quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A Linha da Extinção: proibido ultrapassar

 

Nos últimos anos o título de uma leva de filmes de gênero (suspense, terror e até comédia), em sua versão brasileira, tem adotado a prática de dar ordens de comando aos personagens / espectadores, tipo “não olhe”, “não conte”, “não fale”, “não case”, “não abra”, “não se mexa” e “não solte”. O thriller de ação e ficção científica A Linha da Extinção (Elevation, 2024) não se enquadra exatamente nesta moda, mas muito bem poderia se chamar “Não Desça”. Na premissa do filme as populações de um mundo pós-apocalíptico se refugiam nas zonas altas das montanhas. A recomendação é de que não se desça abaixo dos 2.400 metros de altura, a chamada linha da extinção. Ao ultrapassarem este limite as pessoas são atacadas por criaturas monstruosas de origem desconhecida.

Em uma desta comunidades, uma pequena vila na verdade, moram os protagonistas: Will (Anthony Mackie), com seu filho Hunter que sofre de problemas respiratórios, Nina (Morena Baccarin) e Katie (Maddie Hasson). A localidade foi criada há três anos, após os acontecimentos que marcaram o surgimento dos “ceifadores”, os seres que emergiram misteriosamente do subsolo para ocupar e dominar o planeta. A origem do êxodo das pessoas para as montanhas é narrada com muita síntese durante os créditos de abertura. Pressionados pela crescente escassez de alimentos e pela necessidade de suprimentos médicos para Hunter, o trio decide empreender uma perigosa missão em busca de recursos em um hospital abandonado, localizado bem abaixo da linha da extinção de 2.400 metros.


A jornada de sobrevivência do grupo em meio hostil é o mote da trama central da ação de A Linha da Extinção, que tem a direção de George Nolfi (de Os Agentes do Destino). Outro ingrediente que tempera a aventura é a relação de antagonismo que existe entre os integrantes do trio. Todos possuem um passado comum cujas consequências, de alguma maneira, se refletem no presente causando um tensionamento nas relações, que explodem justamente no momento menos apropriado: quando embarcaram em uma perigosa viagem. 

Os cenários naturais das montanhas do Colorado são muito bem utilizados contribuindo para o dinamismo de boas tomadas com drones. Uma das sequências a se destacar é a do teleférico que garante bons momentos de suspense e tensão, onde o cenário natural assume importante papel narrativo. Neste aspecto relacionado ao ambiente, onde a ameaça da trama surge da natureza, o filme A Linha da Extinção se aproxima – ou ao menos lembra demais - do universo dos filmes da franquia Um Lugar Silencioso, que também lida com as ameaças do desconhecido que destroem o mundo que conhecemos.


A produção do filme traz os nomes de Anthony Mackie e Morena Baccarin, o que lhes garante o protagonismo compartilhado, porém com resultados diversos. Enquanto Mackie (o novo Capitão-América), que faz o papel de um pai dedicado que arrisca a vida para salvar a vida do filho, possui poucos momentos para brilhar de verdade, a brasileira Morena Baccarin (de Deadpool) ganha bastante espaço para desenvolver uma personagem com uma pesada carga emocional interior e também uma missão pessoal de descobrir uma maneira de eliminar as criaturas.


A ação de A Linha da Extinção é bastante convencional, com soluções previsíveis e situações clichê. Um pecado mortal é o excesso de diálogos expositivos, como que a prestar contas ao espectador sobre os fatos que estão acontecendo. A bem da verdade o filme não possui grandes ambições justamente por reconhecer sua dimensão, pois é a típica produção com o perfil de grande circulação nas plataformas de streaming, onde possivelmente possa ter vida longa. A propósito, o gancho para a provável sequência é apresentado na cena pós-créditos.

Apesar de estar longe de ser filme do qual lembremos por muito tempo, A Linha da Extinção é um entretenimento que não ofende a inteligência do espectador. É rápido e conciso, para assistir com o cérebro desligado. 

Assista ao trailer: A Linha da Extinção


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Herege: questão de fé

 


Duas garotas sentadas em um banco de rua conversam amenidades até que o assunto inesperadamente passa para temas explicitamente sexuais. Completando o quadro, a câmera se afasta e exibe uma propaganda de preservativo no encosto do banco. Uma ironia contraditória se estabelece nos primeiros minutos de Herege (Heretic, 2024) quando descobrimos que as duas garotas em conversa tão liberal são na verdade missionárias católicas que tem como tarefa conquistar novos fiéis através da palavra. A missão do dia é visitar um homem descrente para convertê-lo para a religião. O homem em questão é o misterioso e recluso Sr. Reed (Hugh Grant) que vive isolado em um casarão. 

O thriller de horror psicológico Herege é uma produção da A24, dirigido pela dupla Scott Beck e Bryan Woods, que tem como destaque o protagonista: Hugh Grant. Conhecido por uma série de comédias românticas como Quatro Casamentos e Um Funeral, Um Lugar Chamado Notting Hill e Simplesmente Amor, aqui Hugh Grant está em registro sombrio e maligno, completamente oposto à persona que criou no cinema, ainda que preserve parcialmente alguns trejeitos de seus papéis mais cômicos, quando faz o cara legal e simpático. O que, a propósito, muito contribui para a construção do sarcasmo deste personagem complexo.


Ao receber a visita das duas jovens o Sr. Reed manifesta interesse em ouvir as palavras de fé trazidas pelas missionárias. A contragosto elas aceitam entrar na casa com um homem que vive só. A pregação começa amigável e descontraída, até que em dado ponto Reed passa a dominar a conversa e conduz as ações. Ele debocha e deprecia todos os aspectos dogmáticos das religiões segundo sua interpretação torta e distorcida. Seu principal propósito é contestar e destruir verdades estabelecidas, contradizendo todo o discurso das missionárias. Segundo sua tese todas as ideias religiosas existentes são plágios reelaborados de histórias passadas. Chega inclusive a fazer uma analogia muito esperta e bem sacada com o mercado da música, que eventualmente é acusada de fazer plágio, deliberadamente ou não, de canções ou acordes já existentes. Há ainda outra metáfora quando compara as preferências das jovens para os sanduíches mais conhecidos das famosas franquias de fast food, para concluir que no final das contas são todos iguais. Segundo ele o mesmo ocorre com as religiões: são fast foods da fé para rápido consumo.


Fica claro que as garotas entraram em uma cilada. Reed pretende subjugar suas presas com argumentos pretensamente inteligentes e coerentes, visando despertar suas consciências capturadas pela crença religiosa. Quando a situação fica por demais incomoda, as garotas sinalizam a intenção de abandonar o local. Então o terror começa. A visita de cortesia para evangelização se transforma em uma armadilha sem chance de fuga. Sem poderem sair da casa inicia-se uma espécie de jogo macabro de manipulação mental. A tese defendida pelo personagem de Hugh é de que a construção das grandes religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – se dá como forma de controle social e conquista de seguidores. A origem da profissão de fé, em tese, é a mesma. Apenas seguem por caminhos diferentes. 

As missionárias possuem histórias pessoais e origens muito diferentes, razões que justificam as maneiras distintas que reagem às ameaças que sofrem no interior da casa. Mas as aparências enganam, como diz a máxima. Herege possui uma proposta de narrativa tipo huis clos, circunscrita em um ambiente único, restrito e confinado. O casarão de Reed faz as vezes de um imenso parque de diversões macabro onde brinca com seus jogos de poder sobre o destino de suas vítimas.



Herege se apropria de discussões sobre temas de fé misturadas com reflexões filosóficas rasas. Questiona os dogmas religiosos e o poder transformador da crença no livre arbítrio das pessoas, pois não passam de utilização mercadológica da religião ao longo dos séculos. Mais do que terror, Herege se coloca como uma experiência de suspense e tensão. A necessidade de provocar reviravoltas apressa e prejudica a experiência final do filme. A meticulosa construção do clima de tensão é destruída no terço final por uma série de acontecimentos fortuitos que quebram completamente a proposta inicial, tão bem conduzida até então. Herege passa 110 minutos pregando o ateísmo para, ao fim, plantar sementes da dúvida.

Assista ao trailer: Herege

 

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Gladiador II: força e honra

O tempo decorrido entre o primeiro Gladiador (2000) e sua sequência Gladiador II (2024) é de praticamente 25 anos, o mesmo período de tempo real que separa o enredo da continuação da história original. Não é surpresa para ninguém, portanto não se trata de spoiler, pois está no trailer, o novo filme de Ridley Scott é centrado na figura do filho do ex-general e gladiador Maximus (Russell Crowe), que por circunstâncias análogas retorna à Roma na condição de prisioneiro de guerra e também se torna gladiador nos jogos do Coliseu. 

O filme abre com um prólogo que narra uma épica batalha entre o exército romano, comandado pelo general Marcus Acacius (Pedro Pascal) contra as forças de defesa da Numídia (território no norte da África, onde hoje se localiza a Argélia e Tunísia). A campanha expansionista conquista mais um território para o poderoso Império Romano. No espólio da guerra centenas de prisioneiros são enviados para trabalho escravo nas redondezas de Roma. Dentre estes prisioneiros está Hanno / Lucius (Paul Mescal, de Aftersun) que acaba sendo comprado pelo influente mercador e negociante Macrinus (Denzel Washington) para ser utilizado como gladiador.


Estes primeiros momentos de Gladiador II nos fazem pensar estarmos diante de uma mera refilmagem do filme original, e não propriamente de uma continuação. As sagas dos protagonistas são muito semelhantes. Porém, logo Ridley Scott mostra a que veio. A saga de uma vingança pessoal é apenas um ponto de partida. Outras camadas são acrescentadas à trama central e o enredo se transfigura em uma narrativa de conspirações, tramas palacianas e luta pelo poder supremo do Império. Neste aspecto o eixo da trama sai da figura do gladiador, que reprisa a trajetória do pai, e se concentra na personagem de Macrinus, em uma poderosa interpretação de Denzel Washington. 

Assim como o gladiador Hanno / Lucius luta com seus demônios internos para honrar e merecer o legado da história de seu pai, Gladiador II vem à luz com a tarefa de fazer jus ao legado do Gladiador I, que foi o filme sensação do início dos anos 2000, sucesso de bilheteria e crítica. Ridley Scott comanda essa retomada do projeto (muitas vezes adiado) sempre de olho no retrovisor, prestando tributo àquela produção fundamental que restituiu seu prestígio como realizador. Vale lembrar que o primeiro Gladiador conquistou cinco prêmios no Oscar de 2001, incluindo Melhor Filme e Ator, além de garantir uma indicação pela direção de Ridley Scott.


Nestas duas décadas e meia que separam os dois filmes houve uma significativa evolução técnica da computação gráfica, ainda um tanto incipiente no uso em larga escala naquele período de produção de Gladiador I. Os cenários gerados por bits e bytes comprovaram a viabilidade e verossimilhança da técnica e marcou época, abrindo caminho para uma série de filmes históricos e séries de fantasia, incluindo produções como Game of Thrones e similares. Hoje não há mais novidade neste campo, há inclusive um certo enfado pelo uso recorrente e não criativo da técnica, que virou um recurso antinatural que frequentemente incomoda as plateias. O uso massivo de computação gráfica pode irritar muita gente, mas certamente não irrita Ridley Scott. Nesta nova produção ele vai fundo na utilização deste recurso técnico em busca de uma monumentalidade forçada em sua obra, a ponto de sufocar visualmente a narrativa que tem lá seu interesse como exercício de jogos de poder. 

Ridley Scott é um cineasta de contradições, por vezes extremas. Costuma errar e acertar com uma frequência consistente, sempre alternando filmes de qualidade e impecável produção com outros tantos equívocos imperdoáveis e frustrantes. Sua ambição estética costuma se sobrepor ao conceito narrativo de seus projetos. Sua opção primeira costuma ser pelo épico monumental, depois, em segundo plano vem o storytelling, os arcos narrativos e suas decorrências. Ridley é o cineasta do espetáculo, não do personagem. Posto isso, Gladiador II é um exemplo típico da marca padrão de seu realizador. A busca pela grandiosidade está presente em muitos momentos, incluindo sequências exageradas com rinoceronte, babuínos e .... tubarões, em plena arena do Coliseu.


No entanto, além da relevância dos aspectos estéticos, há uma história a ser contada. O conflito em Gladiador II coloca em oposição a visão de mundo de Maximus e seus descendente Lucius. O pai possuía uma visão otimista do Império, antes de ser sacrificado por seus ideais. Já o seu filho nutre um pessimismo profundo sobre o destino do Império e dos líderes que o comandam. Sua luta não é para manter uma utopia visionária de um reino de justiça e paz, como seu pai. Sua ira se manifesta para justamente restituir os ideais de uma sociedade que sucumbe pelo hedonismo, ganancia, corrupção e tirania. O que Gladiador I possuía de heroico foi substituído pelo ceticismo sombrio em Gladiador II. Ou seja, o que era ruim no passado fica ainda pior e decadente 25 anos depois.


“O que fazemos em vida ecoa por toda a eternidade”. Parafraseando esta frase icônica de Gladiador I poderíamos afirmar que Gladiador II será um filme memorável no futuro? Dificilmente. A mescla de ação e drama é um tanto rasa e óbvia, não acertando a mão plenamente em nenhum dos caminhos. Cumpre apenas a promessa de entregar um épico de entretenimento com excelência técnica. Há, no entanto, um ponto que o coloca em destaque. A simples participação de Denzel Washington em cena eleva necessariamente a qualidade de qualquer filme onde esteja presente. Seu desempenho aqui é nada menos que primoroso e garante o interesse do público para uma sequência que, se não supera o legado do filme anterior, tem seus méritos por ousar um rumo próprio para além de uma simples reprodução do modelo original.

Assista ao trailer: Gladiador II


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui: memórias dos tempos de chumbo

O longa-metragem que marca o retorno de Walter Salles aos temas e cenários brasileiros é uma obra memorialista inspirada no livro de Marcelo Rubens Paiva. O filme aborda os episódios verídicos da tragédia familiar do desaparecimento e morte do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva (pai de Marcelo), no período da ditadura militar brasileira. Assim como em Central do Brasil, realizado há 26 anos, Ainda Estou Aqui novamente faz o relato de uma busca, de um resgate de memórias e histórias interrompidas. 

Brasil. Rio de Janeiro. Início dos anos 70. Uma primorosa recriação iconográfica, estética e sonora nos transporta para um país de contrastes. A alegria descontraída de uma praia carioca esconde os subterrâneos dos porões da repressão e tortura. É neste tempo e espaço que somos apresentados à família formada por Rubens Paiva (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), cinco filhos e muitos amigos. Sinais de ameaça iminente surgem a todo momento. Helicópteros militares em voos rasantes sobre zonas residenciais. Movimentação de tropas em caminhões. Circulação de militares pelas ruas. As apreensões de Eunice se confirmam quando certo dia agentes das forças de repressão chegam à sua casa para conduzir Rubens Paiva para um breve depoimento nas dependências de um quartel militar. A promessa era de que ele voltaria para casa em poucas horas. Nunca mais retornou, sua detenção foi negada e seu corpo jamais localizado.

O motor da narrativa de Ainda Estou Aqui é a angustiante jornada de Eunice em busca do paradeiro do companheiro de vida, pai de seus filhos. Enquanto luta obstinadamente atrás de informações que expliquem o desaparecimento, Eunice precisa encontrar forças para manter a família unida e protegida, ainda que para isso tenha que ocultar grande parte da verdadeira história para seus filhos, ainda jovens e menores de idade. Uma aparência de normalidade controlada se instala naquela casa, ao mesmo tempo em que uma obstinada batalha consome os dias de Eunice, guardiã da paz e da integridade família em risco.

Medo e angústia são dois sentimentos muito presentes nos personagens de Ainda Estou Aqui, mesmo aqueles que não possuem pleno conhecimento do que está ocorrendo. Este é um registro muito bem trabalhado por Walter Salles, que se afastou de uma abordagem mais política e, digamos, abertamente panfletária daquele contexto histórico. A ditadura e a repressão está lá, suas consequências estão expostas, mas não é este objetivamente o ponto fulcral. O olhar do filme é todo direcionado para os nocivos e lamentáveis efeitos deletérios daquele período de chumbo na vida real de pessoas reais, com suas sequelas físicas e psicológicas que se perpetuaram ao longo dos anos.


Recriar aqueles episódios ocorrido há mais de 50 anos equivale a revisitar, com dor e pesar, um baú de memórias adormecidas. A elegante direção de Walter Salles torna esta jornada uma experiência guiada pela sensibilidade e emoção, sem excessos narrativos para conquistar a plateia. A história se conta por si só, sem artifícios ou truques, apenas levada pela interpretação e um roteiro enxuto. Ainda assim há uma sequência espetacular que reforça a capacidade da gramatica audiovisual transmitir emoção e contexto. Sem palavras. A chegada dos agentes na casa ensolarada dos Paiva – localizada a poucos metros da praia – transforma simbolicamente o destino daquela família quando começam a fechar todas as cortinas das janelas de casa, impedindo a entrada de luz. A partir daquele momento a vida daquela família estava definitivamente entrando em um período sombrio de trevas. 

Referimos a questão da interpretação e neste aspecto é impossível não destacar o maravilhoso trabalho de Fernanda Torres. Interpretando com muita entrega e emoção todos os momentos limites vivenciados por Eunice Paiva, Fernanda Torres cativa e comove com sua performance cheia de nuances e carga emocional. Aqui temos uma atriz com pleno domínio do seu ofício, que tem conquistado elogios e referências positivas pela crítica nacional e internacional. Há inegavelmente uma perspectiva real de que Fernanda Torres seja indicada ao Oscar em 2025, repetindo a façanha da mãe, Fernanda Montenegro, indicada em 1999 por Central do Brasil.


A expressão “Ainda estou aqui” representa um clamor de quem aguarda, de quem espera, de quem vive a eterna expectativa do retorno. O filme de Walter Salles deixa esta mensagem. Ao reativar nossas memórias, Ainda Estou Aqui resgata um episódio doloroso que fere a história do Brasil. Para não esquecer. Para não deixar passar em vão. Assistir Ainda Estou Aqui é um ato de resgate de um Brasil que não mais desejamos, mas não pode ser esquecido. Ainda que saiamos da sessão com o peito aberto e o coração dilacerado.

Assista ao trailer: Ainda Estou Aqui


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Não Solte!: conto infantil de terror

 

As casas são elementos utilizados com frequência como espaços de confinamento onde transcorrem muitos filmes de terror. Seja como ambiente de manifestação de forças malignas ou como local de abrigo e refúgio, o fato é que as casas normalmente assumem a condição de “personagem” ativo das narrativas construídas com o objetivo de provocar o medo ao confrontar o limite entre o real e o sobrenatural. A ameaça, em última ordem, se manifesta como um poder sinistro que rompe o equilíbrio e a harmonia – ainda que aparente – de um lar doméstico. A tal da casa mal-assombrada é um clássico das histórias de terror. 

Pois justamente uma casa – olha ela aí de novo - é o elemento catalizador de todos os mistérios e espíritos do além que espreitam uma família no thriller de terror Não Solte! (Never let go, 2024). O longa-metragem é estrelado e produzido por Halle Berry, atriz vencedora do Oscar por seu desempenho em A Última Ceia, de 2002. A direção é de um especialista do gênero, o francês Alexandre Aja, que já demonstrou sua identificação com os filmes de gênero nos longas Alta Tensão (2003), a refilmagem Viagem Maldita (2006), o remake Piranha (2010) e Predadores Assassinos (2019), aquele dos crocodilos que invadem uma casa inundada por uma enchente, cuja sequência está em produção, mais uma vez com direção de Aja.


O núcleo narrativo de Não Solte! fica limitado aos arredores de uma casa isolada em meio a uma densa floresta, ou pelo menos, até aonde a corda esticada que prende seus moradores pode chegar. A explicação para esta condição inusitada é o grande mistério da história. Na casa reside uma família formada por uma mãe e dois filhos gêmeos pré-adolescentes, órfãos de pai. Segundo um ritual pagão proferido pela mãe, todos eles só podem sair de casa se estiverem amarrados por uma corda que os liga diretamente com a moradia, construída com madeira de origem sagrada. A crença é de que desta forma estariam protegidos dos espíritos e entidades sobrenaturais que vivem na floresta e rondam ameaçadoramente a casa, sem, no entanto, invadi-la, porque aquele ambiente familiar seria um refúgio seguro. 

Com esta premissa a primeira referência que nos vem à mente é o conto de fadas “João e Maria”, celebrado na obra dos irmãos Grimm. Neste clássico infantil os dois irmãos demarcam sua trilha segura de volta para casa com pedrinhas e migalhas de pão, assim escapando da morte. A analogia entre as duas histórias é totalmente justificável, ainda que caminhem por abordagens e desfechos completamente distintos. Enquanto a fábula de “João e Maria” é uma historinha de fundo moral para fazer as crianças dormirem, o filme Não Solte! se configura como um sombrio conto infantil de terror. 


A casa como elemento simbólico de segurança é muito presente no conceito de Não Solte!. Outra analogia que o filme parece propor é a ideia de que as cordas que garantem a vida dos personagens sejam entendidas como cordões umbilicais não seccionados, que asseguram a garantia da vida antes do nascimento. No caso específico aqui, o que poderíamos definir como “nascimento” seria a plena compreensão dos fatos que revela e desperta a consciência. Romper as cordas (cortar o cordão umbilical), resultaria, portanto, no processo final de libertação, física e psicológica, da influência da mãe. Neste aspecto o filme de Alexandre Aja peca por ser tão literal e óbvio em suas metáforas. Na verdade, não há um problema em si com as analogias, pois contém um valor narrativo interessante. O ponto que fragiliza o resultado é a ausência de uma complexidade na apresentação destes elementos. Eles apenas estão lá, em cena, um tanto gratuitos. Meros artifícios estéticos sem a devida reflexão crítica que as justifique no contexto geral. 

Apesar da forte presença da matriarca zelosa interpretada por Halle Berry, a história se desenvolve sob a perspectiva dos filhos. O olhar deles, bem como da sua limitada compreensão dos fatos, conduz nosso mergulho naquele universo de crenças e mitos. O medo da morte é real. As ameaças seriam também? Deste impasse se constrói o suspense psicológico no qual Não Solte! se transforma em seus dois atos finais. Na condição de espectadores somos conduzidos para um determinado destino até que lá pelas tantas as dúvidas começam a nos sobressaltar. Será isso mesmo? Há então uma mudança de percepção sobre tudo que assistimos. Reconsideramos parcialmente os fatos apresentados e colocamos a narrativa em outra rota. Quando achamos que as peças todas foram rearranjadas em seu devido lugar, novas ocorrências voltam a desordenar o conforto da plena compreensão do todo. 


Não Solte!, que inicia como um filme de terror raiz, aos poucos se transforma em um suspense psicológico de pouca inspiração, frustrando todas as boas expectativas criadas por descontinuar toda a alegoria construída com algum êxito. Uma análise sobre o poder da crença é um dos ótimos temas desperdiçados pelo realizador Alexandre Aja, que revela uma indecisão sobre exatamente qual projeto desejava fazer. Para fãs ou detratores, Não Solte! é um possível filme de M. Night Shyamalan não realizado por Shyamalan. Para o bem ou para o mal.

Assista ao trailer: Não Solte!


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Terrifier 3: a volta do palhaço assassino

 

O Halloween é o Natal para os filmes de terror. Data tradicionalmente celebrada em países de língua inglesa, particularmente nos EUA, o chamado Dia das Bruxas, comemorado em 31 de outubro, está cada vez mais forte e incorporado na realidade cotidiana dos brasileiros. Inicialmente comemorado no Brasil apenas nas turmas dos cursinhos de Inglês, pouco a pouco o Halloween virou uma data popular e obrigatória na mídia, nas escolas, no comércio e nas festas temáticas. O cinema não poderia ficar de fora deste forte apelo de consumo. O mês de outubro está se firmando como o mês de preferência para o lançamento dos filmes de terror e horror. 

Após uma temporada de muitos lançamentos no gênero, com filmes como A Última Profecia, Maxxxine, Entrevista com o Demônio, Longlegs, Não Fale o Mal, Os Fantasmas Ainda se Divertem, Infestação e Sorria 2, dentre outros, o mês mais assustador do ano fecha com o lançamento de mais um exemplar, justamente no dia 31, dia do Halloween. 

Chega às telas Terrifier 3 que traz de volta a figura apavorante do palhaço serial killer em sua saga de assassinatos cruéis. Umas das figuras mais icônicas dos filmes de horror da atualidade, o palhaço Art é protagonista de algumas das sequências mais sanguinárias já vistas no cinema nos últimos anos. Depois de barbarizar nos dois filmes anteriores o palhaço Art retorna ainda mais insano e sarcástico para barbarizar suas vítimas e apavorar o público com suas sessões de violência e tortura.


Mais uma vez com direção de Damien Leone (criador original do personagem e da série) Terrifier 3 é uma sequência direta dos acontecimentos do segundo filme da franquia. Desta vez Art volta para assombrar mais uma vez suas vítimas preferenciais, os irmãos Sienna e Jonathan, sobreviventes do massacre anterior. Enquanto lutavam para reconstruir suas vidas após a tragédia, cinco anos depois os irmãos voltam a ser perseguidos, justamente quando achavam que o passado havia ficado para trás. O vilão assassino é o mesmo, as vítimas também. Mas a época do ano para os acontecimentos é outra. Nos dois primeiros filmes os ataques do palhaço Art aconteciam na noite de Halloween. Agora, a data escolhida é a noite de Natal, com Art incorporando a sinistra figura de um sádico e assustador Papai Noel.

Há um mito, utilizado como ferramenta de marketing e divulgação, de que houve desmaios e pessoas em choque quando o filme anterior foi exibido nos cinemas dos Estados Unidos. Verdade ou fake, o fato é que a notícia viralizou à época, em 2022, e contribui decisivamente para anabolizar as bilheterias e engordar a receita do filme. Inegavelmente há sequências impactantes e angustiantes em todos os filmes da série, bem acima da violência explícita que se vê normalmente nas produções que almejam grandes públicos, com lançamento em salas de cinema de shopping center. Neste quesito a franquia Terrifier certamente subiu a régua e o público tem correspondido nas bilheterias.


De modo geral, e de maneira particular neste Terrifier 3, os filmes da série avançam até os limites da comédia e da sátira, sem, no entanto, se assumir plenamente como tal. Flerta perigosamente no tênue fio da navalha com o risco de ser considerado um irmão gêmeo dos filmes da franquia Todo Mundo em Pânico, este sim uma hilária comédia de terror. Em Terrifier a parte do humor fica limitada apenas à figura do palhaço Art, um personagem pervertido e debochado ao mesmo tempo. Ele não se expressa pela voz, sequer faz ruídos. É um clown, um bobo da corte, um desmistificador do riso, movido por ódio sanguinário, sem empatia alguma pelas vítimas. 

No geral Terrifier 3 mantém o bom padrão de produção dos filmes anteriores. Possui uma fotografia elaborada, com cores saturadas e contrastadas, o que denota alguma preocupação estética. Talvez como um artifício visual para contrabalancear com as apavorantes sequências de terror gráfico explícito dos corpos dilacerados. Outro ponto a destacar em Terrifier 3 é o mergulho cada vez mais complexo nas origens do Mal encarnado pelo palhaço serial killer. A cada novo filme da série mais e mais elementos são acrescentados para compor a compreensão da origem da “maldição” ou da demência de Art.



Terrifier 3 avança algumas casinhas também no nível da violência e brutalidade dos assassinatos e sequências de terror. Definitivamente é para estômagos fortes. Portanto, parece claro que o público deve estar ciente do que vai encontrar – e vivenciar – ao entrar na sala de cinema para encarar mais uma “piada mortal” do palhaço assassino. Como diria aquele velho filme de terror dos anos 80: pague para entrar, reze para sair.

Assista ao trailer: Terrifier 3


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Sorria 2: o horror que ri por último

 

Lançado em 2022, o thriller de horror Sorria foi uma das boas surpresas da temporada no gênero que costuma repetir fórmulas, sem grandes novidades. Encontrou ressonância entre o público, que garantiu boas bilheterias em todo o mundo, e também junto à crítica, merecendo de modo geral resenhas positivas. Por ser aquele um ano ainda marcado pelos efeitos da quarentena pandêmica, o filme dirigido por Parker Finn foi considerado por muita gente uma analogia ao pânico vivido naquele momento pela ameaça de contaminação da Covid. A relação, neste caso, ainda que possível, foi meramente incidental e involuntária, pois o conceito do longa-metragem é uma expansão do tema já desenvolvido em 2019 (portanto, anterior à pandemia mundial) no curta-metragem de 11 minutos Laura Hasn’t Slept, (“Laura não dormiu”) do próprio Parker Finn, lançado apenas no fatídico ano de 2020, no qual o primeiro Sorria foi inspirado.

Para evitar uma semelhança com a ideia central de A Hora do Pesadelo, onde o vilão Freddy Kruger surge somente durante os sonhos, a proposta original que deu origem à Sorria foi alterada. Desta vez o Mal surge em alucinações e delírios despertos, não dependendo dos sonhos dos infectados pela maldição apresentada no primeiro filme. O sinal da contaminação, como já sabemos, está na cara: um largo, assustador e inusitado sorriso estampado na face.


Há uma curiosa e esperta ligação simbólica que “contamina” todos os filmes. A personagem central do curta-metragem reaparece no primeiro longa-metragem como a paciente zero que se consulta com a doutora protagonista. Para dar continuidade na saga, um dos personagens finais, testemunha da maldição no primeiro filme, ressurge desta vez no impactante prólogo que abre este Sorria 2 (Smile 2, 2024), ainda sob a direção de Parker Finn.

A “contaminação”, vale relembrar para os desavisados, ocorre quando a vítima é testemunha do suicídio de alguém (já contaminado). Após a morte consumada o “Mal” passa a habitar o novo corpo, como um parasita que invade um hospedeiro. A partir de então a nova vítima contaminada passa a ter alucinações, enxergando sorrisos macabros em rostos de familiares ou conhecidos, até que, em um delírio extremo de loucura, acaba cometendo suicídio, em frente a alguém que passa então a ser o novo hospedeiro da maldição de origem sobrenatural.


Em Sorria 2 a vítima da vez é a cantora pop Skye Riley (a ótima Naomi Scott), que está retomando a carreira após um trágico acidente ocorrido um ano atrás. Ao testemunhar o pavoroso suicídio de um fornecedor de drogas, Skye incorpora a “entidade maligna” e passa a viver momentos perturbadores, com alucinações e delírios. Sem distinguir o que é real do que é perturbação mental, a jovem cantora enfrenta seus fantasmas internos em busca de respostas antes de chegar ao limite da insanidade e consequente morte.

A pressão da fama, os compromissos de agenda e a constante necessidade de superar limites no universo competitivo do mundo artístico já são razões suficientes para exigir o máximo da saúde física e mental de Skye, ainda em recuperação do acidente sofrido. Os primeiros sinais da manifestação do Mal que tomou conta de seu corpo inicialmente foram atribuídos às exigências estressantes da sua atividade profissional. Mas logo a coisas fogem do controle. Há algo mais profundo e perturbador tomando o controle da sua vida.


Sorria 2 faz uma mistura bem temperada que reúne terror, gore, suspense psicológico e slasher, transitando por todos os estilos com a habilidade reconhecida do realizador Parker Finn. Ainda assim, o filme por vezes comete o pecado da utilização pouco inspirada da técnica do jump scare (o famoso susto repentino), um truque um tanto clichê que costuma ser uma cilada quando utilizado em demasia ou de forma gratuita. Aqui ficamos no limite do tolerável para uma produção que demonstra uma clara intenção de buscar renovação do gênero com a inserção de elementos psicológicos.

O filme apresenta situações e momentos realmente perturbadores na espiral de loucura, que transforma a vida de Skye em uma jornada rumo à insanidade suicida. Os conflitos interiores manifestados pela protagonista conduzem a narrativa para uma abordagem de temas complexos como traumas, culpas e vivência do luto, por um passado que ainda assombra seu presente.


Contribui decisivamente para a verossimilhança deste sombrio mergulho vertiginoso rumo à mais completa alucinação o desempenho realmente diferenciado da atriz protagonista, Naomi Scott. Sua entrega ao papel é intensa, transmitindo com vigor toda a angústia da cantora pop assombrada por delírios persecutórios. De origem britânica, Naomi é conhecida pelo papel da princesa Jasmine em Aladdin, a versão live-action dirigida por Guy Ritchie em 2019, protagonizada por Will Smith no papel-título. Além de mostrar sua capacidade de atuação, em Sorria 2 a atriz também teve oportunidade de exibir seu talento no canto e na dança em alguns números musicais ao longo da trama (não, o filme não é musical!), cujo estilo das canções e interpretação lembram a performance teatral de Lady Gaga.


Frequentemente nos deparamos nas redes sociais com memes e listagens que apontam sequências de filmes que superam o original. O Exterminador do Futuro 2 e Star Wars – O Império Contra-Ataca são dois exemplos sempre lembrados. Pois então, no gênero horror surgiu um novo postulante a este título. Sorria 2 supera o Sorria original, que, a propósito, é um bom filme. Nesta continuação foi expandido o conceito original introduzindo novas camadas, sem a necessidade de dar explicações sobre a origem do fenômeno. A experiência aterradora da vítima é a grande matéria prima trabalhada por Parker Finn com apuro técnico e visual caprichado. Sorria 2 é um horror que dialoga com a inteligência e a sensibilidade do público, que sai da sala de exibição com um sorriso no rosto. Não por estarem “contaminados”, mas pelo prazer de assistir um filme de horror que não deixa ninguém indiferente.  

Assista ao trailer: Sorria 2


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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