, antes veículos de narrativas melancólicas ou satíricas, agora parecem servir apenas à autocitação. Em outros tempos sinônimo de inovação, sua assinatura visual corre o risco de se tornar mera decoração vazia.

Assistir O Esquema Fenício é realmente uma experiência, ainda que não inteiramente prazerosa. De início nos deleitamos com o deslumbramento estético de cores, formas, composições e arte visual. Em determinado momento, na metade do filme, passamos a ficar incomodados pela falta de rumo e propósito de uma história que se perde em digressões vazias sem avançar em um arco narrativo convincente que de fato nos seduza. Por fim, em seu terceiro ato, torcemos para que os minutos voem e o filme, enfim, chegue a um desfecho. Qualquer desfecho, desde que ponha fim à experiência.

Cada novo filme de Wes Anderson parece confirmar uma verdade curiosa: atuar em suas obras é certamente mais divertido que assisti-las. Essa ironia explica os elencos estelares que o cineasta consegue reunir. Em O Esquema Fenício a lista é tão prestigiosa quanto dispersa. Além do já citado protagonista Benicio Del Toro ainda temos em cena, em participações secundárias, mínimas ou secretas, nomes como Michael Cera, William Defoe, Tom Hanks, F. Murray Abraham, Bryan Cranston, Riz Ahmed, Benedict Cumberbatch, Bill Murray, Scarlett Johansson, Jeffrey Wright, Mathieu Amalric e Charlotte Gainsbourg.

É um espetáculo de nomes grandiosos a serviço de um filme que, no final, se revela mais um exercício de estilo do que uma narrativa satisfatória. Diante disso, talvez o verdadeiro divertimento para o espectador esteja em adotar o próprio espírito lúdico do realizador: transformar a experiência numa caça ao tesouro, explorando cada quadro em busca dessas estrelas perdidas no labirinto visual. Wes Anderson permanece um mestre incontestável no seu ofício, mas seu universo meticulosamente construído necessita urgentemente de mais alma e menos esquemas.

Assista ao trailer: O Esquema Fenício

Jorge Ghiorzi

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sábado, 24 de maio de 2025

Manas: a irmandade como resistência

 

Longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand, Manas é um filme que mergulha na complexidade da infância roubada e da resistência feminina em um cenário ao mesmo tempo belo e brutal: a Amazônia brasileira. A narrativa acompanha Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem prestes a entrar na adolescência, criada em um ambiente marcado pelo abuso e pela opressão de um pai violento. Seu desejo de escapar desse ciclo de dor a leva a uma jornada de descobertas, onde a solidariedade entre mulheres – sua mãe submissa, uma irmã que fugiu e outras figuras de sua comunidade – se torna sua única âncora de esperança.

Brennand constrói um filme que evita o apelo fácil, optando por uma abordagem mais sugestiva do que explícita. O abuso nunca é mostrado de forma gráfica, mas sua presença é palpável em cada olhar assustado, em cada silêncio tenso, na arquitetura precária da casa sobre palafitas que parece aprisionar suas personagens. A diretora captura a ambiguidade das relações familiares: a mãe que falha em proteger; a irmã mais velha que escapou das amarras de um destino inevitável, e por fim, a própria Marcielle, cuja inocência aos poucos se transforma em uma consciência dolorosa de que a fuga talvez seja sua única salvação.

A performance de Jamilli Correa é o coração do filme. Com uma expressividade rara para sua idade, a atriz transmite a mistura de vulnerabilidade e resiliência de Marcielle, tornando sua jornada profundamente comovente. A câmera a observa de perto, quase como uma cúmplice, reforçando a intimidade da narrativa. A fotografia, por sua vez, contrasta a beleza crua da Amazônia – o rio lamacento, a vegetação densa – com a asfixia do ambiente doméstico, criando uma metáfora visual para a contradição entre liberdade e aprisionamento.

O título Manas (termo coloquial para "irmãs") não é casual. O filme é, acima de tudo, sobre os laços entre mulheres em um mundo dominado por violência masculina / parental. Cada personagem feminina representa uma resposta diferente à opressão: a submissão, a fuga, a rebeldia ou a sororidade discreta. Brennand não oferece respostas fáceis. A mãe, por exemplo, não é vilã nem heroína, mas vítima de um sistema que a esmaga. A força do filme está justamente em sua nuance, evitando maniqueísmos para mostrar como o abuso é perpetuado e, ao mesmo tempo, como pode (e deve) ser desafiado.

Manas é uma estreia promissora para Brennand, confirmando seu talento para retratar dramas sociais com sensibilidade e primoroso senso estético. A escolha de narrar uma história tão dura através dos olhos de uma criança adiciona uma camada de poesia à crueza do tema, enquanto a direção de arte e a fotografia elevam o filme a um patamar quase onírico. Por opção narrativa da realizadora o filme evita um olhar sensacionalista e manipulador. A ausência de confrontos mais diretos ou de um clímax definido pode, à primeira vista, sugerir que o filme recua – mas é justamente aí que reside sua força. Manas é rigoroso em sua narrativa minimalista, apoiada em silêncios que dilaceram e olhares que suplicam. Sua profundidade está justamente em sua capacidade de apresentar os conflitos com uma simplicidade acachapante.

O filme de Marianna Brennand é uma obra importante, especialmente no contexto do cinema brasileiro contemporâneo, que muitas vezes negligencia histórias do interior sob perspectivas femininas. Premiado no Festival de Veneza, Manas chama atenção não só pela qualidade técnica, mas por sua urgência temática. Não é um filme fácil, por doer no fundo da alma, mas é certamente um daqueles que permanecem na memória e na consciência.

Assista ao trailer: Manas


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Missão: Impossível – O Acerto Final: o fim de uma era?

 

O último capítulo da saga Missão: Impossível é superlativo em suas ambições, não apenas nos riscos físicos e na ação vertiginosa que consolidaram sua marca, mas na ousadia narrativa de fragmentar seu desfecho em duas partes. A confiança absoluta no conceito levou os produtores a uma aposta audaciosa: desdobrar a missão final de Ethan Hunt em dois filmes seriados, estratégia que, em 2023, revelou apenas a primeira metade de um quebra-cabeça repleto de espetáculo. Se Acerto de Contas – Parte 1 apostou em um tom introspectivo, explorando as consequências das escolhas passadas de Hunt, Missão: Impossível - O Acerto Final (Mission: Impossible - The Final Reckoning) redireciona o foco para o espetáculo puro, em detrimento da profundidade. As sequências de ação, meticulosamente coreografadas, reafirmam o compromisso da franquia com o cinema prático, mas a divisão em duas partes levanta uma questão crucial: haveria substância suficiente para justificar a extensão, ou o desfecho sucumbe ao peso de suas próprias expectativas?

O Acerto Final dá continuidade ao cliffhanger explosivo do filme anterior, que deixou Ethan Hunt e a IMF à deriva. Após falharem em interceptar a chave que controla a Entidade (a IA renegada), o mundo mergulha em um caos invisível. Governos não confiam em seus próprios dados, aliados se tornam suspeitos e a ameaça de uma guerra nuclear paira no ar. Gabriel (Esai Morales), operador da IA, surge como um profeta do colapso, enquanto a missão de Hunt se concentra em recuperar o código-fonte capaz de neutralizar a Entidade — escondido em um submarino nuclear russo desaparecido em águas geladas e território disputado.

Se confirmado como o último capítulo, O Acerto Final marca o fim de uma era para uma das franquias de ação mais resilientes — e consistentes — do cinema contemporâneo. A dupla Acerto de Contas (7º filme) e O Acerto Final (8º filme) funciona como um épico de despedida, elevando a escala da série a patamares quase operísticos. A sensação de conclusão é trabalhada com nostalgia deliberada: desde os créditos iniciais, que revisitam cenas icônicas como a invasão ao cofre da CIA em Missão: Impossível (1996) ou a queda livre em Efeito Fallout (2018), até o resgate de personagens-chave como Luther (Ving Rhames) e Benji (Simon Pegg), cuja química com Hunt evoca décadas de parceria. Até Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), cujo destino ambíguo no filme anterior gerou polêmica, recebe um arco que encerra não apenas sua história, mas um ciclo de sacrifícios e redenção.

A direção de Christopher McQuarrie reforça esse tom de despedida com sequências que ecoam a mitologia da franquia: o trem em alta velocidade remete ao primeiro filme, enquanto os combates corpo a corpo revisitam a brutalidade de Efeito Fallout. Até o vilão Gabriel, com seu fatalismo filosófico, surge como antítese definitiva de Hunt, encapsulando o conflito entre dever e humanidade que sempre permeou a série. Em um momento especialmente simbólico, a sombra de Jim Phelps (Jon Voight) ressurge — um lembrete de que toda a jornada de Hunt começou com uma traição e talvez termine com uma última escolha entre missão e família.

O Acerto Final transcende o blockbuster convencional. Nas entrelinhas, o filme dispara um alerta sobre os perigos da inteligência artificial descontrolada — tema que ressoa com urgência em nossa era digital. A trama, envolta em conspirações high-tech, reflete as próprias inquietações de Tom Cruise, um crítico ferrenho da desumanização do cinema. Cada cena prática, cada façanha sem dublês, é um manifesto silencioso contra a substituição do real pelo virtual. Enquanto Hunt enfrenta uma IA para salvar o mundo, Cruise trava nos bastidores sua própria batalha pela preservação do cinema como experiência visceral. A franquia mantém sua tradição: sequências de ação espetaculares, com Cruise arriscando-se pessoalmente e um uso comedido de CGI. Em O Acerto Final, a perseguição aérea com aviões bimotores analógicos é um tributo ao cinema de raiz — onde criatividade superava limitações tecnológicas. É um espetáculo que homenageia o passado enquanto desafia os limites do presente.

Missão: Impossível – O Acerto Final é um epílogo digno, ainda que imperfeito. Se por um lado recorre excessivamente a flashbacks e referências nostálgicas, por outro eleva o espetáculo a níveis estratosféricos, equilibrando ação vertiginosa com um olhar melancólico sobre o fim da jornada. O filme encerra com um clima de festa que se despede, mas deixa a porta entreaberta — talvez para novas missões, talvez para um novo capítulo sem Cruise. Seja como for, Ethan Hunt entra para a história como o espião que tornou o impossível uma possibilidade, tanto na tela quanto nos bastidores.

Assista ao trailer: Missão: Impossível – O Acerto Final


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 24 de abril de 2025

Until Dawn – Noite de Terror: jogo de vida ou morte

 

Um dilema comum enfrentado por adaptações cinematográficas de videogames é como cativar não apenas os fãs do jogo original, mas também o público leigo. Diferentemente das adaptações literárias, filmes baseados em jogos carregam um imaginário visual já consolidado — cenários, personagens e mecânicas de narrativa interativa que definem sua essência. O grande desafio, portanto, é reinventar esse universo sem trair suas raízes. A adaptação Until Dawn – Noite de Terror consegue escapar parcialmente dessa armadilha ao abraçar seu tom autoirônico, optando pela diversão em vez do rigor narrativo. O resultado é um filme que, embora não ofereça algo exatamente original, entrega exatamente o que o gênero promete: um massacre cheio de estilo.

Um ano após o desaparecimento misterioso de sua irmã mais velha, Melanie (Maia Mitchell), a jovem Clover (Ella Rubin) decide reunir seus amigos — o cético Derek (Ji-young Yoo), a impulsiva June (Odessa A’zion) e o inseguro Danny (Anthony Ramos) — para uma viagem até uma hospedagem nas montanhas. O local, cercado por florestas densas e lendas sobre assassinatos não resolvidos, guarda uma pista perturbadora: assinaturas repetidas de Melanie no livro de visitas, todas datadas após seu sumiço. O que começa como uma investigação descontraída logo se transforma em um pesadelo quando o grupo percebe que não está sozinho. Encurralados por forças sobrenaturais e um assassino mascarado, os amigos precisam enfrentar não apenas o perigo iminente, mas também segredos do próprio passado — onde cada decisão errada pode desencadear um destino pior que a morte.

Inspirado no aclamado videogame Until Dawn (2015), o longa-metragem se passa no mesmo ambiente isolado e sombrio do jogo, mas expande a mitologia em torno do chamado "efeito borboleta" — conceito que gira em torno da ideia de que pequenas ações no presente determinam desfechos radicalmente diferentes no futuro. Essa premissa, que no jogo se traduzia em escolhas do jogador, no filme se transforma em uma sequência de reviravoltas calculadas, nem sempre sutis, mas eficazes para manter o espectador envolvido.

Dirigido por David F. Sandberg (conhecido por Shazam!, 2019, e Annabelle 2, 2017), o filme acumula clichês do terror: vilões brutais, personagens descartáveis e uma narrativa que não se afasta muito do arquétipo de "garotas em perigo". Clover, como a típica final girl, carrega o peso emocional da trama, enquanto os coadjuvantes preenchem os estereótipos do gênero — desde o alívio cômico até a vítima sacrificada.

Como uma versão sanguinolenta de Feitiço do Tempo (aquele onde o personagem de Bill Murray fica preso em um eterno recomeço de um dia que se repete sem fim), o roteiro se diverte ao apresentar mortes criativas — e repetitivas — para o elenco. O filme não economiza em carnificina: facadas, explosões e espancamentos se sucedem com um ritmo quase lúdico, como se Sandberg estivesse brincando com os tipos do gênero. A violência excessiva, longe de ser gratuita, torna-se parte do charme, ainda que o humor negro nem sempre atinja o equilíbrio ideal entre horror e comédia.

Until Dawn – Noite de Terror funciona melhor quando joga com o desconhecido. A mitologia, ainda que pouco explorada, serve como pano de fundo para cenas de tensão eficazes — como um close-up em uma fotografia antiga que, aos poucos, revela uma figura onde antes só havia vulto. O filme não precisa de monstros totalmente expostos; basta a promessa de que eles estão lá, esperando. Esta adaptação não é uma obra-prima do terror, mas também não pretende ser. Sua força está justamente em reconhecer suas limitações e apostar no entretenimento puro, sem pretensões profundas. Embora recicle clichês e dependa de uma mitologia já conhecida dos jogadores, o filme compensa com um ritmo ágil e um elenco carismático o suficiente para tornar a jornada divertida. Para fãs do jogo, é uma homenagem digna; para os novatos, um filme slasher competente que sabe brincar com as expectativas. No fim, cumpre seu papel: fazer o público rir, gritar e, quem sabe, conferir o jogo depois.

Assista ao trailer: Until Dawn – Noite de Terror


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 16 de abril de 2025

Pecadores: quando o blues encontra o Inferno

 

Após cinco anos moldando o universo de Pantera Negra - que rendeu duas obras de prestígio do cinema de super-heróis (2018 e 2022) -, Ryan Coogler liberta-se das amarras dos blockbusters para assumir as rédeas de seu projeto mais pessoal e arriscado. Pecadores (Sinners, 2025) rompe com a tradição das adaptações, pois trata-se de uma criação original nascida da mente do diretor, produzida por sua produtora Proximity Media. Neste terreno livre de concessões comerciais, Coogler não apenas desafia gêneros como reafirma sua maturidade artística, trocando os trajes heroicos por uma narrativa visceral que beira o confessional.

No calor opressivo do Sul norte-americano em 1932, os irmãos gêmeos Elijah e Isaiah (dupla interpretação de Michael B. Jordan) travam uma batalha dupla: contra a segregação racial e pela realização do sonho de criar um bar/clube de blues. O que começa como um drama histórico de resistência cultural transforma-se radicalmente quando criaturas noturnas - vampiros que personificam, metaforicamente, a Ku Klux Klan em sua essência mais monstruosa - declaram guerra à comunidade negra. Neste universo, o blues transcende sua função musical sendo ao mesmo tempo maldição e redenção, ponte para o inferno e arma contra seus mensageiros.

Pecadores é um experimento de alquimia onde o diretor funde drama de época, filme de gangsters, horror vampiresco, ação pulsante e musical - uma combinação perigosa que em tese flertaria com a tragédia. Coogler, porém, tece essas influências com a uma precisão de mestre. A longa, sinuosa e espetacular sequência da evolução da música negra (encenada no ambiente do bar) é particularmente deslumbrante: um balé cinematográfico que conecta séculos de história através de movimentos coreografados com intensidade quase religiosa. As referências - desde o blues sobrenatural de Um Drink no Inferno até o horror social dos zumbis de Romero - são assimiladas, não meramente copiadas. Até elementos visuais (postes de energia elétrica que simbolizam cruzes e revoadas de corvos como arautos do destino) servem à narrativa com naturalidade.

A primeira metade do filme constrói meticulosamente seu mundo: um drama sócio-histórico que mescla a crueza dos filmes de gangster com a autenticidade do cinema realista. Na segunda metade, quando ocorre a virada para o sobrenatural - onde os vampiros (todos brancos, todos famintos) iniciam seu cerco - é tão abrupta quanto necessária. Coogler aqui reproduz a essência do blues: a ruptura e a dissonância transformada em arte.

Pecadores poderia ter sido apenas mais um manifesto panfletário. Em vez disso, Coogler opta pela sofisticação. Sua crítica ao racismo estrutural é construída através de imagens e símbolos, nunca através de discursos. Os monstros não são meras metáforas, mas extensões lógicas de um mal histórico que nunca foi embora. A trilha sonora - personagem central da trama - não apenas ambienta, mas comenta a ação, criando camadas de significado que se revelam em cada revisitação.

O que Coogler entrega absolutamente não é uma reinvenção do cinema, mas um exercício muito bem-sucedido em elevar o entretenimento de gênero ao status de arte. Cada elemento - da direção, da fotografia, da trilha, da direção de arte - converge para criar uma experiência única. Pecadores é simultaneamente um soco no estômago e um poema visual, um filme que consegue ser intelectual sem perder seu poder de entreter. O diretor celebra a cultura negra não através da idealização, mas da confrontação honesta com seus fantasmas. A mistura de mitologia afroamericana, religiosidade e folclore resulta em um terror gótico sulista. Um alento criativo em um mar de fórmulas preguiçosas.

A experiência de Pecadores só se completa com a sequência pós-créditos - não um mero extra estilo Marvel, mas um epílogo que ressignifica toda a jornada e permanece na memória como o acorde final de um grande blues.

Assista ao trailer: Pecadores


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 2 de abril de 2025

Presença: espírito voyeur

 

O diretor Steven Soderbergh surgiu no cinema com o explosivo e polêmico (à época) Sexo, Mentiras e Videotape (1989), um marco do cinema independente que lhe rendeu aclamação precoce. Desde então, construiu uma carreira errática, alternando entre projetos autorais e obras de entretenimento — sempre com traços de inteligência acima da média, mas sem consolidar uma assinatura autoral definitiva. Sua marca, se é que existe alguma a ser destacada, é a versatilidade: um cineasta prolífico que transita entre muitos gêneros, do thriller ao drama, do experimental à comédia, da ficção científica ao policial. Em pouco mais de 40 anos de carreira, Soderbergh já dirigiu mais de 50 filmes, dividindo sua produção entre cinema e TV Neste ano de 2025 já estreou no Brasil seu drama de espionagem Código Preto. Agora, poucas semanas depois, Steven Soderbergh, volta aos cinemas com mais um lançamento: o thriller de horror Presença. (Presence, 2024). Nestes dois trabalhos o diretor repete um de seus vícios mais frequentes: o excesso de estilo em detrimento da substância narrativa.

Com roteiro de David Koepp (também autor de Jurassic Park, O Pagamento Final, Missão: Impossível I e O Quarto do Pânico) o filme apresenta o casal Rebekah (Lucy Liu) e Chris (Chris Sullivan) que se muda para uma nova casa com seus dois filhos Chloe (Callina Liang) e Tyler (Eddy Maday). Uma perda chocante no passado afeta Chloe, que juntamente com os demais membros da família busca restabelecer a normalidade. Aos poucos, porém, começa a perceber que naquela casa há uma “presença” invisível que observa todos os movimentos da família. Na sequência, eventos perturbadores assustam e ameaçam todos moradores da casa.


O filme se apoia em uma história em primeira pessoa, onde a câmera assume o papel de um espírito aprisionado em uma casa vazia. A movimentação peculiar do equipamento não é mero exibicionismo técnico, mas um recurso narrativo que busca fluidez e a ilusão de tempo real — artifício para expressar a percepção da verdadeira protagonista (uma entidade sobrenatural). Diferente de filmes que simulam a ausência do invisível, Presença o torna explícito, quase tangível, guiando a ação como um voyeur ativo. O clima remete a Poltergeist, mas com o adendo de oscilar entre o físico e o metafísico, sem, no entanto, mergulhar profundamente em nenhum dos lados. O que resulta em uma tremenda deficiência do filme de Steven Soderbergh.


A trama também esboça uma crítica ao descompasso entre pais e filhos em um mundo hiperdigitalizado, tema relevante, porém tratado de forma superficial. Como em grande parte da filmografia do diretor, há ideias interessantes, mas executadas com frieza emocional. Os planos-sequência — embora eficazes para imersão — tornam-se repetitivos, e a narrativa perde força por conta de uma trama que não consegue sustentar a curiosidade inicial.


Presença é um filme mediano que não oferece uma efetiva experiência significativa, seja como horror ou seja como suspense. A premissa, que empolga nos primeiros momentos, logo se torna redundante, repetitiva e perde seu apelo. Falta consistência na trama e envolvimento emocional para sustentar o interesse. Apesar da técnica precisa e da proposta conceitual válida, a experiência não empolga: falta tensão genuína, desenvolvimento de personagens e um clímax satisfatório. Soderbergh mais uma vez demonstra habilidade como artesão, mas falha em entregar algo além de um exercício estilístico vazio. O espectador fica com a sensação de ter assistido a um experimento formal interessante, porém esquecível.

Assista ao trailer: Presença


Jorge Ghiorzi

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