O tema da
imigração não é novo na filmografia do cineasta nova-iorquino James Gray. Já
esteve presente, de maneira explícita, em Era
Uma Vez em Nova York (2013), que mostra duas irmãs polonesas que chegam à
América no início do século XX em busca de uma vida melhor. De certa maneira, o
tema, em um conceito expandido e metafórico, entendido como um deslocamento do
ponto de origem para um destino desconhecido, também está presente em outras
obras como Z, A Cidade Perdida (2016)
e Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019).
No drama Armageddon
Time a saga de imigrantes em solo norte-americano volta a ser
inspiração. Porém, desta vez com uma visão bem pessoal do diretor. A história
que conta tem inspiração em memórias autobiográficas. Gray é, portanto,
testemunha e cronista de um tempo e de um cenário que viveu bem de perto. O
filme não é exatamente uma autobiografia convencional, mas evoca sentimentos e
experiências pessoais de um momento bem específico dos Estados Unidos. Tudo
transcorre no ano de 1980, no período que precede o início da Era Ronald Reagan,
que tomaria posse como presidente eleito no ano seguinte. Nascido em 1969,
Gray, portanto, teria 11 anos de idade nesta época, aparentemente a mesma do
garoto protagonista.
Em Nova Iorque a
família Graff, descendente de judeus ucranianos, vive no bairro do Queens a
utopia que seduz as correntes migratórias dos primeiros anos do século passado:
o sonho americano. As atenções da família – pais e avós - estão voltadas ao sucesso
social e profissional dos dois filhos menores. Mas as maiores expectativas
estão na verdade direcionadas ao caçula da família, o pré-adolescente Michael
(Banks Repeta, um achado). Na escola pública onde estuda, Michael faz amizade
com Johnny (Jaylin Webb), um jovem negro, filho de família humilde. Apesar das profundas
diferenças de origem, ambos desenvolvem uma forte relação de parceria e
compartilham sonhos. Michael deseja seguir a carreira de pintor e artista
plástico. Johnny quer ser astronauta. Um revelador episódio dramático, porém, coloca
em choque a amizade dos garotos e define o futuro de ambos.
A narrativa de Armageddon Time é conduzida pelo ponto
de vista do pequeno Michael. É através do seu olhar – ora inocente, ora questionador
- que mergulhamos nos conflitos éticos, morais e raciais que marcam sua jornada
de amadurecimento. Família, escola e sociedade são forças conflitantes que agem
e modelam a personalidade do garoto. Pai e mãe (Jeremy Strong e Anne Hathaway)
representam a tradição; o avô (Anthony Hopkins) é o coração, a sabedoria e a
sensibilidade; a escola faz o papel da doutrinação, simultaneamente origem do
conhecimento formal e da repressão que oprime. Por fim, o meio social, que
separa, segrega, pune e destrói sonhos.
O filme de James
Gray é uma fábula moral que explora os valores da amizade e questiona os
limites da lealdade. A ética está no centro da discussão, que se estabelece a
partir do episódio revelador entre os garotos, que traz à superfície o que se
esconde debaixo do tapete. Michael e Johnny, em lados opostos da história,
representam o microcosmo de uma conjuntura discriminatória que se reproduz
desde a origem das sociedades organizadas ocidentais.
As fugas da
escola, as contestações aos professores e os pequenos delitos dos garotos
protagonistas trazem ecos de François Truffaut, em Os Incompreendidos. A abordagem do cineasta francês foi poética, suave
e, em certo nível, até mesmo condescendente. Em Armageddon Time o furo é mais embaixo. O olhar traz nuances e
problematiza com mais ênfase as dificuldades das relações sociais na América, à
beira da já citada Era Reagan que marcaria fortemente a década seguinte. Porém,
a base sob a qual se sustentam Truffaut e Gray é essencialmente a mesma: o
sistema educacional não passa de uma “fábrica de salsichas”. Armageddon Time não traz respostas
fáceis, e certamente sequer deseja tê-las. É o retrato de uma época, um “ovo da
serpente”.
Um pouco da chave para
a compreensão do alcance do trabalho de James Gray pode estar na letra da
música do The Clash, chamada justamente “Armageddon Time”, presente na trilha
sonora. Diz algo mais ou menos assim: Fique
por perto não brinque por perto / Esta
cidade velha e todos / Parece que eu
tenho de viajar / Muita gente não vai
conseguir jantar à noite / Muita
gente não vai conseguir Justiça esta noite / A batalha está ficando mais quente / Nessa vibração, tempo de Armagedom.
Armageddon Time, mais uma
produção da RT Features, do brasileiro Rodrigo Teixeira, é um pequeno grande
filme, comovente e intimista, realizado com paixão e sensibilidade.
Assista ao trailer: Armageddon Time
Jorge Ghiorzi /
Membro da ACCIRS
janeladatela@gmail.com