terça-feira, 6 de junho de 2017

“Mulher-Maravilha”: heroína para os novos tempos


O primeiro filme solo da heroína dos quadrinhos nasceu sob o signo da desconfiança. E razões não faltavam. A começar por ser uma personagem da DC, que, convenhamos, não tem tido muita sorte (ou competência) em suas adaptações cinematográficas. Outro fator de suspeição era o histórico desfavorável das personagens femininas protagonistas no universo dos super-heróis, quando chegam às telas. Quem não lembra dos fracassos monumentais da Mulher-Gato e Elektra? Ou seja, havia muitos riscos envolvidos na primeira aventura cinematográfica da Mulher-Maravilha. No entanto, apesar de todas as adversidades potenciais que rondavam a produção, o filme se mostra um êxito absoluto sob qualquer ângulo de análise, seja como entretenimento, seja pelas expressivas bilheterias, seja pelas possibilidades de estabelecer, de maneira afirmativa, a primeira franquia de real futuro da DC no cinema.

A exemplo do Capitão América (da Marvel), a Mulher-Maravilha também é uma personagem fora de seu tempo. No caso da heroína, fora de seu espaço também, pois abandona seu idílico mundo feminino na oculta ilha de Themyscira para ingressar no mundo dos Homens (no sentido mais amplo da palavra) em plena Guerra Mundial. Este é o primeiro conflito apresentado em Mulher-Maravilha (Wonder Woman), o filme. A princesa amazona Diana Prince (Gal Gadot) é uma personagem idealista, deslocada numa terra que desconhece, regida por regras e ambições individualistas que custa a entender. A pureza de sentimentos e convicções morais que cultua em sua civilização entra em choque com as fraquezas éticas e morais de um mundo movido pelo ódio, ganância e luta pelo poder. A Mulher-Maravilha é uma heroína do passado que resgata valores básicos de justiça, paz e harmonia, muito bem-vindos nos dias que correm.


A ambientação no período da Grande Guerra oferece um cenário perfeito para estabelecer o choque de realidade da Mulher-Maravilha, que percorre sua jornada a partir de um idealismo quase inocente para uma personagem que transita e sobrevive se adaptando ao meio ambiente hostil. Para tanto enfrenta vilões bem humanos (incluindo uma vilã) e também adversários mitológicos dotados de super poderes. Por tratar-se de um filme de origem, Mulher-Maravilha oferece o esperado pacote completo, onde o arco da evolução da personagem é um tanto acelerado no primeiro ato para dar conta de entregar uma super-heroína “pronta” para os atos dois e três da aventura. Mas nada que comprometa significativamente o interesse. Pelo contrário, aliás. A história é envolvente e cativa em poucos minutos. Afinal, estamos diante de uma HQ transformada em filme, com todas as liberdades e licenças artísticas que uma adaptação se permite fazer.


A direção de Patty Jenkins, a mesma de Monster – Desejo Assassino (com Charlize Theron), é competente nas sequências de ação e sensível nos momentos mais intimistas, recorrendo a pequenas piadinhas sexistas disparadas contra o universo dos homens. Equilibradas e provocativas na medida, sem exagero, diga-se, e totalmente afirmativas no terreno minado dos super-heróis, dominado pelas figuras masculinas. Neste ponto, Mulher-Maravilha ganha pontos preciosos e conquista merecido espaço para futuros projetos no gênero.


Parte significativa dos acertos de Mulher-Maravilha deve ser creditada à atriz Gal Gadot, que já havia estreado na pele da heroína no irregular Batman vs Superman: A Origem da Justica em 2016. Ex-Miss Israel de 2004, e ex-integrante do exército israelense, Gal Gadot encarna com paixão, garra e convicção a princesa amazona. Sua formação militar fica evidente nas sequências de ação, quando sua figura cresce em cena ganhando vigor e força nas coreografias. No entanto, fica um tanto a dever nos momentos onde a personagem exige um pouco mais de talento dramático. Ainda assim, o saldo final é positivo. Gal Gadot se apropriou definitivamente da personagem, e o que vem daqui para a frente deverá fazer a alegria dos fãs.

Assista o trailer: Mulher-Maravilha

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Tortura do Medo": um homem, uma câmera


O cineasta britânico Michael Powell sempre foi reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.

Com uma extensa filmografia de prestígio, nada faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom). Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce ostracismo.


Considerando a perspectiva histórica, parece compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se em conta a carreira do realizador. A Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em junho, Psicose de Alfred Hitchcock chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos. Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult movie”.

 “Peeping Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.


“Tudo que eu filmo, eu sempre perco”

O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador Francisco José nos três filmes da série Sissi), um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário, cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos míticos “snuff movies”).

A origem deste comportamento estaria no passado do protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo de registrar a verdadeira emoção humana em filme.

Com um roteiro original, de forte caráter freudiano, A Tortura do Medo discute o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão. Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados distorcidos, desconectados da realidade.


No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.

Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e sobre o cinema, a exemplo de Blow Up, de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio, de Federico Fellini; O Desprezo, de Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de Brian de Palma e Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.

Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 25 de maio de 2017

"Westworld": perigos da tecnologia


O lançamento da série de TV Westworld, pela HBO, propicia a revisão do pequeno clássico cult dos anos 70, matriz da nova produção que chega às telinhas com status de superprodução, muita ambição e a assinatura da grife J. J. Abrams – Nolan.

Fruto da prodigiosa imaginação do prolífico escritor Michael Crichton (“Enigma de Andrômeda”, “O Homem Terminal”, “Sol Nascente”, “Assédio Sexual” e “Jurassic Park”), Westworld, o filme, foi lançado num período onde a ficção científica vivia um momento de alta no cinema. Ao especular o impacto da tecnologia na humanidade, a ficção científica na literatura discute a condição do homem em seu próprio tempo e sua perspectiva de futuro. O cinema, ao compartilhar esta visão - por vezes pessimista - de mundo, encontra o ponto de virada do gênero, rumo à maturidade, em 1968, quando Stanley Kubrick lança 2001 – Uma Odisseia no Espaço. A partir de então, o gênero poderia ir avante e além de um mero entretenimento descartável. Logo em seguida, em 1971, George Lucas vem com sua fábula distópica THX 1138.


Neste contexto Westworld, que no Brasil recebeu o inspirado subtítulo Onde Ninguém tem Alma, chega aos cinemas em 1973 com direção do próprio Michael Crichton, falecido em 2008. Cineasta bissexto, Crichton eventualmente se aventurou no cinema como diretor de filmes como O Primeiro Assalto de Trem, Coma e Runaway – Fora de Controle.

Em algum tempo de um futuro não muito distante, existe um paraíso na Terra. Com o nome de Delos, este paraíso é um parque de diversões para adultos, sonho de consumo de uma elite endinheirada. Sim, a diversão não é para todos os bolsos: 1.000 dólares por dia. O parque recria três universos distintos: o Mundo Romano, o Mundo Medieval e o Mundo do Velho Oeste. Todos habitados por androides de altíssima tecnologia, simulacros perfeitos do ser humano. O barato da brincadeira é vivenciar uma fantasia virtual propiciada por um cenário cuidadosamente preparado para aparentar uma ilusão de realidade. No Mundo Romano o “visitante” pode participar de banquetes orgiásticos regados com muito vinho e erotismo, no Mundo Medieval pode viver em Castelos usufruindo as delícias da Corte, ou, no Mundo do Velho Oeste pode virar caubói, cavalgar pelos vilarejos e, com alguma sorte, duelar com pistoleiros mal encarados, sem o risco de perder a vida. Essa é a grande sacada da diversão: os androides não podem, sob hipótese alguma, infligir mal ou qualquer dano físico aos visitantes do parque. Mas, a tecnologia, como uma boa ficção científica nos alerta, mesmo quando domesticada e massificada, não é infalível. Problemas ocorrem e as consequências podem ser devastadoras.


O encantamento com as possibilidades da ciência é a fonte primeira que inspira a ficção científica em narrativas literárias ou cinematográficas. As máquinas, que podem ser parte da solução dos problemas, invariavelmente são também apontadas como causadoras de novos problemas, desde a Revolução Industrial diga-se. Nasce aí o conflito central que baliza a história narrada em Westworld.

O filme de Crichton dá mostras de não ter resistido bem à passagem do tempo com sua produção um tanto modesta e precária (mesmo para a época). A narrativa é excessivamente lenta para os tempos atuais. No entanto, curiosamente, é justamente naquela estética típica dos anos 70 que reside parte de seu charme cult. A premissa, por demais interessante, seria revisitada pelo próprio Crichton anos depois ao criar Jurassic Park: um parque de diversões criado para o deleite (o paraíso), com tecnologia de ponta e o “demônio” da pane nas criações do homem quando brinca de deus (o inferno).


Imagem símbolo de Westworld, o pistoleiro assassino vivido por um improvável Yul Brynner (O Rei e Eu) certamente está na galeria dos mais icônicos androides / robôs da história do cinema. Sua vilania implacável e obstinada, guiada por assustadores olhos metálicos, domina a história, estando ou não em cena, transformando os protagonistas (interpretados por Richard Benjamin e James Brolin, pai de Josh Brolin) em meros coadjuvantes.

Três anos depois, em 1976, Westworld ganhou uma continuação malsucedida, chamada Ano 2003 – Operação Terra (Futureworld no original), estrelada por Peter Fonda.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 13 de maio de 2017

"Rififi": a arte do crime


Integrante da Lista Negra de Hollywood, o cineasta Jules Dassin foi vítima do Comitê de Atividades Antiamericanas no início dos anos 50. Presidido pelo senador Joseph McCarthy, o comitê perseguia, investigava, julgava e condenava comunistas ou simpatizantes de ideias esquerdistas infiltrados na comunidade artística dos Estados Unidos, particularmente no cinema. Delatados por colegas de profissão, uma geração de realizadores, produtores, atores e roteiristas ficou marcada por esta perseguição. Muitos perderam empregos, foram impedidos de trabalhar e sustentar suas famílias. Outros foram forçados ao exílio e buscaram refúgio na Europa. Esse foi o caminho de Jules Dassin, que se radicou na França em busca de novas oportunidades de trabalho. Neste período o diretor foi procurado por um produtor local que propôs a adaptação de um pequeno livro policial francês. A produção seria de baixo orçamento, sem grandes estrelas, mas, vá lá, era uma oportunidade de trabalho, e Dassin aceitou, apesar de não ter gostado do livro.

Este foi o contexto que antecedeu a realização de Rififi (Du rififi chez les hommes), filmado em 1954 e lançado no ano seguinte a partir de sua participação no Festival de Cannes, onde recebeu o prêmio de melhor direção. Passados 60 anos de sua estreia, Rififi ostenta o título de uma das melhores produções do gênero policial de todos os tempos e um marco dos filmes noir, ainda que realizado na Europa. François Truffaut declarou, à época: “Foi o pior romance policial que eu li, mas Jules Dassin realizou o melhor filme policial que eu assisti”. E o crítico André Bazin completou afirmando que Rififi “quebra as convenções dos filmes policiais e consegue tocar nossos corações”.


Ao longo dos anos Rififi foi se notabilizando, não sem razão, por apresentar a mais espetacular sequência de roubo já vista no cinema. No entanto, curiosamente, no livro a sequência do assalto à joalheria era apenas um detalhe em meio à história. Jules Dassin, numa decisão acertada, optou transformar o roubo na espinha dorsal da sua narrativa. O resultado foi esta pequena joia cinematográfica montada em três atos.

Recém saído da prisão, o renomado mas decadente criminoso Tony (Jean Servais) recebe do velho parceiro Jo (o ”sueco”), a proposta para assaltar uma joalheria. Inicialmente recusa, mas ao saber que sua ex-amante agora está vivendo com um gangster, se desilude quanto ao seu futuro de regeneração e acaba cedendo ao convite. Juntamente com outros dois comparsas italianos Mário e César (interpretado pelo próprio Jules Dassin com o pseudônimo de Perlo Vita) iniciam os preparativos para o ousado plano de invadir a joalheria e arrombar o cofre que guarda as joias mais valiosas. O planejamento e a minuciosa execução correm perfeitamente bem, porém a falibilidade e ambição de um dos integrantes, pós-roubo, colocam tudo a perder e a tragédia anunciada se confirma.

Realizado no período de gestação da Nouvelle Vague francesa, que despontaria para o mundo em 1959 com a exibição de Os Incompreendidos de Fraçois Truffautt no Festival de Cannes, Rififi, ainda que obedeça aos cânones do chamado cinema clássico, representou um suspiro de renovação ao gênero policial e ao cinema como um todo. A montagem “invisível”, a unidade temporal e o realismo aparente estão presentes, e predominam a narrativa enxuta. O aspecto que chamou a atenção foi a riqueza dos personagens e suas nuances psicológicas, algo pouco usual no período, que privilegiava as histórias em detrimento dos participantes do grande jogo cênico que uma representação cinematográfica impõe.


Além da excepcional fotografia em preto e branco, que explora brilhantemente cenários e enquadramentos de uma Paris constantemente cinza, e de uma montagem eficiente, a serviço de uma narrativa sólida e consistente, o grande destaque de Rififi é, evidentemente, a sequência do roubo das joias. Como diria aquela propaganda, “sempre imitada, nunca igualada”, a sequência se transformou em paradigma para o gênero que inspira cineastas desde então. O realizador Jules Dassin foi ousado ao conceber aquela encenação. Com duração de 25 minutos (quase 1/3 da duração do filme) a sequência não utiliza música, não possui diálogos e é praticamente silenciosa, a não ser por pequenos ruídos ocasionais que só corroboram o realismo e acentuam o pesado clima de suspense. Cinema em estado puro.

Quando lançado, Rififi foi por algum tempo proibido em alguns países sob a alegação de ser demasiadamente “didático” para inspirar mentes criminosas no mundo real. E, de fato, alguns assaltos ocorridos nos anos seguintes contaram com algumas das técnicas apresentadas no filme. Nos Estados Unidos Rififi fez uma trajetória um tanto acidentada pela interferência do Comitê, mas, mesmo assim, foi aclamado pela crítica norte-americana que o cobriu de elogios. No início dos anos 2000 foi relançado nos EUA com uma nova cópia de 35mm, que contou com a colaboração do próprio Dassin (falecido em 2008). O crítico Roger Ebert incluiu a produção em sua lista de Melhores Filmes e afirmou que as influências de Rififi podem ser encontradas desde O Grande Golpe (Stanley Kubrick, 1956) até Cães de Aluguel (Quentin Tarantino, 1992).

(Originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 10 de maio de 2017

“Corra!”: fábula de terror


Um homem negro caminha à noite pelas calçadas de um típico bairro de classe média. Quando se dá por conta, está sendo seguido por um carro suspeito. A respiração fica ofegante, pois ele sabe que o seu destino já parece estar traçado.

O surpreendente drama de suspense Corra! (Get Out, 2017) abre com este prólogo que já oferece a linha temática que conduzirá a história que acompanharemos na sequência: o preconceito racial. Porém, a abordagem que o filme dará ao tema foge do óbvio e vai muito além de uma mera manifestação de preconceito, ao combinar crítica social e supremacia étnica e discriminação racial com doses pesadas de terror e angústia. Mistura inusitada, mas altamente letal para abalar os nervos da plateia. Sucesso de público e crítica nos Estados Unidos, Corra! está chegando aos cinemas brasileiros. Dirigido e escrito pelo comediante Jordan Peele, o filme pode ser descrito como uma fábula de terror que explora medos e fantasias de uma sociedade que hipervaloriza as aparências e cultua o individualismo. Alguém aí lembrou de Black Mirror?.

O bem sucedido fotógrafo Chris (o ótimo Daniel Kaluuya) namora a bela Rose (Allison Williams, da série Girls). Tudo corre bem com o relacionamento do casal, mas a luz vermelha de alerta acende para ele quando ela decide finalmente levá-lo para ser apresentado a seus pais, Dean (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener). A preocupação de Chris se justifica, afinal, eles formam um casal inter-racial (ele, negro, ela, branca). A inicialmente calorosa recepção dos pais da namorada logo começa a dar sinais de que algo muito perturbador está se passando e algum segredo se esconde naquela casa.


Corra! desenvolve uma curiosa versão do que poderíamos chamar de “eugenia reversa”. Lembrando o conceito básico, a Eugenia, segundo a ideologia nazista, preconizava a “supremacia racial” dos arianos em relação aos judeus, negros e outras raças. Pois no filme de Jordan Peele os personagens caucasianos (brancos), antes de se limitarem apenas a exercer seu preconceito racial, na verdade estão mais interessados justamente nas reconhecidas vantagens genéticas e biológicas atribuídas aos negros, tais como força, saúde e longevidade.

Em certa passagem o patriarca da família, Dean, lembra e exalta as qualidades físicas e atléticas de Jesse Owens, o atleta negro norte-americano que venceu todos seus oponentes brancos, especialmente os alemães, para desgosto de Hitler, nos Jogos de Olímpicos de Berlim em 1946. A tese da supremacia atlética dos arianos caiu por terra. A ideia que Dean pretendia passar é de que reconhece o valor da conquista de Jesse Owens, apesar dele ser negro. E completa afirmando com ele próprio possui amigos negros e até votaria novamente em Barack Obama, se fosse possível. Atitude clássica que mais revela do que dissimula um mal disfarçado preconceito.


O tema do racismo permeia o longa do primeiro ao último minuto, ora de forma explícita, ora de forma oblíqua, ora de forma velada. Os diferentes tons desta questão fazem o jogo no qual se sustenta o suspense da narrativa. Tudo poderia ser apenas um grande equívoco. Ou na verdade o apavorado Chris estaria apenas superestimando seu próprio racismo defensivo. Ou sim, estaríamos diante de uma história assustadora e impensável. A plateia alterna constantemente seus sentimentos, se agarrando em pequenos sinais e avisos que vão surgindo enquanto as situações evoluem. A angústia do personagem é também a nossa angústia. Este é o grande trunfo de Corra!.

Os problemas de um casal inter-racial já foram objeto de atenção em inúmeros filmes, de diversos gêneros. Um dos mais estimados e lembrados é Adivinhe Quem Vem Para Jantar, estrelado por Sidney Poitier, Spencer Tracy e Katharine Hepburn. Lançada há exatos 50 anos, esta produção guarda semelhanças com a premissa de Corra! ao também contar a história de uma jovem (branca) que vai visitar os pais para apresentar seu namorado (negro) com quem pretende se casar. O tratamento é de comédia dramática, mas o tema revelador da discriminação racial está igualmente presente.

O roteiro de Corra! é original e bem resolvido em termos dramáticos, apesar de ser um tanto rápido e inconclusivo no desfecho em relação a certas questões que ficam em aberto. A experiência exasperante do protagonista é envolvente e perturbadora na medida adequada, sem excessos. O tema de fundo, a questão racial, recebe uma abordagem criativa, a milhas de distância de um discurso meramente panfletário. Corra! é uma produção admirável, seja pela ótica da crítica social, seja como exercício de terror.

Assista o trailer: Corra!

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 9 de maio de 2017

“Alien - Covenant”: retorno ao terror espacial


O anúncio de retomada dos filmes da série Alien em 2012 com Prometheus encheu de expectativas os fãs, especialmente porque o criador original, Ridley Scott, estava de volta à frente do projeto, assumindo a direção. O resultado final foi um tanto frustrante e decepcionou muita gente (embora hoje a produção mereça uma reavaliação menos apaixonada). Cinco anos depois, estamos diante de mais uma tentativa de dar novo rumo à franquia. Alien – Covenant, que está chegando às telas mundiais com expectativas renovadas, é a aposta de Scott para dar sequência à saga criada em 1979.

Em termos cronológicos, Covenant se passa 10 anos após Prometheus. O início de Covenant repete o início de Prometheus, que por sua vez se baseia na premissa inicial de Alien, ou seja: nave espacial altera os planos iniciais de sua missão e chega uma terra estranha para explorar um “chamado”. Tudo começa com a nave Covenant que transporta milhares de embriões humanos para colonizar o planeta Origae-6. A tripulação está hibernando e o comando da missão (que deve durar mais de sete anos) está sob responsabilidade do andróide sintético Walter (Michael Fassbender).


Um acidente cósmico obriga o despertar antecipado de todos os integrantes da missão. Enquanto realizam os consertos necessários na nave, eles recebem sinais originados de um planeta desconhecido, que apresenta condições de abrigar vida humana. Uma decisão do comandante (que se mostraria equivocada, óbvio) muda os planos da missão e decidem tentar a colonização naquele mundo novo. Ao pousarem na superfície descobrem que naquela terra já houve uma civilização e o único habitante solitário é o androide David (também Michael Fassbender), sobrevivente da missão do Prometheus. Mas será que ele estaria mesmo sozinho?

Um dos destaques do Alien original de 1979 era a forte presença da comandante Ellen Ripley (Sigourney Weaver), a personagem feminina que carregava o filme. Entre tantas outras referências à origem da série, Covenant tenta repetir a experiência com um protagonismo feminino, desta vez com a figura da cientista-comandante Daniels. Mas a personagem é pouco delineada, frágil e mal resolvida com seu arco dramático motivado pela perda do companheiro. Sem falar no pouco carisma da atriz Katherine Waterston (Animais Fantásticos e Onde Habitam) que compromete ainda mais a empatia do público.


A sensação de confinamento está na matriz genética da saga Alien, daí entende-se o protagonismo das naves espaciais nos três filmes dirigidos por Ridley Scott. Os melhores resultados foram indiscutivelmente alcançados na estreia da série. A nave “Nostromo” realmente fechava a ideia de um ambiente isolado e exposto às ameaças do espaço (“onde nenhum grito será ouvido”). O espaço físico, o ambiente, tornava-se simultaneamente cenário e personagem. Ao reencontrar-se com este universo, criado por ele próprio, Scott tentou resgatar este DNA da saga, a ponto de intitular o filme com o nome da nave: “Prometheus”. E fez o mesmo mais uma vez com a “Covenant”. Mas algo se perdeu nesta jornada. O truque perdeu força e a magia não se repete. A exemplo do xenomorfo, o DNA da série sofreu mutação. Os resultados foram diluídos ao longo do tempo e o impacto já não impressiona tanto. Parece que estamos diante de mais um daqueles casos clássicos onde a criatividade artística sucumbe sob o peso da abundância de recursos e tecnologia.

O terceiro ato de Alien – Covenant abandona qualquer vestígio de sua proposta inicial de thriller de ficção científica, com tendência existencialista, e se lança abertamente como um filme de ação. Teria o espírito de J. J. Abrams tomado conta de Ridley Scott? A versão anabolizada do Star Trek de J. J. seria uma inspiração para o ritmo final de Alien - Covenant? O exagerado confronto final com o alienígena deixa muita saudade do primor de suspense e pavor do ato final do Alien original de 1979. Com elementos minimalistas (efeitos sonoros, trucagens analógicas, edição enxuta e Sigourney Weaver em trajes sumários) Ridley Scott foi muito mais eficiente do que desta vez, com toda a opulência visual do desfecho de Covenant.


A volta de Ridley Scott, mais de 30 anos depois, ao universo expandido de Alien em Prometheus, e agora com Covenant, talvez tenha sido um tanto tardia, e a mão já não seja mais a mesma de outros tempos. Semelhante ao caso dos retornos de Francis Coppola e George Lucas às sequências de seus maiores êxitos (respectivamente O Poderoso Chefão e Star Wars). Passados tantos anos, algo inevitavelmente se perde pelo caminho.

Dados os resultados alcançados, quando mais uma vez Ridley Scott falha ao retomar o comando da série, parece ter sido prudente que a direção da continuação de Blade Runner tenha saído das mãos de seu criador (Scott será apenas o produtor). Em tese a escolha de Denis Villeneuve foi acertada, apesar de ter sido questionada na época. A cada novo projeto cresce a sensação de que o prestígio de Ridley Scott como diretor sobrevive apenas graças às glórias do passado.

Assista o trailer: Alien - Covenant

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 4 de maio de 2017

"Café Society": a paixão segundo Woody Allen


Tão certo quanto às quatro estações é a confirmação de um novo filme de Woody Allen todos os anos. Pelo menos tem sido assim desde 1982 quando lançou "Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão". São 34 anos de produção regular e ininterrupta. Então, estamos diante do Woody Allen safra 2016: Café Society. E, ficando ainda no campo das analogias, esta safra deve ser degustada com prazer e deleite que somente os bons vinhos podem proporcionar.

Depois de viajar por Londres, Barcelona, Paris e Roma com seus filmes, Woody Allen volta seu olhar carinhoso para uma de suas maiores paixões: a cidade de Nova Iorque. A outra paixão, o Jazz, também compõe a ambiência desta nova obra que se desenrola parcialmente no lado oposto do país, na Los Angeles dos anos 30, época de ouro do cinema de Hollywood, dos grandes estúdios, dos poderosos produtores, da ostentação e do star system que cultuava o glamour das grandes estrelas da tela. É neste cenário de sonhos e promessas que chega à cidade o protagonista Bobby (Jesse Eisenberg), um jovem judeu novaiorquino em busca de oportunidades. Acaba indo trabalhar com seu tio Phil (Steve Carrel), um poderoso agente de cinema. O choque cultural é imediato. Saído da dureza fria de uma Nova Iorque realista, Bobby se vê imerso no universo das futilidades de uma Los Angeles ilusória. A única ponte com o "mundo real" é a jovem secretária do tio, Vonnie (Kristen Stewart). O que inicialmente parecia ser apenas uma identificação de alma com o espírito independente daquela jovem imune ao mundo afetado de Hollywood, acaba se transformando em paixão. Bobby e Vonnie passam a se relacionar. Uma ilha de idílio em meio à frivolidade das relações pessoais daquela cidade ensolarada e existencialmente vazia.


"O sonho é um sonho"

Todo o primeiro ato de "Café Society" tem como cenário esta Los Angeles. Paixão, jazz, amores declarados, amores divididos, amores desfeitos. Escolhas e renúncias. Pano rápido. Estamos em Nova Iorque. Vida nova para os protagonistas. O sonho de L. A. dá lugar à realidade de N. Y. Separados por circunstâncias incontornáveis, Bobby e Vonnie seguem caminhos distintos, porém marcados pelo gosto amargo de impossibilidade de um sonho não realizado em sua plenitude.

Romântico e apaixonado (pela trama e pelos protagonistas) como poucas vezes em sua carreira, Woody Allen entrega um filme de fina sensibilidade, sem deixar de lado sua ironia crítica, sempre amparada por personagens cativantes e diálogos espirituosos. Reconhecido por sua excelência como criador de frases de efeitos e tramas bem montadas, Allen por vezes deixava a sensação de não desenvolver adequadamente seus personagens, ficando apenas na superfície da exposição de tipos meramente característicos. Pois, em Café Society o realizador se entregou totalmente e mergulhou fundo na verdade de seus protagonistas tornando-os críveis, capazes de conquistar a empatia da plateia. Ao opor L. A. e N. Y., sonho e realidade, e todas as contradições intrínsecas das paixões, Woody Allen entrega uma narrativa enxuta, coesa e cativante.

(Originalmente publicado no site DVD Magazine em setembro de 2016)

Jorge Ghiorzi