1964 é um ano icônico para o Brasil.
No campo político, foi no dia 31 de março daquele ano que aconteceu o Golpe
Militar, que logo em seguida descambou para a Ditadura. No campo do cinema, foi
naquele 1964 que estreou, há 50 anos portanto, uma das produções mais
importantes da cinematografia brasileira. Naquele ano Glauber Rocha apresentava
para o mundo o filme que viria a revolucionar e influenciar o cinema que se
faria no país dali para a frente. O filme era Deus e o Diabo na Terra do Sol. O impacto
do lançamento foi tão significativo que redefiniu inclusive a forma como o
mundo via (e entendia) o cinema então produzido no Brasil.
Aquele era apenas o segundo
longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, após Barravento, que é de 1962, porém, só
lançado anos depois. Então, para todos efeitos, Deus e o Diabo na Terra do Sol era
virtualmente a estreia do cineasta baiano. Antes um crítico e pensador do
cinema, Glauber se aventurou na direção colocando em prática suas ideias de um
genuíno cinema terceiro mundista, que pregava de forma incisiva em inúmeros
textos publicados pela imprensa à época.
Fontes diversas apontam divergentes
datas do lançamento do filme de Glauber. Algumas indicam o dia 10 de julho,
outras apontam a data de 1º de julho, e há também indicações de que o filme
estreou no mês de abril, poucas semanas após o Golpe de 64. O fato é que, antes
da estreia oficial, Deus e o Diabo na Terra do Sol
já havia sido exibido em concorridas sessões fechadas para amigos do cineasta e
imprensa, em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Consta que em todas estas
projeções o filme causou espanto e surpresa pela ousadia estética proposta pelo
jovem realizador de 25 anos de idade. Acabadas as sessões a plateia
invariavelmente irrompia em aplausos entusiasmados.
Aqueles eram os primeiros dias do
regime de exceção, e o filme de Glauber Rocha surgiu em meio ao recrudescimento
da Censura. O primeiro certificado de censura foi concedido ainda na primeira
semana de abril, poucos dias após o golpe. Porém, naquele ambiente de caça ás
bruxas, logo a liberação foi revista com a alegação de que a produção
"atentava contra o sistema". Após um novo processo de liberação, com
idas e vindas, e muitas negociações nos bastidores, o Serviço de Censura do
Ministério da Justiça concedeu o certificado de censura definitivo, e o filme
estava oficialmente liberado para exibição pública. Certamente muito contribuiu
para este desfecho o fato do Departamento Cultural do Itamaraty haver
selecionado Deus e o Diabo
na Terra do Sol como o representante oficial do Brasil para o
Festival de Cannes, em detrimento de Vidas
Secas, de Nelson Pereira dos Santos, tido por muitos como a escolha
natural naquele ano.
Diversamente do neorrealismo de um Rio 40 Graus, também de
Nelson Pereira dos Santos, um dos precursores do Cinema Novo, o filme de
Glauber enveredou pela alegoria da fábula, misturando misticismo, religiosidade
e política. O caldeirão de ideias de Deus
e o Diabo pretendia dar conta de explicar e complexa realidade
brasileira. Uma ousadia e tanto, mas plenamente justificado naquele momento de
ruptura do status quo,
onde os limites precisavam ser ampliados. Aquele era um tempo de
filmes-manifesto, onde a tese se sobrepunha à narrativa. Era necessária a
demolição do velho para a construção do novo. Glauber Rocha assumiu com gosto o
papel de reformador do cinema nacional, e o radicalismo de suas obras
posteriores apenas confirma sua vocação para o confronto em busca de uma
estética original (ainda que não necessariamente popular).
Passados 50 anos, Deus e o Diabo na Terra do Sol
venceu o desafio do tempo e se consolidou como um dos mais prestigiados
clássicos do cinema brasileiro, embora seja relativamente desconhecido pelas
novas gerações. Mas, nunca é tarde para descobrir a saga do vaqueiro em fuga,
dividido entre o deus negro e o diabo loiro.
(Texto originalmente publicado no
portal "Facool" em abril de 2014)
Jorge Ghiorzi
Nenhum comentário:
Postar um comentário