quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Tipos de Gentileza: tramas do absurdo

 

Após Pobres Criaturas o realizador grego Yorgos Lanthimos faz um movimento de reversão de expectativas. Com Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024) retoma as narrativas herméticas, marca registrada de sua obra pretérita (O Lagosta, O Sacrifício do Cervo Sagrado). Aqui ele renega, em termos relativos, a aproximação com grandes plateias. Seu trabalho anterior venceu resistências estéticas e temáticas do grande público e conquistou espaço na Academia. Mas, aparentemente, não cedeu ao canto do cisne. Sua realização seguinte, logo após o Oscar, não pretende encontrar público fácil, pois abertamente não é um produto popular. 

Tipos de Gentileza é um grande painel tríptico que reúne uma antologia de três histórias que podem ou não estar de alguma maneira relacionadas. A figura misteriosa conhecida apenas pelas iniciais B.M.F. é um elo que marca presença, de maneira enigmática, no título das três histórias. Outro ponto de similaridade e aproximação é o fato de o mesmo elenco atuar, em cada uma das partes, com personagens e protagonismos distintos.


A primeira história, intitulada “A morte de B.M.F.”, mostra um homem (Jesse Plemons) que tem sua vida totalmente controlada pelo chefe (Williem Dafoe), que decide toda sua rotina: o que comer, como se comportar, quando ter relações sexuais e o que vestir. A relação entre eles passa a ser questionada quando o homem recebe um pedido inusitado. Este episódio trata de temas como submissão, subserviência, relações de poder e livre arbítrio. 

Na segunda história, “B.M.F. está voando”, Jesse Plemons interpreta um policial cuja esposa (Emma Stone) está desaparecida há meses após um acidente de barco. Um dia, contra todas as expectativas, ela reaparece sem muitas explicações. Aos poucos o policial passa a desconfiar que aquela mulher não é realmente sua esposa. Um tom moderado de suspense tempera toda a trama, que por fim se rende a um desfecho de apelo selvagem e grotesco.


Por fim, na terceira história, chamada “B.M.F. come um sanduíche”, Emma Stone e Jesse Plemons interpretam membros de uma seita de culto espiritualista, obcecada pela pureza dos corpos. A missão dos dois é encontrar uma mulher profetizada com a habilidade de reanimar os mortos. Senso de pertencimento, lavagem cerebral, captura de consciências e sexualidade se apresentam como temas centrais. 

Tipos de Gentileza reúne três histórias que transitam pelos caminhos aleatórios que regem a vida e os desafios pessoais de seus protagonistas. A aglomeração de situações inusitadas transforma-se, em suma, na diversidade dramática que se configuram nos três atos. Há uma divisão de protagonismos nos episódios desta antologia dissonante da sociedade contemporânea. O primeiro ato é liderado totalmente pelo personagem de Jesse Plemons. O segundo, por sua vez, é compartilhado entre Plemons e Emma Stone. No terceiro ato o brilho solo de Emma Stone é total.


A parceria entre Yorgos e Emma Stone vem rendendo ótimos frutos para ambos. Já trabalharam juntos, além do já citado Pobres Criaturas, também em A Favorita (2018), no curta Vlihi (2022) e em um comercial da Gucci. E vem mais por aí. A atriz, juntamente com Jesse Plemons, está no projeto em produção, Bugonia, remake de um filme sul-coreano.  O grego Yorgos descobriu um grande potencial latente na atriz, que se entrega totalmente sem freios aos delírios artísticos do realizador. Uma clara relação de confiança entre criador e criatura. Um salto acrobático sem redes de Emma Stone, que poderia reinar confortavelmente em produtos bem comportados hollywoodianos. 

Há um propósito subliminar de comédia em Tipos de Gentileza. Amarga, sórdida, por vezes incomoda, mas ainda assim uma comédia. Seja pelo inusitado das situações, seja por personagens patéticos, seja por lidar com o absurdo como forma crítica de pontuar a realidade. O filme claramente não dá respostas, apenas propõe questões. As três histórias se concluem com desfechos abertos. Um mergulho sem a certeza do retorno à superfície. Este encargo fica por conta do espectador. Tipos de Gentileza é um desafio. Um quebra-cabeça que não se completa com facilidade, ou sequer entrega todas as peças do jogo. Exige mentalmente da plateia uma disposição para a ousadia provocativa de uma narrativa que apresenta com trivialidade o excêntrico.


Superadas com fôlego e disposição as quase três horas de duração, o aspecto impenetrável de Tipos de Gentileza, provoca, simultaneamente, distanciamento e sedução. A sensação de estranhamento é palpável. Yorgos Lanthimos propõe um mundo em crise, sem soluções fáceis. Neste aspecto, o filme traz um olhar pessimista. É duro e cruel, ainda que satírico e irônico.

Assista ao trailer: Tipos de Gentileza


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com


segunda-feira, 19 de agosto de 2024

O dia em que Faye Dunaway tomou chimarrão?

 
(Imagem: Divulgação)

O recentemente encerrado Festival de Cinema de Gramado, no último final de semana (17/agosto), propicia a oportunidade para algumas memórias do mais antigo – e ininterrupto – festival de cinema do Brasil. Em meados dos anos 90 o evento da Serra Gaúcha vivia um momento de certa euforia em seus propósitos de internacionalização. Naquele período havia um esforço de investimento da organização para trazer grandes nomes e celebridades do cinema mundial para prestigiar com sua presença o evento gaúcho. 

Por aqueles anos circularam pelo Festival de Cinema de Gramado nomes como Elliot Gould, Gina Lollobrigida, o garoto (já nem tanto garoto) Salvatore Cascio (de Cinema Paradiso), a garota (já nem tanto garota) Ana Torrent (de Cria Cuervos), o celebrado diretor italiano Michelangelo Antonioni e a atriz Amy Irving, à época casada com Bruno Barreto, que aproveitou a estada na Serra Gaúcha para acompanhar a exibição do filme Bossa Nova (que protagonizava ao lado de Antônio Fagundes) e também prestigiar a entrega do Troféu Oscarito para os sogros, Lucy e Luiz Carlos Barreto. Outro nome cogitado foi o de Tom Cruise. O festival convidou o astro para acompanhar a exibição de De Olhos Bem Fechados que seria programado para exibição na mostra paralela Premières Gramado de 1999. O festival acabou ficando sem os dois: o astro e o filme.

(Imagens: Divulgação)

Uma das celebridades mais destacadas que aceitou o convite e subiu a serra, em 1996, foi Faye Dunaway, estrela de Bonnie e Clyde e Rede de Intrigas. A atriz não participava de nenhum filme em exibição. O brilho da sua presença no Festival de Cinema de Gramado se justificava pela condição de Convidada Especial, uma estrela de prestígio e reconhecimento do cinema mundial. Ainda assim, circulou naquele momento a explicação de que ela viria às terras brasileiras com a alegada intenção de procurar roteiros para futuros projetos. Ao que consta, aparentemente não encontrou nada do agrado. 

Enquanto isso, circulou por três dias no festival. Participou de coletiva de imprensa, posou para fotos, abanou para o público e subiu no palco do Palácio dos Festivais para receber um “Kikito Especial”, para rivalizar na estante da sua mansão com o Oscar de Rede de Intrigas. Em sua fala de agradecimento no púlpito encerrou de punho cerrado e em riste com um sonoro, e carregado de sotaque, “Viva o Cinema Brasileiro”. O tour gastronômico de Dunaway nas terras gramadenses foi um tanto frustrado. Não consta que tenha saboreado o chocolate quente, o foundue ou mesmo um galeto com polenta. E nem foi por razões de dieta restritiva de calorias. A razão foi mais, digamos, de ordem prática. A “mamãezinha querida” simplesmente trouxe toda sua alimentação pessoal direto de casa. O que não a livrou de um momento “saia justa”. Durante a coletiva de imprensa foi colocada à sua frente uma cuia de chimarrão. Daí pra frente é lenda ou fato. Para algumas testemunhas ela provou o mate, para outras ela apenas segurou a cuia. Fica para a história, então, essa rede de intrigas.


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Alien - Romulus: volta ao terror


“No espaço ninguém vai ouvir seu grito”. Esta foi a frase de impacto utilizada no lançado de Alien: O 8º Passageiro nos cinemas em 1979. Aquela inusitada e eficiente mistura de ficção científica e terror – sempre imitada, nunca igualada - conquistou um gigantesco sucesso, projetando o nome de Ridley Scott ao primeiro time de realizadores da sua geração. Logo a seguir realizaria nada menos que Blade Runner (1982). Hoje, 45 anos depois, a produção original gerou uma franquia com outros cinco títulos, mais dois spin-offs apenas com a criatura alienígena.

A qualidade das sequências e derivações do filme original são bastante distintas, variando da excelência ao deplorável. O mais recente episódio da saga, Alien: Covenant (2017), não foi dos mais felizes, para dizer o mínimo. Além de não deixar saudades este quinto filme deixou um sentimento de game over por destruir tudo que havia sido construído até então. O lançamento de Alien: Romulus (2024) chega, portanto, com a missão de redimir uma franquia em decadência e proporcionar um reboot para novos episódios.


Desta vez Ridley Scott abriu mão da direção e entregou o controle da nave-mãe a Fede Alvarez, realizador uruguaio que está fazendo carreira em Hollywood com títulos como o remake A Morte do Demônio (2013), O Homem nas Trevas (2016) e Millennium: A Garota da Teia de Aranha (2018). Consta, pelas informações de bastidores veiculadas pela mídia, que Ridley Scott praticamente não frequentou as filmagens, dando liberdade criativa a Fede Alvarez, também coautor do roteiro. Apesar deste aparente afastamento, é significativa a proximidade de Romulus com os conceitos e bases lançadas pela obra original de 1979. 

Desta vez saem de cena as forças militares e as grandes corporações. A ação de Alien: Romulus transcorre essencialmente entre aqueles que sobrevivem na base da pirâmide social, as pessoas comuns “escravizadas” pela exploração do trabalho nos subterrâneos da sociedade futurista. Um espectro social praticamente invisível em todos os demais filmes da franquia. Na trama, um grupo de jovens deseja abandonar o local onde vivem e partir em busca de melhores expectativas de vida em outro planeta. A oportunidade surge quando identificam uma estação espacial desativada circulando nas imediações. Na esperança de encontrar a tecnologia necessária para empreender uma viagem interplanetária para outro destino distante, os jovens inadvertidamente vasculham a estação e se deparam com um organismo aterrorizante que coloca a vida de todos em risco.


Uma das maiores virtudes de Alien: Romulus é sua decisão de abandonar qualquer complexidade da narrativa, algo muito presente em alguns episódios da série, que se perderam pela excessiva ambição dramática e reflexões filosóficas e existenciais. Desta vez o que temos é uma espécie de retorno ao básico, à essência de uma experiência de terror e suspense. Isto estava lá, na origem da série, mas se perdeu ao longo dos anos quando expandiu seu universo. Neste aspecto, vale ressaltar que na linha do tempo da saga, Alien: Romulus ocupa a segunda posição, entre o Alien original e Aliens: O Resgate (aquele do James Cameron). 

Há, aqui e ali, referências estéticas e sonoras que remetem intencionalmente ao filme de 1979, ao qual Fede Alvarez rende evidente tributo. Seu esforço e olhar criativo definitivamente dão um novo fôlego ao conceito original, abandonado ao longo dos anos. Então, as coisas voltam a ser colocadas no rumo certo. Alien: Romulus é aquela sequência que o próprio Ridley Scott nunca conseguiu entregar. Lembremos, ele foi o responsável pelo frustrante Prometheus (2012) e o já citado, e sofrível, Alien: Covenant.

Algumas passagens de Romulus são efetivamente emocionantes e provocam suspense genuíno e real na plateia. Parte deste efeito se deve a uma combinação de fatores, a começar pela ótima direção de cena de Alvarez, juntamente com uma cenografia criativa, efeitos práticos e uma edição muito afiada. Enfim, a essência dos elementos que compõem o que definimos como uma mise-en- scène eficiente. 
Com um elenco – e personagens – jovens, Alien: Romulus destaca-se pelas sequências de ação. Os corredores da estação espacial   se mostram particularmente tenebrosos e assustadores com os jovens exploradores sendo eliminados, um por um, ao serem perseguidos e encurralados por uma comunidade de “pequenos” aliens em fase de crescimento, que infestam aquele espaço confinado que flutua no espaço – onde ninguém ouve seu grito. Já vimos algo assim no Alien de 1979, certo? Mas, naquela vez, os personagens eram todos adultos.


O perfil jovem dos personagens de Romulus permite uma possível aproximação estética e temática com os filmes slasher, ao serem eliminados em sequências de terror gráfico, com direito à final girl. Estaria aí uma estratégia para captar o interesse das novas gerações, desconectadas com a saga iniciada há 45 anos? Um destaque absoluto do elenco é a presença da ótima Cailee Spaeny, de Priscilla e Guerra Civil. Sua personagem, Rain Carradine, não fica nada a dever à Tenente Ellen Ripley, bem como o desempenho, que emula uma jovem Sigourney Weaver.
Alien: Romulus, longe de buscar soluções estéticas e narrativas inovadoras, aposta – e acerta muito - no essencial: superar a apatia e impasse criativo que a franquia havia chegado. O filme de Fede Alvarez é tenso, sombrio e, no mais das vezes, assustador. Reacende o interesse de uma saga que parecia estar com os dias contados. Com uma nova e jovem protagonista – Rain Carradine – a saga Alien renova o interesse, garantindo a sobrevivência e muitas reencarnações da criatura alienígena.

Assista ao trailer: Alien: Romulus


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com


quarta-feira, 31 de julho de 2024

Tuesday – O Último Abraço: nas asas da morte

 

A representação da morte já teve muitas faces no cinema. Ingmar Bergman a exibiu com o aspecto de mago medieval em O Sétimo Selo. Nas comédias, Woody Allen e Monty Python optaram pela clássica figura fantasmagórica portando uma apavorante foice. Já no drama Encontro Marcado o chamado Anjo da Morte é representado pela loirice platinada de Brad Pitt. Uma inusitada nova face da morte é apresentada no drama fantástico Tuesday – O Último Abraço (Tuesday, 2023) dirigido pela cineasta croata Daina Oniunas-Pusic. O nome mais destacado do elenco é Julia Louis-Dreyfus, a inesquecível Elaine Benes da sitcom Seinfeld, aqui em um registro dramático completamente diferente das comédias que marcam sua carreira.


Um magnífico pássaro falante é a personificação da morte que surge para levar ao destino final a jovem Tuesday (Lola Petticrew), portadora de doença terminal. A inevitabilidade da morte afeta profundamente o comportamento da mãe (Julia Louis-Dreyfus) que se afasta do drama da filha e passa os dias a vagar sem rumo pela cidade, dividida entre a incapacidade de ação e a amargura pela situação que não pode controlar. A chegada do pássaro da morte provoca a reaproximação entre mãe e filha, que passam por um doloroso processo de acerto de contas mediado pela entidade fantástica.

Tuesady se configura como uma fábula que se propõe a problematizar os fatos essenciais da vida que são confrontados no momento final da existência. O pretexto para esta discussão é o relacionamento profundamente conflituoso entre mãe e filha, ainda que na aparência se mostre amoroso e terno. Ambas vivem um impasse emocional, marcado por dores reprimidas e emoções contidas. Na hora decisiva, simbolicamente representada pela chegada da “morte alada”, acontece a explosão dos sentimentos negados no colapsado relacionamento marcado por culpa e remorso.


O filme é um drama, porém muito distante de uma narrativa realista convencional, habitualmente presente em produções padrão “sessão da tarde” que buscam lágrimas fáceis a qualquer custo com histórias semelhantes. Comovente e profundo, Tuesday se constitui como uma narrativa que transita livremente do onírico ao fantástico, com um forte viés surrealista. Neste aspecto o filme da realizadora croata arrisca por novos caminhos, sem receio de apostar na ousadia e criatividade. Quem aceitar o convite para mergulhar nesta experiência radical será recompensado por uma viagem marcada por momentos da mais profunda sensibilidade.

A jornada das personagens centrais – mãe e filha – em seu ritual de despedida desafiam o espectador a revisitar suas próprias emoções, lidando com temas essenciais como os cinco estágios da morte: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Os aspectos alegóricos e fantasiosos de Tuesday abrem caminho para um experimentalismo simbólico que remete ao cinema mais inventivo de realizadores como Spike Jonze e David Lynch, e, possivelmente, também ao pai de todos eles, o espanhol Luis Buñuel.


Deus existe? Há vida após a morte? Estas são questões primordiais que assombram o ser humano. Tuesday, um estudo sobre o luto em vida, no desfecho indica algumas chaves de compreensão – e aceitação – para possíveis respostas.

Assista ao trailer: Tuesday – O Último Abraço


Jorge Ghiorzi

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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Queda na bilheteria dos filmes nacionais

 

O ano de 2023 não foi um bom ano para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Dados consolidados pelo OCA (Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual), um órgão da ANCINE, apontam que a arrecadação com ingressos, apenas em filmes nacionais, representou pouco mais de 3% sobre a arrecadação total, um dos mais baixos índices dos últimos anos.

Na temporada passada nenhum filme brasileiro chegou sequer perto da marca de 1 milhão de ingressos vendidos nas quase 3.500 salas de exibição do país. O levantamento divulgado pelo OCA considera apenas exibição em salas físicas, não inclui exibições em serviços de streaming, VOD ou ambientes virtuais.

Relação das 10 maiores bilheterias (e respectivos públicos) dos filmes brasileiros lançados em 2023:


10º) DESAPEGA



9º) NINGUÉM É DE NINGUÉM



8º) Ó PAÍ, Ó 2



7º) MEU NOME É GAL



6º) O SEQUESTRO DO VOO 375



5º) MUSSUM: O FILME



4º) MAMONAS ASSASSINAS: O FILME



3º) OS AVENTUREIROS: A ORIGEM



2º) NOSSO SONHO



1º) MINHA IRMÃ & EU




quinta-feira, 25 de julho de 2024

O Enigma de Kaspar Hauser: o indivíduo e a sociedade

 


Lançado há 50 anos, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen all, 1974) continua impressionando por sua história intrigante e sua abordagem segue provocando profunda reflexão sobre os mecanismos sociais que atuam na construção do comportamento do ser humano em sua interação com os semelhantes. A realização de Werner Herzog foi selecionada para o Festival de Cannes de 1975, onde recebeu o Grand Prix do Júri Oficial e foi escolhido como Melhor Filme pelo Júri Ecumênico e também pelo Júri da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema). O título original em alemão quer dizer algo como “Cada um por si e Deus contra todos”, que carrega elementos poéticos e existências. O título internacional, por sua vez, é mais direto e objetivo por definir de antemão o nome do protagonista, até então pouco reconhecido fora da Alemanha. 

Kaspar Hauser foi um jovem (supostamente de 15 anos de idade) encontrado em uma praça de Nuremberg em 1828. Perdido, sem conseguir falar e andar, ele portava uma carta que explicava em parte sua história. O jovem havia passado toda a vida aprisionado em uma masmorra, sem contato com ninguém, simplesmente sendo alimentado com pão em água. Pelo fato de não conviver com outras pessoas, Kaspar Hauser não desenvolveu a capacidade da fala, bem como nenhuma capacidade de convivência com seres humanos. Criado por tutores e outras famílias da cidade, aos poucos Kaspar Hauser aprende a falar e se comunicar, da mesma maneira que uma criança. Com o tempo Hauser torna-se o centro das atenções sendo recebido como celebridade na alta sociedade de Nuremberg. Nunca foi descoberta efetivamente a origem do jovem, ainda que à época tenham surgido rumores de que Kaspar Hauser seria ser o príncipe herdeiro da família real de Baden, que havia sido roubado do berço em 1812.


A partir desta matéria prima como premissa em O Enigma de Kaspar Hauser o realizador Werner Herzog propõe um misto de recriação histórica e filme de tese, com um subtexto crítico à impositiva influência da sociedade na formatação do comportamento dos indivíduos no meio coletivo. A obra reproduz na trajetória de Hauser o processo de socialização de um ser humano vazio, sem desejos, sem objetivos, sem perspectivas. Enfim, em essência sem vida, apenas existência. 

De um momento para outro ele é obrigado a se relacionar com outros, reagir sem conhecer os limites dos próprios sentimentos e mergulhar em regras e comportamentos de um jogo social que não domina. Neste ponto o filme expõe a teoria sociológica de que não é o indivíduo que molda a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade, representada pela união predominante das partes, que formata o indivíduo. O psicólogo, filosófico e sociólogo francês Émile Durkheim afirmou que “os fatos sociais moldam a maneira de agir das pessoas pela influência que eles exercem sobre elas”.


Kaspar Hauser não desenvolveu inteligência emocional e demonstrava um conhecimento precário do funcionamento das coisas e das engrenagens sociais. Ele próprio se via como um estranho, um deslocado, um estranho no ninho, impotente e submetido a uma realidade que não conseguia compreender e alcançar. Curiosa, neste aspecto, é a reação que ele provoca na alta sociedade da cidade alemã da época. Tratado como um animal em exposição, um “homem-elefante”, Hauser, em seu processo de humanização forçada foi pretexto para a exposição de virtudes da elite virtuosa e culpada. 

O longo período afastado do convívio social privou Hauser da elaboração de conceitos e raciocínios lógicos. Em razão disto ele tinha dificuldades de diferenciar sonho de realidade. Herzog por vezes insere passagens com imagens abstratas, representações audiovisuais de imagens aleatórias que povoam a mente de Kaspar Hauser. Ele não possuía o poder da abstração e tampouco a habilidade funcional de tarefas elementares do dia. Esta confusão mental, que torna difusas as fronteiras sensoriais, fica explícita nas sequências quando ele tenta, por mais de uma vez, contar uma história (uma reinterpretação da sua própria existência?), porém, Hauser sabe apenas como a história inicia, mas desconhece qual seria o fim.


A importância das relações sociais na formação do ser humano já havia sido tratada em filme cinco anos antes desta obra de Werner Herzog. Em 1969 François Truffaut dirigiu O Garoto Selvagem, que conta uma história em essência muito semelhante a de Kaspar Hauser. Um menino vivia sozinho, no meio da floresta com um bando de lobos, sem nenhum contato com a sociedade, no final do século XVIII. Ele não falava, não lia ou escrevia. Resgatado, o garoto é levado à Paris e tratado por um médico (interpretado pelo próprio Truffaut). 

O Enigma de Kaspar Hauser é um filme rico de interpretações, seja no campo da filosofia, da sociologia, da ética e, evidentemente, como a obra cinematográfica admirável que é. Werner Herzog exerce amplo domínio sobre todos os aspectos da narrativa e realiza uma obra radical e profunda.

Assista ao trailer: O Enigma de Kaspar Hauser


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Como Vender a Lua: propaganda é a alma do negócio

 


No dia 4 de outubro de 1957 a União Soviética lançou ao espaço o Sputnik, primeiro satélite espacial. Aquele momento, em plena Guerra Fria, marcou o início da corrida espacial entre os Estados Unidos e URSS. Além do desenvolvimento dos avanços tecnológicos, o que realmente estava em jogo era a supremacia ideológica entre os dois blocos que dominavam o planeta. É neste contexto histórico que transcorre a comédia Como Vender a Lua (Fly me to the moon, 2024) dirigida por Greg Berlanti, de Com Amor, Simon (2018), e produtor de muitas séries de TV como Você, Titãs, Flash, Superman e Lois, Riverdale, e o recente longa Atlas, da Netflix, estrelado por Jennifer Lopez.

Inspirada em eventos reais, como a missão espacial que levou o homem à Lua em 1969 (antes do final da década, conforme discurso célebre do presidente John F. Kennedy, em 1962), a trama ficcional de Como Vender a Lua traz a especialista em Relações Públicas e Marketing, Kelly Jones (Scarlett Johansson), que é convocada pela Casa Branca para consertar a imagem pública da NASA, que vivia um período de descrença popular e sob constante risco do corte de verbas do Congresso. A missão de Kelly é “vender” a missão Apollo como algo de valor afetivo para os cidadãos norte-americanos. A Lua é pop, portanto, deveria ser consumida como qualquer produto mercadológico, tipo cereais, automóveis, relógios ou sucos. Tudo seria perfeito, não fosse a descrença do diretor de lançamento da missão Apollo 11, Cole Davis (Channing Tatum), contrário aos apelos da publicidade. A missão de Kelly, no entanto, é tão importante que ela é instruída a encenar em estúdio, secretamente, um pouso falso na Lua para ser utilizado como plano B, caso o pouso real sofresse alguma falha. O importante era manter a moral da nação em alta.



Aquele final de década de 60 era um período que mesclava cinismo e pessimismo, além de fortemente marcado pelos efeitos da ressaca ética e moral da Guerra do Vietnã. A criação de narrativas, neste contexto, é uma arma midiática poderosa para a conquista das consciências. A história contada vale mais do que o fato real. Prática bastante recorrente nestes tempos digitais, não é verdade? Como bem diz a ardilosa marqueteira encarnada por Scarlett Johansson, a publicidade é a maneira lícita, portanto aceitável, de contar mentiras. Este é o papel eticamente questionável ao qual sua personagem se submete. Inicialmente com orgulho, para logo adiante se transformar em culpa e arrependimento em sua jornada moral.


Como Vender a Lua inicia no tom de guerra dos sexos, contrapondo homens e mulheres, com seus vícios e virtudes. Mas esta não é propriamente agenda do filme. O romance e a comédia logo entram em cena, assumem o controle da narrativa e dão o tom definitivo. O tom farsesco e dissimulado da personagem de Scarlett Johansson domina o embate em oposição à figura contida e emocionalmente fragilizada – por episódio traumático do passado – do diretor da NASA interpretado por Channing Tatum.  

Há mais de 50 anos circula uma teoria da conspiração que afirma que o pouso na superfície lunar é fake, pois teria sido simulada em estúdio, com suposta direção de Stanley Kubrick. Esta teoria já foi tratada de maneira dramática em Capricórnio Um (1977). Mas aqui a pegada é outra. É tratada como farsa, inclusive propondo uma resolução bastante criativa e divertida para o desfecho do episódio. Por sua vez, em termos de produção, as sequências de lançamento do foguete Apollo 11 e da tensão na sala de controle na comédia Como Vender a Lua não fazem feio a nenhuma reconstituição já vista em produções dramáticas que contaram aquele período histórico da conquista espacial.


Na posição de produtora e protagonista do longa, Scarlett Johansson dá conta do papel com graça e desenvoltura, dando mostras que também funciona satisfatoriamente em comédias. Seu parceiro de elenco, Channing Tatum, por sua vez, está mais contido em cena, distante dos personagens extrovertidos e confiantes que costuma interpretar com mais frequência. Em benefício de Como Vender a Lua vale ressaltar que funciona muito bem a química entre Scarlett e Channing. O contraponto protagonista do casal romântico está na figura do “homem de preto”, Moe Berkus, um representante misterioso dos subterrâneos da Casa Branca, interpretado pelo sempre competente Woody Harrelson, com um cinismo em potência máxima.

Sem avançar em demasia para uma discussão entre as noções de verdade e mentira na grande mídia, Como Vender a Lua trata o assunto com a leveza esperada por uma comédia destinada às grandes massas, particularmente as audiências adultas. É uma grande brincadeira contada sobre um pano de fundo de eventos verídicos, inclusive abrindo espaço para uma reinterpretação maliciosa da teoria da conspiração que acompanha a epopeia da chega do homem na Lua em 1969.


O longa de Greg Berlanti apresenta, aqui e ali, um pouco de crítica aos apelos do marketing agressivo, ao poder das grandes corporações, na salvaguarda dos poderosos no poder, mas efetivamente não é esta a proposta e muito menos o desejo do longa-metragem. Fala mais alto o puro e autêntico entretenimento. Como Vender a Lua é leve, descomprometido e despretensioso. Uma comédia que remete, com a devida vênia, às produções de um Frank Capra, por exemplo, o diretor que melhor representou o sonho americano em suas comédias dos anos 30 e 40.

Assista ao trailer: Como Vender a Lua


Jorge Ghiorzi

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