terça-feira, 13 de dezembro de 2016

As várias faces de Nicolas Cage


Nicolas Cage é um astro diferente na Hollywood de hoje. Não é exatamente um ator que se deixa seduzir pelo glamour, marca registrada de 9 entre 10 estrelas do cinema. Pelo contrário, sua forma um tanto despojada de levar a carreira demonstra que ele decididamente anda na contramão da turma que idolatra um red carpet.

Olhando em retrospectiva, a filmografia de Nicolas Cage revela números impressionantes. Na última década ele tem participado de três a quatro filmes por ano (!). Um ator de alta performance. Hiper ativo. Super requisitado. A impressão que passa é que ele não resiste a nenhuma proposta. Não sabe dizer "não". Embarca em todas, com um desprendimento raramente visto em um ator com seu status. Nicolas Cage ainda preserva em parte seu status na indústria. Crédito e prestígio não parecem lhe faltar, ainda que tenha participado de verdadeiras bombas cinematográficas nos últimos anos.


Nicholas Kim Coppola (sim, seu tio Francis é aquele que dirigiu O Poderoso Chefão, logo, ele é primo da atriz/diretora Sofia), é um fanático leitor e colecionador de quadrinhos. A inspiração para seu nome artístico veio do personagem Luke Cage. No início da carreira o tio Francis deu uma força ao escalar o jovem Nicolas em pequenos papéis nos anos 80. Mas logo o ator começou a andar pelas próprias pernas. Há exatos 30 anos participou de Asas da Liberdade, de Alan Parker, e começou a chamar a atenção. Graças ao prestígio do público e os elogios da crítica, a carreira de Nicolas Cage rapidamente entrou em ascensão, até 1995, quando encontrou seu melhor papel em Despedida em Las Vegas, pelo qual recebeu o Oscar de Melhor Ator. O mundo, então, parecia aos seus pés. Mas, algo deu errado, e a partir de então sua carreira perdeu força, ainda que nunca tenha deixado de filmar. Apenas perdeu relevância.

A razões para isso? Difícil definir com clareza, mas certamente tem algo a ver com sucessivas escolhas equivocadas que jogaram sua carreira para um destino incerto. As escolhas erradas foram tantas e tão frequentes que nos perguntamos o que realmente Nicolas Cage estava querendo fazer com sua promissora carreira.



Algo semelhante aconteceu com Matthew McConaughey, um ator que surgiu como promessa de um "novo Paul Newman", mas que em dado momento desandou. Suas escolhas (também equivocadas) revelavam que ele parecia mais interessado apenas em se divertir fazendo filmes. Até que um dia deu um "clic" em Matthew McConaughey. Redirecionou a carreira, até o surpreendente comeback que testemunhamos em 2013 quando se redescobriu (e foi redescoberto) como um grande ator. Será que ainda veremos um retorno do velho e bom Nicolas Cage de guerra para o primeiro time de atores de Hollywood?

(Texto originalmente publicado no portal "Movi+" em outubro de 2014)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

"Deus e o Diabo na Terra do Sol": 50 anos de um clássico



1964 é um ano icônico para o Brasil. No campo político, foi no dia 31 de março daquele ano que aconteceu o Golpe Militar, que logo em seguida descambou para a Ditadura. No campo do cinema, foi naquele 1964 que estreou, há 50 anos portanto, uma das produções mais importantes da cinematografia brasileira. Naquele ano Glauber Rocha apresentava para o mundo o filme que viria a revolucionar e influenciar o cinema que se faria no país dali para a frente. O filme era Deus e o Diabo na Terra do Sol. O impacto do lançamento foi tão significativo que redefiniu inclusive a forma como o mundo via (e entendia) o cinema então produzido no Brasil.

Aquele era apenas o segundo longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, após Barravento, que é de 1962, porém, só lançado anos depois. Então, para todos efeitos, Deus e o Diabo na Terra do Sol era virtualmente a estreia do cineasta baiano. Antes um crítico e pensador do cinema, Glauber se aventurou na direção colocando em prática suas ideias de um genuíno cinema terceiro mundista, que pregava de forma incisiva em inúmeros textos publicados pela imprensa à época.

Fontes diversas apontam divergentes datas do lançamento do filme de Glauber. Algumas indicam o dia 10 de julho, outras apontam a data de 1º de julho, e há também indicações de que o filme estreou no mês de abril, poucas semanas após o Golpe de 64. O fato é que, antes da estreia oficial, Deus e o Diabo na Terra do Sol já havia sido exibido em concorridas sessões fechadas para amigos do cineasta e imprensa, em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Consta que em todas estas projeções o filme causou espanto e surpresa pela ousadia estética proposta pelo jovem realizador de 25 anos de idade. Acabadas as sessões a plateia invariavelmente irrompia em aplausos entusiasmados.


Aqueles eram os primeiros dias do regime de exceção, e o filme de Glauber Rocha surgiu em meio ao recrudescimento da Censura. O primeiro certificado de censura foi concedido ainda na primeira semana de abril, poucos dias após o golpe. Porém, naquele ambiente de caça ás bruxas, logo a liberação foi revista com a alegação de que a produção "atentava contra o sistema". Após um novo processo de liberação, com idas e vindas, e muitas negociações nos bastidores, o Serviço de Censura do Ministério da Justiça concedeu o certificado de censura definitivo, e o filme estava oficialmente liberado para exibição pública. Certamente muito contribuiu para este desfecho o fato do Departamento Cultural do Itamaraty haver selecionado Deus e o Diabo na Terra do Sol como o representante oficial do Brasil para o Festival de Cannes, em detrimento de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, tido por muitos como a escolha natural naquele ano.

Mais do que uma expressão artística individual de seu realizador, Deus e o Diabo na Terra do Sol representava uma manifestação latente do momento e das circunstâncias do cinema brasileiro. O filme consolidou, como nenhum outro, o espírito de uma época de contestação onde cineastas e parte da imprensa engajada lutavam por uma nova estética para o cinema nacional. Não havia clareza no que se desejava, mas estava evidente o que não aceitavam mais: a manipulação do cinema clássico e hegemônico vindo de Hollywood. O filme de Glauber revelou a revolução. Era a ponta de lança de uma nova realidade cinematográfica que romperia o círculo viciado de um cinema que não chegava a lugar algum, e muito menos representava a realidade brasileira. Era o novo que deu um novo viés a um movimento que nascia: o Cinema Novo. Tanto Deus e o Diabo quanto Vidas Secas, e também Os Fuzis, de Ruy Guerra, representavam a tríade de filmes que explicitavam as ideias e propostas de um novo cinema que assumia o desafio de mostrar na tela o que antes era apenas discurso. Glauber profetizava: "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça".


Diversamente do neorrealismo de um Rio 40 Graus, também de Nelson Pereira dos Santos, um dos precursores do Cinema Novo, o filme de Glauber enveredou pela alegoria da fábula, misturando misticismo, religiosidade e política. O caldeirão de ideias de Deus e o Diabo pretendia dar conta de explicar e complexa realidade brasileira. Uma ousadia e tanto, mas plenamente justificado naquele momento de ruptura do status quo, onde os limites precisavam ser ampliados. Aquele era um tempo de filmes-manifesto, onde a tese se sobrepunha à narrativa. Era necessária a demolição do velho para a construção do novo. Glauber Rocha assumiu com gosto o papel de reformador do cinema nacional, e o radicalismo de suas obras posteriores apenas confirma sua vocação para o confronto em busca de uma estética original (ainda que não necessariamente popular).

Passados 50 anos, Deus e o Diabo na Terra do Sol venceu o desafio do tempo e se consolidou como um dos mais prestigiados clássicos do cinema brasileiro, embora seja relativamente desconhecido pelas novas gerações. Mas, nunca é tarde para descobrir a saga do vaqueiro em fuga, dividido entre o deus negro e o diabo loiro.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em abril de 2014)

Jorge Ghiorzi

sábado, 10 de dezembro de 2016

"Robocop – O Policial do Futuro": uma revisão do clássico dos anos 80


Lançado em 1987, Robocop - O Policial do Futuro foi concebido e desenvolvido na metade dos anos 80, uma década onde o cinema norte-americano ainda não havia se voltado em massa para produções essencialmente direcionadas para os jovens. No entanto, Robocop foi um projeto que, por seu êxito e repercussão, contribuiu decisivamente para atrair e (re)descobrir este público. A produção não surgiu com tal propósito, mas tornou-se um fenômeno pop, revelando-se um produto com imensas potencialidades de exploração comercial, seja como filme, e suas inevitáveis sequências, seja como licenciamento de marca para o mercado de consumo.
Naquele tempo, há mais de 25 anos, as produções de Hollywood ainda revelavam traços de subversão moral e política, mesmo que esporádicos. A praga do politicamente correto ainda não havia entrado de vez em campo. A violência gráfica, explícita, era razoavelmente tolerada. Não como um mero recurso gratuito de catarse para as plateias (o que aconteceu nos anos 90), mas como uma representação estética e conceitual a serviço da narrativa. Robocop surgiu neste momento, como um produto mainstream dos grandes estúdios, que flertava explicitamente com as chamadas produções B.
Dirigido pelo holandês Paul Verhoeven,  Robocop foi o primeiro trabalho do cineasta em Hollywood, após uma carreira de sucesso na Holanda. Aqui, vale uma referência à curiosa similaridade da situação com o caso de José Padilha (após o sucesso no Brasil, estreia em Hollywood também com a mesma produção). Se isto não é apenas uma curiosa coincidência histórica, nos faz pensar se as implicações políticas do tema não são demasiadas para olhar norte-americano, e, portanto, seriam mais adequadamente trabalhadas por cineastas “importados”. Paul Verhoeven acabou fazendo uma carreira ascendente nos Estados Unidos. Após Robocop dirigiu dois outros grandes sucessos de bilheteria: O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992). Sua carreira perdeu fôlego com o enorme fracasso do drama erótico Showgirls (1995), premiado com a Framboesa de Ouro como o pior filme do ano.
O conflito Homem x Máquina sempre foi um tema caro à ficção científica, seja na literatura, seja no cinema. Essencialmente o que se discute é o embate entre o Humano e o Tecnológico, e suas variáveis, quando convergentes em um único ser. A criação do Dr. Frankenstein ou o menino-robô de A.I. – Inteligência Artificial, ambos, em graus distintos, discutem em sua matriz a criação científica e suas decorrências. Quais os limites? Qual a autonomia da criação? Ou, antes: os seres híbridos, sintéticos, criados pelo homem, são dignos de autonomia? O livre arbítrio é um direito, ou tais criações existem apenas para servir? Esse jogo começa a ficar perigoso quando a autoconsciência surge e os questionamentos filosóficos começam a embaralhar a questão.
Esta é a tese de fundo de Robocop. Mas, convenhamos, é exigir demais da plateia. O grande público fica sim com a primeira leitura, e curte apenas a superfície da obra: um divertido e competente filme de ação. Mas, diferente da grande maioria dos filmes do gênero, trata-se de filme de ação com cérebro. A subversão embutida em Robocop é flagrante. Critica-se a ciência, as grandes corporações, a mídia, e também as forças policiais. Mas, e aí está sua esperteza, tudo isto vem embalado em um produto de grande apelo, dissimulado de cinemão-pipoca que não fica nada a dever para nenhum outro do gênero.
Rever hoje o Robocop original traz dois sentimentos. Em primeiro lugar uma certa dose de nostalgia, e depois, alguns questionamentos renovados. O som surdo dos passos e os ruídos hidráulicos das articulações do policial robô marcaram uma geração, e hoje soam não menos do que clássicos. O mesmo ocorre com o criativo e inovador design da armadura do “policial do futuro”, uma criação de Rob Bottin (responsável pelos efeitos especiais de O Enigma de Outro Mundo/82; A Lenda/85; O Vingador do Futuro/90 e Seven/95). Outra constatação é atualidade do tema das grandes corporações privadas, que estendem seus tentáculos também para setores, em tese, públicos. Naquele universo do filme de Paul Verhoeven, o destino e a gestão das grandes cidades estão concentrados nas mãos das mega corporações. Numa Detroit à beira do caos, onde a violência urbana se espalha como uma praga, a Omni Corp. controla a força policial (que é privatizada) e, como qualquer conglomerado capitalista, visa o lucro a qualquer custo. Então, assumindo da lógica de que “robô não faz greve” e não exige direitos trabalhistas, o plano é substituir a força policial de humanos por uma força tarefa de autômatos. O projeto do robô híbrido, que resultado no personagem do Robocop é uma proposta alternativa que parecia fazer mais sentido. Mas, não será tão fácil assim. A porção “humana” do personagem é uma variável que foge ao controle dos poderosos dirigentes da Omni Corp.
Como se vê, há mais de duas décadas e meia, esta produção já lidava com temas potencialmente quentes. Uma raridade no horizonte das produções dos grandes estúdios, sempre em busca de audiências de massa, que dificilmente têm interesses dessa ordem ao assistir um filme de ação. Robocop – O Policial do Futuro marcou época. Suas qualidades resistiram ao teste do tempo e seu valor como produto cinematográfico diferenciado perdura até hoje.
(Publicado originalmente no portal "Facool" em fevereiro de 2014)
Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Federico Fellini segundo Ettore Scola


Lá se vão quase 21 anos que Federico Fellini partiu. Foi em 31 de outubro de 1993 que o celebrado diretor italiano nos deixou. Por ocasião do 20º aniversário da sua morte, o Festival de Cinema de Veneza encomendou um filme para celebrar a memória do "Maestro". A tarefa coube ao cineasta Ettore Scola (Nós Que Nos Amávamos Tanto; Um Dia Especial; O Baile), que já havia declarado que não filmaria mais. No entanto, Scola abandonou sua aposentadoria e voltou a dirigir após 10 anos. Assim nasceu o personalíssimo documentário biográfico Que Estranho Chamar-se Federico - Scola conta Fellini. Reunindo fragmentos de memória, reportagem, encenação e retrospectiva, o filme revela facetas muito particulares do mestre Fellini.
Em suas primeiras sequências o documentário faz uma recriação ficcional do início da carreira de Fellini, quando era jovem desenhista cartunista que aspirava um lugar na publicação satírica "Marc'Aurélio", famosa por suas críticas políticas. Nestas passagens, reencenadas em preto e branco, de forma cômica, Scola introduz a figura de um "narrador", que entra em cena, olha para o espectador e vai nos contando a história que transcorre ao seu redor.

Federico Fellini foi na verdade um grande mentiroso. Tanto que recebeu o apelido de "Pinóquio" do cinema italiano, por sua habilidade em "recriar a realidade" de maneira que ela se ajustasse à sua visão do mundo, das coisas e das pessoas. Fellini tinha nos pequenos dramas das pessoas comuns sua matéria prima. Para ilustrar esta peculiaridade, Scola recria em dois momentos um dos prazeres de Fellini: passear de carro à noite por Roma, abordando e dando carona para desconhecidos, apenas pelo prazer de ouvir suas histórias. Que, sabemos todos nós, posteriormente seriam fonte de inspiração para futuros filmes.
Outra passagem marcante do documentário é a recriação dos atos fúnebres de Fellini, quando seu corpo ficou exposto para visitação pública nos estúdios Cinecittà. Nesta sequência Ettore Scola opta por uma visão mais poética e menos realista. Inspirado no espírito brincalhão do mestre, o diretor sugere que seu antigo companheiro está na verdade brincando com todos nós. O velho Fellini, quem sabe, ainda anda por aí, criando e (re)inventando histórias. Inclusive a sua própria.
(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em junho de 2014)
Jorge Ghiorzi

"Clube da Luta": 15 anos depois


Durden. Tyler Durden. Esse é o cara que o cinema nos apresentou há 15 anos no filme Clube da Luta. Antes das telas o personagem vivia apenas nas páginas do livro de Chuck Palahniuk. Sim, o tempo passa, lá se vai uma década e meia que o filme de David Fincher foi lançado. Aquela era uma época onde os celulares não eram populares, a Internet engatinhava, e o planeta vivia a expectativa do início de um novo milênio. O ano era 1999. O Clube da Luta chamou as plateias para a luta e deu um sacode geral na inércia.
Definitivamente o filme de David Fincher marcou um momento de passagem. Algo como passar do analógico para o digital. O impacto do filme naqueles tempos foi grande. Mas, paradoxalmente, não alcançou toda a repercussão que merecia. Foi o que se poderia chamar de "um filme a frente do seu tempo", cujos valores só foram devidamente reconhecidos com o passar do tempo.
Um dos temas centrais do filme, mola mestra que move a narrativa, é a crítica ao consumismo desenfreado. "As coisas que você possui acabam possuindo você", declara Tyler Durden (Brad Pitt) para o incrédulo e insone executivo (vivido por Edward Norton) em seu processo de libertação emocional. Comprar, consumir, possuir. Sem motivos muito claros e sem necessidade definida. Comportamento que o filme antecipou, antes do surgimento do e-commerce de hoje que estimula e facilita a compra por impulso.
Outro tema caro ao filme é a falta de relações emocionais reais entre as pessoas. O que não deixa de ser uma ironia, se pensarmos em todas as possibilidades de interação que as redes sociais de hoje permitem. Mas, como "Clube da Luta" antecipava há 15 anos, as relações sociais nos dia que correm são eventuais e passageiras. E por fim, o filme de David Fincher também abordou o tema do terrorismo social urbano, misto de vandalismo e utopia, que mobiliza grupos sem bandeira, movidos apenas pela gratuidade da violência. Para a trupe de Tyler Durden, sabotar a comida de um restaurante, inserir fotogramas obscenos em meio a um inocente desenho animado infantil ou explodir um prédio comercial são atos indistintos em sua escala de valores. E pensar que apenas dois após o lançamento de "Clube da Luta", Nova York viveria a tragédia das Torres Gêmeas. Naquele caso, parecia um filme. Mas não era. A vida é sempre maior que a ficção.

(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em outubro de 2014)
Jorge Ghiorzi

"Capitão Phillips": Davi contra Golias em alto-mar


Em tempos de domínio absoluto das produções de super-heróis, é um alento constatar que Hollywood ainda produz filmes como Capitão Phillips, dirigido por Paul Greengrass. A produção, estrelada por um Tom Hanks, é baseada em um caso real de ataque a um cargueiro norte-americano por piratas somalis, ocorrido em 2009. Daquele ataque resultou o sequestro do comandante do navio, Richard Phillips, tomado como refém e “moeda de troca” nas negociações.
A narrativa, que parte de um caso com alta voltagem dramática, assume características de um empolgante thriller de suspense. O diretor Paul Greengrass conquistou prestígio ao dirigir filmes tensos como Voo United 93 e dois episódios da série Bourne (“Ultimato” e “Supremacia”). Sua forma ágil, nervosa e tensa de filmar fez escola (redefinindo inclusive os novos filmes de James Bond, na fase Daniel Craig) e está toda lá em Capitão Phillips. Mas o realizador vai um pouco além e nos oferece um admirável estudo sobre liberdade, sobrevivência e, sim, geopolítica.
O líder dos esquálidos e famélicos piratas somalis, em dado momento, revela as razões que justificariam os ataques aos navios. Segundo seu discurso a fome do povo da Somália é consequência da exploração capitalista exercida pelas grandes nações. Uma desculpa um tanto romântica, para não dizer ingênua, que esconde as verdadeiras motivações monetárias de um crime disfarçado de “ato político”. Na situação de guerra civil latente do país, desempregados somalis são convocados a pegar em armas para atacar navios aleatoriamente. A missão: confiscar o máximo que pudessem (dinheiro, carga, etc.). Deste embate de desigualdades revela-se uma tragédia anunciada. De um lado um grupo reduzido de “piratas” armados com velhos rifles enferrujados, de outro todo o poderio bélico e tecnológico da Marinha dos EUA. Em essência Capitão Phillips mostra um choque de forças desiguais que reflete o desequilíbrio social e político entre as nações.
Estas são questões de fundo do longa de Paul Greengrass, que, no entanto, só revela sua essência quando reduz o foco de interesse para o elemento humano. O confronto direto dos dois protagonistas, o líder dos piratas e o capitão Phillips, no apertado e claustrofóbico ambiente do bote salva-vidas, revela as verdadeiras motivações de ambos, que se desnudam diante de uma situação limite. Nestes momentos Tom Hanks, até então apenas correto, nos oferece um desempenho arrebatador que culmina na comovente sequência no pequeno ambulatório onde trata dos ferimentos do corpo e da alma. Após momentos de violenta tensão, a fortaleza emocional do personagem de Hanks desaba em cena, e com ele desabamos também todos nós. Só por estes poucos minutos de intensa entrega emocional, Tom Hanks possivelmente receba uma (merecida) indicação ao Oscar. Final digno de um belo thriller de ação com cérebro e sentimento.
(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em novembro de 2013)
Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Godzilla: o imortal



O Cinema já produziu inúmeros ícones que estão incorporados ao imaginário coletivo e integram o patrimônio cultural de diversos países. Quando se fala de Japão, por exemplo, um ícone cinematográfico se impõe por sua tremenda popularidade que ultrapassa as fronteiras do país. Estamos falando do gigantesco e temível Godzilla. Sua origem (na ficção) é pré-histórica. Mas, no mundo “real” dos filmes, ele está barbarizando Tóquio e Nova Iorque, seus alvos preferenciais, há apenas 60 anos.

Godzilla surgiu no cinema em 1954, numa produção da Toho Film. Aliás, esta estreia ocorreu apenas no Japão. A verdadeira face (e nome) do monstro só ganhou repercussão mundial a partir da versão norte-americana, lançada dois anos após (1956), com o título de Godzilla, O Rei dos Monstros (também conhecido como Godzilla, O Monstro do Mar). Tratava-se de uma americanização do filme japonês original, com a montagem modificada e alterações de roteiro, que introduziram na trama um personagem americano, interpretado pelo ator Raymond Burr, fazendo o papel de um repórter.


O Godzilla, que na versão original japonesa se chamava “Gojira”, uma mistura de Gorila com Kujira (“baleia”, em japonês), foi criado pelo produtor Tomoyuki Tanaka; o especialista em efeitos especiais Eiji Tsuburaya; os roteiristas Takeo Murata e Shigeru Koyama e o diretor Ishiro Honda, que se notabilizou pela direção de vários títulos da série. A ideia dos produtores da Toho Film era desenvolver seu próprio “filme de monstro gigante”, gênero conhecido no Japão como “Kaiju Eiga” (Kaiju Movies).

Reconhecidamente a inspiração maior para a criação do monstro foi o temor das consequências da radiação nuclear após o uso das armas atômicas. O lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, certamente faz parte do contexto da criação de Godzilla. Mas não foi a única fonte de inspiração. No próprio ano de 1954 (menos de uma década após o fim da Segunda Guerra Mundial) outro episódio terrível das consequências da radiação chamou atenção da equipe de criação da Toho. No início daquele ano um navio pesqueiro japonês se aproximou inadvertidamente do Atol de Bikini, onde os EUA realizavam testes com bombas nucleares. De repente, um clarão surgiu no horizonte e, logo após, uma chuva de cinzas começou a cair sobre o barco. Sem saberem de nada, os pescadores foram expostos a altas taxas de radiação. Logo começaram a surgir os primeiros sintomas: enjoos, queimaduras e sangramentos. Ao retornar para o Japão, a tripulação do navio ficou confinada em quarentena. Porém, o peixe capturado pelos pescadores foi comercializado normalmente, o que ocasionou a morte de algumas pessoas, além de vários pescadores. Em lembrança a esta tragédia, a cena de abertura do primeiro filme de Godzilla mostra um barco sendo destruído pelo monstro. Uma metáfora poderosa para os perigos do uso das armas nucleares e suas consequências.


Uma curiosidade da saga de Godzilla no cinema é o fato de que o monstro surgiu nos filmes como um vilão da humanidade, sempre disposto a arrasar com as metrópoles. No entanto, com o passar do tempo, e suas várias reencarnações, o personagem (sim, ele era o verdadeiro protagonista das histórias) foi demonstrando um poder cada vez maior de seduzir as plateias, especialmente os jovens e crianças, chegando ao ponto de ser apresentado em alguns filmes como o verdadeiro herói da história. Ainda que este herói tenha a aparência horripilante de um dinossauro mutante, com corpo de um Tiranossauro, os braços de um Iguanodonte e barbatanas dorsais de um Estegossauro. Com algumas variáveis aqui, outras ali, esse é o visual clássico do Godzilla ao longo dos seus 60 anos de vida.


Olhando com os olhos de hoje, não podemos deixar de constatar a precariedade dos efeitos especiais dos primeiros filmes da saga. No entanto, é justamente aí que reside grande parte do charme destes filmes que fizeram a alegria das matinés de muita gente. Antes da chegada dos efeitos de computação gráfica (CGI), utilizados em larga escala após a segunda metade dos anos 90, todos os filmes de Godzilla utilizaram a velha técnica de "suitmation", que consiste em colocar um ator dentro de uma fantasia articulada feita de látex. Para completar a magia do cinema, e dar a verdadeira dimensão do monstro, bastava colocar no set de filmagem pequenas maquetes reproduzindo os prédios, as pontes e os monumentos da realidade.


Entre produções memoráveis, e outras tantas esquecíveis, já foram produzidos cerca de 30 filmes do Godzilla. Suas reencarnações são regulares, seja no cinema japonês, seja no norte-americano. A novíssima versão, com os requintes da tecnologia digital 3D, está chegando às telas com uma missão: apresentar às novas gerações, que dominam as salas de cinema, um senhor monstro que apavora as plateias há 60 anos. Que a honra de uma tradição seja mantida.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em maio de 2014)

Jorge Ghiorzi