sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

"Boa Sorte": as vantagens de ser invisível


É com algum alívio que nos deparamos com um drama sensível como Boa Sorte, em meio à quase hegemonia das comédias nacionais que proliferam em escala industrial. No mínimo evidencia uma saudável diversidade de temática, ainda que eventual. Baseado no conto "Frontal com Fanta" do gaúcho Jorge Furtado, o filme na verdade possui ainda outra razão por se destacar no panorama atual do cinema brasileiro. A produção é um autêntico tour de force de uma atriz em franca evolução em seu ofício de representar: Deborah Secco.

Ao contrário das comédias, que não exigem nada mais da plateia do que relaxamento e disposição para o riso, a adequada apreciação de Boa Sorte deverá contar com uma boa dose de comprometimento do espectador com uma narrativa que se equilibra entre a depressão e a melancolia, com ligeiros toques de humor.

Depressão e melancolia. Aí estão dois traços definidores da personalidade dos protagonistas da história que cruzam seus destinos numa clínica psiquiátrica. Judite (Deborah Secco) é paciente soropositiva, portadora de HIV, dependente química em fase terminal, pois seu organismo já não tolera mais o coquetel de medicamentos. João (João Pedro Zappa) é um adolescente com problemas de comportamento, que, após ser diagnosticado com depressão, é internado para tratamento.


Os problemas de ambos, aparentemente, têm um fundo de mesma origem: a família. Os pais de João são frios, distantes e omissos. Já a família de Judite tem todos os traços clássicos de uma relação desagregadora. De sua mãe, pouco se sabe, a não ser que aparentemente teve o mesmo fim que se prenuncia na filha. E sua avó (Fernanda Montenegro), adepta de cigarrinhos sem marca e pesada medicação tarja preta, tenta uma reaproximação com a neta para sossegar sua consciência pesada.

No improvável ambiente de uma clínica psiquiátrica floresce uma relação de parceria, cumplicidade e compreensão mútua, que acaba na urgência de um caso amoroso. Uma relação que luta contra o tempo e a tragédia anunciada. Dois perdidos num mundo do qual não fazem parte, que não os representa, Judite e João só ganham traços de vida e lucidez ao fazerem uso de comprimidos de Frontal ingeridos com Fanta. Então, segundo a “viagem” deles, se tornam invisíveis. Nessa condição, e apenas nessa condição, se sentem livres de seus fantasmas internos.

O roteiro foi escrito por Jorge Furtado e seu filho, Pedro Furtado. A exemplo de trabalhos anteriores do cineasta / roteirista, o filme apresenta diálogos ágeis, de corte rápido, que exibem o já conhecido conhecimento de curiosidades de almanaque, tão presente nas obras de Jorge Furtado. Boa Sorte foi dirigido por Carolina Jabor. Este é o segundo longa-metragem dirigido pela filha de Arnaldo Jabor (o anterior foi o documentário O Mistério do Samba, em 2008). 

(Texto originalmente publicado no portal "Movi+" em novembro de 2014)

Jorge Ghiorzi

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