quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Coringa – Delírio a Dois: entre o asilo e o tribunal

 

O primeiro filme solo do Coringa causou alguma surpresa aos fãs quando se revelou uma produção que ambicionava um realismo incomum nas aventuras de personagens de HQs. Ainda que, ao longo da trama, o longa assumisse pouco a pouco um clima de farsa com pretensão política. Para a segunda incursão solo do personagem o realizador Todd Phillips (de Se Beber Não Case!) acelera e radicaliza, transformando tudo em uma delirante fantasia musical.

Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux, 2024) inicia dois anos depois dos eventos do filme anterior. Após os crimes cometidos, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é internado no Asilo Arkham, hospital psiquiátrico destinado aos criminosos alucinados e mentalmente perturbados. Enquanto espera pelo julgamento – onde a alegação de insanidade o tornaria inimputável – Arthur conhece Lee Quinzel (Lady Gaga), também internada na instituição. Juntos passam a viver uma louca paixão, motivados pelo desejo de fuga e embalados por delírios musicais.


O Coringa de 2019 reverenciou o estilo de cinema urbano e pessimista dos anos 70, tendo Taxi Driver como a grande matriz inspiradora. A continuação segue bebendo nesta fonte setentista. Aqui temos ecos de Um Estranho no Ninho nas sequências que se passam na instituição psiquiátrica. Em termos de estrutura o longa é dividido em dois grandes atos. O primeiro se passa totalmente no Asilo Arkham, onde Arthur Fleck passa por péssimos momentos de violência física e mental. A segunda metade do filme tem como cenário o Tribunal, onde acontece seu longo julgamento pelos cinco assassinatos ocorridos no filme anterior. 

Para o bem ou para o mal, a decisão mais significativa de Todd Phillips (também roteirista) foi a transformação de Coringa: Delírio a Dois em musical. Então, estamos diante do clássico dilema do ovo e da galinha. O filme é um musical porque Lady Gaga está no elenco, ou Lady Gaga está no elenco porque o filme é um musical? O fato objetivo é que a inclusão de números musicais se revela um tanto gratuita pois não acrescenta nada substancial à narrativa. A sensação que transmite é de estarem ali apenas para alongar um roteiro que tem pouca história a contar. Isto para não falarmos que não existe nenhum número sequer próximo do memorável.



Coringa: Delírio a Dois prossegue no caminho do primeiro filme. O interesse da trama permanece totalmente focado no personagem central. Não abre espaço para outras abordagens, nem tramas paralelas, muito menos a elaboração de um plano criminoso, como seria de esperar em um vilão em formação. A bem da verdade Arthur Fleck / Coringa é um personagem essencialmente covarde, cujas circunstâncias, que independeram do seu desejo, o transformam em um involuntário agente catalizador do caos e da anarquia. O fato objetivo é que aqui o Coringa ainda não possui adversários, além dele próprio.

O foco do diretor Todd Phillips permanece o mesmo, promover um mergulho na psique perturbada de Arthur Fleck, estabelecendo as bases que constituem sua personalidade fracionada e seu viés vilanesco, manifestado pela origem do narcisista Coringa. Enredado nesta perspectiva o filme não avança, se move em círculos, não apresenta um caminho. Ainda não foi desta vez que vimos o primeiro enfrentamento entre Coringa e Batman. No universo das adaptações de HQs para o cinema já assistimos muitas vezes filmes de origem. O ineditismo aqui é o fato de termos dois filmes inteiros contando essencialmente um imenso arco dramático: a origem profunda do vilão piadista e sua risada maligna.



A expectativa para a sequência de Coringa era grande. O que entrega de fato é uma profunda decepção, que frustra totalmente qualquer tipo de espectador, do fã mais dedicado ao interessado eventual. O final aberto coloca possibilidades para o futuro. Caso haja um terceiro filme solo do personagem, que encontrem urgente o caminho certo, porque desta vez a piada não teve graça alguma. Coringa: Delírio a Dois é redundante, pretencioso e vazio.

Assista ao trailer: Coringa: Delírio a Dois


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Os Fantasmas Ainda se Divertem: sessão nostalgia

Com um atraso de 36 anos finalmente os fãs do morto-vivo mais engraçado do cinema – Beetlejuice - tem o tão esperado reencontro. Uma geração inteira se passou entre o filme original, Os Fantasmas se Divertem (1988), e esta continuação tardia, Os Fantasmas Ainda se Divertem (Beetlejuice, Beetlejuice, 2024). Este tempo todo que se passou entre um filme e outro possibilita então que aqueles que se divertiram no final dos anos 80 voltem aos cinemas com seus filhos, sobrinhos ou netos para um ótimo programa em família. A diversão é garantida. Uma sessão nostálgica para os velhos fãs e uma descoberta para os mais jovens.

Este projeto de continuação chega em um momento de impasse criativo do diretor Tim Burton, um realizador que já viveu melhores momentos. O auge do sucesso foi nos anos 80 e 90 com filmes como Batman (a primeira versão, de 1989); Batman – O Retorno; Edward Mãos de Tesoura; Ed Wood e A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. A partir da segunda década dos anos 2000, com filmes pouco inspirados como Sombras da Noite; Grandes Olhos; O Lar das Crianças Peculiares e Dumbo, seus trabalhos perderam o brilho e o folego. A repetição de uma estética e uma narrativa muito particulares do realizador acabou aprisionando Tim Burton em um previsível formulismo que cansou e afastou o público. Portanto, este retorno ao passado, revisitando um de seus maiores sucessos é, antes de tudo, uma estratégia para retomar um caminho que se perdeu com o passar dos anos.


Neste momento crítico da carreira Tim Burton recorreu ao resgate de um de seus filmes de maior prestígio e êxito criativo. Ao aceitar fazer a continuação de Os Fantasmas se Divertem o realizador arriscou e jogou todas as fichas. O resultado não é o desastre que muitos chegaram a prever, no entanto, também não se situa entre seus melhores trabalhos. Podemos entender Os Fantasmas Ainda se Divertem como uma obra de passagem, que abre possibilidades para Burton se reencontrar com suas melhores habilidades como contador de fábulas que transitam entre o humor e o bizarro, com toques de terror censura livre. 

A história de Os Fantasmas Ainda se Divertem inicia quando os Deetz, após uma tragédia familiar, precisam retornar à antiga casa em que moravam em Winter River, que conhecemos no primeiro filme. Lydia Deetz (Winona Ryder) já é adulta e mãe da adolescente Astrid (Jenna Ortega, da série Wandinha, produzida e dirigida por Tim Burton para a Netflix). Ao visitar o sótão da casa a jovem Astrid se depara com uma misteriosa maquete da cidade. Mal sabe ela que aquela maquete funciona como um portal que dá acesso a um mundo habitado por mortos-vivos. Uma destas criaturas é o extravagante fantasma Beetlejuice (novamente interpretado por um afiado Michael Keaton), que mais uma vez vai assombrar e colocar a vida da família Deetz de cabeça para baixo.


Os Fantasmas Ainda se Divertem está longe de ser um filme perfeito ou mesmo memorável, mas funciona suficientemente bem para recolocar o trabalho de Tim Burton nos trilhos. Há muito tempo ele não se mostrava tão à vontade em um projeto. Isto se reflete na tela, quando percebemos que Burton parece estar se divertindo tanto ou mais que os personagens que dirige. Algo como um garoto que ganha um brinquedo novo que muito desejava. O espírito de garoto de Burton reencontra velhos amigos do passado com um olhar amadurecido pela passagem dos anos, porém sem perder a ternura.

Esta continuação não traz exatamente novas ideias, apenas revive um momento que trouxe muitas alegrias há quase quatro décadas. O filme ganhou até um reforço luxuoso com a presenças de Willien Dafoe e Monica Bellucci interpretando novas personagens que, a bem da verdade, tem pouco a dizer. Há aqui e ali algumas tentativas de expandir o universo criado no filme original, mas o excesso de subtramas que não chegam a lugar algum prejudicam o resultado. Porém, não ao ponto de comprometer na totalidade a experiência, que segue sendo prazerosa e divertida na maior parte do tempo. Talvez a maior qualidade de Os Fantasmas Ainda se Divertem esteja mesmo nas partes e não no todo.


Quem entra em uma sala de cinema para assistir um filme de Tim Burton já possui minimamente uma ideia do que vai encontrar. Afinal, ele é um realizador que possui o que poderíamos definir como uma assinatura autoral. Sob esta perspectiva, Os Fantasmas Ainda se Divertem traz evidentemente as marcas características do seu cinema. O universo particular de Tim Burton está lá, com suas regras, seu humor nonsense, sua estética característica e personagens bizarros. Se o propósito primeiro de Os Fantasmas Ainda se Divertem era reconectar o diretor com os melhores momentos de sua filmografia, pode-se afirmar que o objetivo foi alcançado. O filme é OK e recoloca Tim Burton no jogo.

Assista ao trailer: Os Fantasmas Ainda se Divertem

 

Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 17 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris: três é demais


Exibido em première mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 2023, o novo filme de Woody Allen chega às telas brasileiras com um ano de atraso. Não é novidade que a circulação dos trabalhos do realizador vem sendo cada vez mais restrita, bem distante dos tempos de sucesso popular, particularmente nos anos 80 e 90. Um novo filme dirigido por Woody Allen costumava ser um acontecimento. Mas, isto é passado.

Após a virada do século o cineasta passou a receber menos atenção do público. E, por consequência, também dos Estúdios. Esta nova realidade levou Allen a explorar novos territórios, longe de sua amada Nova Iorque. Esta fase da carreira o levou para a Europa, onde encontrou novos financiadores para os projetos, novos cenários e possibilidade de explorar temas mais universais, distantes do contexto da América.

Golpe de Sorte em Paris (Coup de chance, 2023), seu 50º longa-metragem, foi inteiramente filmado em Paris e falado em francês, língua que ele próprio reconhece que não domina totalmente. Este fato, por si só, revela um espírito de desprendimento e ousadia para um cineasta veterano que completa 90 anos em 2025. Há quem diga – ele próprio não desmente – que este poderá ser o seu último filme, encerrando uma carreira cinematográfica de quase 60 anos.


A trama inicialmente romântica de Golpe de Sorte em Paris em algum momento se transforma em um pequeno thriller de mistério e suspense, algo que se aproxima do que vimos em Ponto Final: Match Point, sucesso que Allen dirigiu em 2005. Tudo começa nas calçadas de Paris, quando uma mulher, Fanny (Lou de Laâge), caminha até o trabalho. Em meio aos passantes, um encontro casual. Um homem, Alain (Niels Schneider), reconhece Fanny como uma antiga colega de escola. Conversam, relembram o passado, trocam pequenas confidências. Renasce uma antiga paixão não consumada que se transforma em caso de adultério. Fanny está casada com um rico e poderoso empresário, conhecido por seu caráter controlador e um passado suspeito. Ele a trata como a perfeita “esposa troféu”, apresentada como trunfo nas altas rodas da sociedade parisiense. Surge então o dilema de Fanny: viver todas as possibilidades do novo amor ou permanecer em um estável casamento sem paixão. O destino dos três, por fim, se resolve por um golpe do destino. Ou seria um golpe de sorte?


Marcas indeléveis da marca autoral de Woody Allen estão presentes na narrativa que situa sua trama no alto extrato da sociedade, onde transitam personagens afetadas, hedonistas e niilistas, com seus jogos de poder e aparências. Temperando este universo o realizador insere a usual trilha sonora de jazz. Porém, desta vez, não recorreu ao antigo jazz tradicional. Sua opção foi conceder espaço para o jazz mais moderno. Presentes também estão as citações e referências artísticas e literárias, aqui absolutamente contextualizadas, pois Alain vive um escritor em processo de criação de seu novo romance. Este universo artístico agiu como fator de sedução para Fanny, que identificou uma oportunidade de exercer suas latentes inclinações artísticas sufocadas pelo casamento. O roteiro coloca habilmente em contraste a vida de liberdade do artista em oposição à prisão que as conveniências sociais impõem. A tese colocada aqui indica que apenas a arte permite o pleno exercício da liberdade.

A elegância, no sentido literal e figurativo, é uma marca muito presente em Golpe de Sorte em Paris. Seja pelos ambientes refinados, seja pela apresentação das personagens – principais e secundárias – ou pelos diálogos, sempre precisos, enxutos, afiados e perspicazes. O conjunto funciona maravilhosamente bem em um roteiro escrito com inteligência, sem excessos.

O elenco sem estrelas, formado por atores e atrizes com pouca visibilidade internacional fora da França, está muito à vontade com atuações naturalistas que a direção de Woody Allen costuma imprimir em seus filmes. Um destaque para a protagonista Lou de Laâge (de O Baile das Loucas), cuja fisionomia possui traços de semelhança com a atriz Anna Karina, musa de Jean-Luc Godard.


Caso se confirme que Golpe de Sorte em Paris seja efetivamente o último filme dirigido por Woody Allen podemos afirmar que o encerramento de sua carreira se dá com um trabalho que reúne a essência de alguns dos melhores momentos da obra do cineasta. Seu estilo peculiar vem sendo depurado ano após ano. Aqui, mais uma vez, encontra uma síntese bem equilibrada que assistimos com grande prazer. Não há o humor que marcou fortemente seus primeiros trabalhos. Ele foi substituído por uma abordagem que investe na graça e ironia, com um refinamento que é puro deleite.

Assista ao trailer: Golpe de Sorte em Paris


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Não Fale o Mal: viagem de pesadelo

 

Lançada há apenas dois anos, a produção dinamarquesa Não Fale o Mal alcançou grande repercussão no Festival Sundance de 2022 e atraiu a atenção do mercado internacional. Vislumbrando o alto potencial de bilheteria para as grandes massas, Hollywood rapidamente tratou de comprar os direitos para produzir uma refilmagem, retrabalhando o tema e o contexto do filme com elenco e cenários mais identificáveis para os mercados norte-americano e internacionais. Assim surgiu o tenso thriller psicológico Não Fale o Mal (Speak no Evil, 2024) made in USA, com a grife da produtora Blumhouse, especialista em filmes de horror, terror e suspense de baixo orçamento e grande bilheteria como Atividade Paranormal, Corra!, O Homem Invisível e M3gan. A direção ficou a cargo de James Watkins, realizador de Sem Saída (2008) e A Mulher de Preto (2012).

Família (casal e filha) em visita à Toscana, na Itália, acaba se relacionando com outra família (casal e filho) que encontra por acaso no passeio. Aos poucos cresce entre eles uma amizade de ocasião em terra estranha. Tempos depois, após retornarem para suas cidades, uma das famílias convida a outra para passar alguns dias em sua tranquila e isolada casa de campo no interior da Inglaterra. Logo os hóspedes visitantes descobrem, contudo, que o que deveria ser um simples final de semana de descanso e lazer se transforma em um terrível pesado que coloca suas vidas em perigo.



Desde o primeiro minuto sabemos que algo de sinistro e perigoso ressoa com gravidade em Paddy (James McAvoy), o pai da família anfitriã do passeio. Um gesto, um olhar, uma palavra mal colocada, uma fala fora do tom. Assim se constrói o andamento da trama, distribuindo pistas e informações de que algo muito errado não está certo naquela personalidade aparentemente amável e expansiva. Contribui decisivamente para esta sensação de desconforto o desempenho intenso de James McAvoy, operando em um registro assustador, que nos remete inevitavelmente ao seu personagem multifacetado em Fragmentado. A partir deste personagem emblemático, Não Fale o Mal se estabelece como um estudo de personalidade, que examina diferentes níveis de violência psicológica que se materializam em violência física. Sob esta ótica o longa de James Watkins lembra por vezes alguns trabalhos do austríaco Michael Haneke, que exploram questões perturbadoras que se escondem sob o verniz social.


O thriller é admirável na sustentação de uma atmosfera tensa e sufocante por mais de uma hora, com efetivamente poucos fatos significativos ocorrendo em cena. Na verdade, aí está o truque. Não Fale o Mal possui uma construção lenta e consistente, quase minimalista, levando tudo num crescendo até o violento e catártico final. Não força nos clichês, que são quase uma regra de ouro quando se trata de thrillers de suspense, horror, terror e afins. Aliás, neste aspecto, até de maneira um tanto surpreendente, o remake norte-americano é mais sutil em muitos aspectos do que a versão original dinamarquesa. Uma refilmagem de um grande estúdio de Hollywood, usualmente produzida com mais recursos, costuma cair na armadilha de turbinar excessivamente o ritmo e a estética da obra original. Pois é aí que mora o pecado. Aqui, porém, houve um exercício de contenção, ao menos nos dois primeiros atos.


O remake norte-americano trouxe novos elementos e perspectivas em relação à versão dinamarquesa. Dois pontos são particularmente significativos. O Não Fale o Mal de Watkins traz em seu desenvolvimento, como acréscimo de roteiro, uma abordagem sobre a masculinidade desconstruída quando confronta a fragilidade de Ben (o pai da família visitante) em oposição ao macho dominante e confiante representado por Paddy. O outro ponto, que destoa muito em relação ao filme de 2022, diz respeito ao desfecho, que apresenta uma solução totalmente diversa, que acaba por transformar o produto final em algo completamente distinto daquele que o originou. O que o filme dinamarquês omitiu em respostas e explicações, o remake hollywoodiano explica em demasia, particularmente em seu terço final, furtando da plateia o espaço para a fantasia e a imaginação.

Efetivamente Não Fale o Mal é envolvente em seu suspense que se intensifica cena após cena, num jogo psicológico com personagens bem constituídos. Apesar do segmento final abraçar a previsibilidade dos filmes do gênero, o que compromete parcialmente a experiência, o longa tem mais acertos do que erros. É um remake que não supera o original, mas é um remake que ousa com autonomia ao reinterpretar o longa original.


Assista ao trailer: Não Fale o Mal


Jorge Ghiorzi

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sábado, 31 de agosto de 2024

Kill – O Massacre no Trem: passagem para a Índia

 

Em 2022 RRR: Revolta, Rebelião, Revolução estourou a bolha do mercado interno do cinema produzido na Índia e ganhou distribuição internacional. Conquistou prêmios mundo afora, inclusive o Oscar de Canção Original. Um ano depois, outra produção indiana conquista visibilidade no circuito exibidor mundial. Assim como o citado RRR, o aclamado filme de ação Kill – O Massacre no Trem (2023), de Nikhil Nagesh Bhat, também faz aquela mistura peculiar de ação e romance, uma fórmula recorrente na produção comercial audiovisual de língua hindi.

O cinema indiano, caracterizado pela grife Bollywood, é fortemente marcado pelo exagero, em variados aspectos: na interpretação, nas cores, nos clichês. Se a produção é romântica, por exemplo, pega forte e pesa a mão no tema. No entanto, se o propósito é a violência, não sobra pedra sobre pedra, a escalada é fora da curva em relação ao que o cinema ocidental costuma oferecer. Kill – O Massacre no Trem entrega tudo isso, em um filmaço de ação radical com um entrecho romântico típico de filmes da sessão da tarde.



O casal Amrit (Lakshya), soldado do exército, e Tulika (Tanya Maniktala) tem seu amor colocado à prova quando o pai da jovem escolhe um noivo para ela (conforme as tradições locais). Uma viagem de trem de Tulika e sua família para Nova Delhi é a oportunidade do casal para impedir o casamento arranjado. Mas, a viagem dos apaixonados se transforma em um inferno quando uma gangue de 40 ladrões armados com facas, liderados pelo violento Fani (Raghav Juyal), também embarca no trem para assaltar os passageiros. Então, Amrit precisa entrar em ação, para salvar a amada e sair vivo daquela perigosa armadilha sobre trilhos.

A trama básica de Kill é simples e direta. Há, no entanto, um subtexto de crítica social que expõe a tensão latente das castas indianas, que determinam papeis sociais de acordo com a origem. O confronto central no interior do trem coloca em lados opostos a elite dominante e os proletários de uma sociedade estratificada. No entanto, este aspecto não é suficientemente tratado. O roteiro passa ao largo, sem avançar na questão. A narrativa se concentra mesmo na catártica explosão de violência motivada por desejo e vingança, de ambas as partes do embate sangrento.



Os apaixonados Amrit e Tulika passam por uma provação, pois o sacrifício também faz parte do amor. O obstinado herói protagonista sofre mais das dores do amor impossível do que das dores das pancadas reais que recebe. Sua amada Tulika, apesar de se vestir como uma princesinha da Disney e fazer a figura clássica da donzela em perigo, vai um pouco além disso. Há espaço para sua personagem tomar atitudes e iniciativas que revelam sua força interior, não se deixando tomar pelo medo. Ou seja, estamos diante de uma personagem feminina que manifesta independência. Que sabe o que quer e age com autonomia, ainda que submetida às fortes tradições familiares do seu meio social.

Sabemos todos que no cinema um trem nunca é apenas um trem. É uma “personagem”. Raramente uma viagem de trem é algo corriqueiro nas telas. Há (quase) sempre um propósito de transformação, uma alteração de destino, um ponto de virada ou uma simbologia oculta. Kill, por sua ambientação, pode perfeitamente ser considerado um filme no conceito de huis clos. Uma vertigem de ação desenfreada, confinada no ambiente restrito de um trem de passageiros. Sem saída, até a resolução da trama.



Kill é um típico filme B (por sua temática e desenvolvimento simplista) produzido com recursos de blockbuster. A produção apresenta uma excelência técnica, da montagem à trilha sonora, da edição de som às criativas soluções das coreografias das lutas. Mais radical e empolgante do que o thriller de ação Trem-Bala (com Brad Pitt) e a aventura distópica Expresso do Amanhã, apenas para ficarmos com dois filmes que concentram sua ação em um trem em movimento, Kill é adrenalina pura do início ao fim.

Kill – O Massacre no Trem é vigoroso, implacável e furioso. Uma agradável surpresa, que pode, sem nenhuma concessão, ser considerado um dos melhores filmes de ação dos últimos tempos. Aqui o trem não saiu dos trilhos, mas a ação descarrilhou. Sorte nossa. A diversão é garantida.

Assista ao trailer: Kill – O Massacre no Trem


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Longlegs – Vínculo Mortal: sinistro e perturbador

De modo geral o Giallo italiano produziu “ótimos filmes, com finais péssimos”. Esta máxima, com alguma liberdade, pode ser também aplicada a muitos filmes de terror. Aqui mais uma vez a regra de ouro se aplica. Ainda que, a bem da verdade, Longlegs – Vínculo Mortal (Longlegs, 2024), não seja exatamente um filme de terror, ao menos não no padrão clássico do gênero. O longa está mais para um thriller psicológico de investigação criminal que, sim, traz elementos do universo das histórias de terror. Já vimos isto em O Silêncio dos Inocentes, que vem sendo com toda justiça citado como uma forte referêncial do filme de Osgood Perkins. Este sobrenome nos remete a um certo ator de um certo filme chamado Psicose. Que, olhem só que coincidência, é um thriller de investigação criminal que flerta abertamente com o terror. 


Algumas palavras sobre Osgood Perkins. Filho de Anthony Perkins, o diretor, roteirista e ator, que iniciou na direção com dois filmes de horror, A Enviada do Mal (2015) e O Último Capítulo (2016), também possui uma carreira como ator, em filmes como Psicose 2 (1983), onde interpretou o jovem Norman Bates, as comédias Legalmente Loira (2001) e Não É Mais um Besteirol Americano (2001) e o horror sci-fi Não, Não Olhe! (2022), além de séries como Alias e Além da Imaginação, onde costuma ser creditado como Oz Perkins.


Longlegs (esqueça o péssimo subtítulo brasileiro) mostra uma agente do FBI, Lee Harker (Maika Monroe), escalada para investigar uma série de assassinatos em massa, ocorridos em diversas famílias sem nenhuma ligação entre si. Os indícios apontam para um suspeito misterioso que, apesar das evidências, nunca está presente no local dos crimes. Mas os assassinatos seguem ocorrendo. Durante as investigações Harker descobre que pode haver uma conexão pessoal com o assassino. 

Um dos aspectos mais destacados de Longlegs é a presença de Nicolas Cage, em um registro completamente diverso de tudo que já havia feito. A figura ambígua, bizarra e andrógina interpretada por ele é sinistra e ameaçadora, assombrando totalmente a narrativa, esteja ele em cena ou não. Seu espírito maligno paira como uma sombra sobre todos. Além da pesada maquiagem e caracterização de figurino, contribui decisivamente para a construção do Mal em pessoa o desempenho de larga amplitude dramática de Cage, que transita do histriônico ao contido com grande efeito catártico. Um ótimo trabalho de expressão corporal e inflexão de voz completam a composição da figura que ocupa um lugar na galeria dos mais ameaçadores assassinos seriais já vistos no cinema, ao lado de ninguém menos que o celebrado Hannibal Lecter.


A oponente do vilão Longlegs é a investigadora Haker (ótimo desempenho de Maika Monroe), uma personagem fragilizada por episódios traumáticos do passado. Fatos que repercutem em seu comportamento no presente e podem estar conectados com elementos que contribuem para a solução do mistério. O comportamento da personagem, marcado por um permanente desconforto com o mundo a sua volta, denota uma estranheza para aqueles com quem convive. Apesar da carência de habilidades sociais, a investigadora é reconhecida por uma inegável capacidade dedutiva e intuitiva. Sua jornada de investigação da identidade do assassino faz um espelhamento com sua jornada interior de rememoração de fatos marcantes de sua vida quando criança, que resultaram na relação conflituosa e distante da mãe.

O final apressado e urgente de Longlegs compromete o envolvente clima tenso e sombrio construído eficientemente ao longo dos dois primeiros atos da trama. Alguns pontos ficaram sem respostas razoáveis, ainda que seja bastante expositivo em algumas passagens. As mensagens cifradas do serial killer, por exemplo, no estilo assassino do Zodíaco, escritas com símbolos misteriosos, não se justificam a contento, a não ser como artifício de criar um enigma secundário para sustentar a trama.


O background do assassino – bem como a origem do nome - é desconsiderado, criando lacunas que apenas a imaginação do espectador deve preencher. Isto, em si, não é necessariamente um problema. O mecanismo do suspense funciona com maior efeito justamente quando informações estratégicas são sonegadas à plateia. No entanto, o contexto narrativo deve indicar minimamente as chaves para a premissa. Longlegs fica devendo nesse capítulo.

O thriller de horror psicológico de Osgood Perkins funciona como uma peça de resgate nostálgico de um passado analógico, anterior à era digital. Em termos de cenografia, ambientação e sonoridade, Longless no leva a um clima de anos 70, pela utilização marcante da música de Marc Bolan e sua banda T-Rex (identificado em um poster na casa do assassino). Já o estilo estético, fotografia e decupagem referem claramente ao estilo dos filmes criminais dos anos 90. Além do já citado O Silêncio dos Inocentes, Longlegs emula produções do período como Seven, O Colecionador de Ossos e Copycat, entre outros.


Longlegs é misterioso e envolvente, com uma premissa interessante e um assassino serial memorável. A mistura de suspense e terror lida com ideias e contextos de grande potencial. As personagens, centrais e secundárias, conduzem com interesse uma narrativa que cativa a plateia até os momentos que precedem o desfecho da trama. Neste ponto Longlegs perde um tanto de sua força e se conclui aquém das expectativas geradas até então.

Assista ao trailer: Longlegs – Vínculo Mortal


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Tipos de Gentileza: tramas do absurdo

 

Após Pobres Criaturas o realizador grego Yorgos Lanthimos faz um movimento de reversão de expectativas. Com Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024) retoma as narrativas herméticas, marca registrada de sua obra pretérita (O Lagosta, O Sacrifício do Cervo Sagrado). Aqui ele renega, em termos relativos, a aproximação com grandes plateias. Seu trabalho anterior venceu resistências estéticas e temáticas do grande público e conquistou espaço na Academia. Mas, aparentemente, não cedeu ao canto do cisne. Sua realização seguinte, logo após o Oscar, não pretende encontrar público fácil, pois abertamente não é um produto popular. 

Tipos de Gentileza é um grande painel tríptico que reúne uma antologia de três histórias que podem ou não estar de alguma maneira relacionadas. A figura misteriosa conhecida apenas pelas iniciais B.M.F. é um elo que marca presença, de maneira enigmática, no título das três histórias. Outro ponto de similaridade e aproximação é o fato de o mesmo elenco atuar, em cada uma das partes, com personagens e protagonismos distintos.


A primeira história, intitulada “A morte de B.M.F.”, mostra um homem (Jesse Plemons) que tem sua vida totalmente controlada pelo chefe (Williem Dafoe), que decide toda sua rotina: o que comer, como se comportar, quando ter relações sexuais e o que vestir. A relação entre eles passa a ser questionada quando o homem recebe um pedido inusitado. Este episódio trata de temas como submissão, subserviência, relações de poder e livre arbítrio. 

Na segunda história, “B.M.F. está voando”, Jesse Plemons interpreta um policial cuja esposa (Emma Stone) está desaparecida há meses após um acidente de barco. Um dia, contra todas as expectativas, ela reaparece sem muitas explicações. Aos poucos o policial passa a desconfiar que aquela mulher não é realmente sua esposa. Um tom moderado de suspense tempera toda a trama, que por fim se rende a um desfecho de apelo selvagem e grotesco.


Por fim, na terceira história, chamada “B.M.F. come um sanduíche”, Emma Stone e Jesse Plemons interpretam membros de uma seita de culto espiritualista, obcecada pela pureza dos corpos. A missão dos dois é encontrar uma mulher profetizada com a habilidade de reanimar os mortos. Senso de pertencimento, lavagem cerebral, captura de consciências e sexualidade se apresentam como temas centrais. 

Tipos de Gentileza reúne três histórias que transitam pelos caminhos aleatórios que regem a vida e os desafios pessoais de seus protagonistas. A aglomeração de situações inusitadas transforma-se, em suma, na diversidade dramática que se configuram nos três atos. Há uma divisão de protagonismos nos episódios desta antologia dissonante da sociedade contemporânea. O primeiro ato é liderado totalmente pelo personagem de Jesse Plemons. O segundo, por sua vez, é compartilhado entre Plemons e Emma Stone. No terceiro ato o brilho solo de Emma Stone é total.


A parceria entre Yorgos e Emma Stone vem rendendo ótimos frutos para ambos. Já trabalharam juntos, além do já citado Pobres Criaturas, também em A Favorita (2018), no curta Vlihi (2022) e em um comercial da Gucci. E vem mais por aí. A atriz, juntamente com Jesse Plemons, está no projeto em produção, Bugonia, remake de um filme sul-coreano.  O grego Yorgos descobriu um grande potencial latente na atriz, que se entrega totalmente sem freios aos delírios artísticos do realizador. Uma clara relação de confiança entre criador e criatura. Um salto acrobático sem redes de Emma Stone, que poderia reinar confortavelmente em produtos bem comportados hollywoodianos. 

Há um propósito subliminar de comédia em Tipos de Gentileza. Amarga, sórdida, por vezes incomoda, mas ainda assim uma comédia. Seja pelo inusitado das situações, seja por personagens patéticos, seja por lidar com o absurdo como forma crítica de pontuar a realidade. O filme claramente não dá respostas, apenas propõe questões. As três histórias se concluem com desfechos abertos. Um mergulho sem a certeza do retorno à superfície. Este encargo fica por conta do espectador. Tipos de Gentileza é um desafio. Um quebra-cabeça que não se completa com facilidade, ou sequer entrega todas as peças do jogo. Exige mentalmente da plateia uma disposição para a ousadia provocativa de uma narrativa que apresenta com trivialidade o excêntrico.


Superadas com fôlego e disposição as quase três horas de duração, o aspecto impenetrável de Tipos de Gentileza, provoca, simultaneamente, distanciamento e sedução. A sensação de estranhamento é palpável. Yorgos Lanthimos propõe um mundo em crise, sem soluções fáceis. Neste aspecto, o filme traz um olhar pessimista. É duro e cruel, ainda que satírico e irônico.

Assista ao trailer: Tipos de Gentileza


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com