segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O Conde de Monte Cristo: vingança épica

 

Aparentemente há em curso um revival de adaptações cinematográficas de clássicos da literatura francesa. A novidade é a origem nacionalista destas adaptações. Por décadas Hollywood produziu inúmeras reinterpretações de obras de grandes escritores franceses, muitas delas permanecendo até hoje no imaginário popular como as versões definitivas. A novidade no movimento atual é que as novas adaptações que estão chegando aos cinemas são produzidas na própria França, assegurando desta maneira, além da língua nativa, um olhar mais condizente com o contexto territorial da origem das obras. Assim foi com as duas recentes adaptações de Os Três Mosqueteiros transformados em um díptico com ares de superprodução revisionista por respeitarem a obra original: D’Artagnan e Milady (ambos de 2023). 

Parte da equipe criativa por trás destes dois filmes está de volta com mais um projeto baseado na obra de Alexandre Dumas. A dupla de roteiristas de D’Artagnan e Milady desta vez assume a posição de realizadores. Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte assinam a direção de O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo, 2024). Retomando aquela questão das adaptações norte-americanas, é bastante provável que a adaptação mais popular e presente na mente das pessoas seja a versão de 2002, dirigida por Kevin Reynolds (Robin Hood: O Príncipe dos Ladrões e Waterworld) e estrelada por Jim Caviezel, Guy Pearce e Henry Cavill.


A versão 2024 reforça o caráter de aventura épica que fez a fama do romance de Alexandre Dumas. O filme acompanha Edmond Dantès (Pierre Niney) um jovem marinheiro que sofre uma trágica injustiça no dia de seu casamento. Ele é preso devido a uma conspiração organizada pelos seus supostos amigos, que o acusam de espião aliado a Napoleão Bonaparte. Enclausurado no sinistro Château d’If, Edmond acaba conhecendo no cárcere, como vizinho de cela, um abade que relata uma mirabolante narrativa a respeito de um gigantesco tesouro escondido. Após 14 anos (cerca de uma hora de tempo de tela) Edmond consegue escapar da prisão e parte em busca da fortuna escondida. Torna-se rico e poderoso, porém obstinado em castigar aqueles que o traíram. Reaparece na alta sociedade parisiense como o misterioso e magnífico Conde de Monte Cristo com um único objetivo: vingar-se daqueles que destruíram a sua vida.

Essencialmente O Conde de Monte Cristo é uma história de vingança que transita por três blocos narrativos: injustiça, penitência e redenção. O roteiro bem estruturado permite uma edição dinâmica, ainda que não existam grandes cenas de ação, fator que proporciona a fruição da história por três horas sem grande esforço por parte do espectador. Em termos técnicos e artísticos (fotografia, figurinos, direção de arte) o filme da dupla Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte é um deleite para os olhos e garante um espetáculo em alta escala.


A ardilosa trama de vingança de Edmond relembra, com a devida ressalva, as elaboradas tramas de filmes como Missão Impossível, que envolvem trocas de identidades com personagens dissimuladas que não são exatamente quem parecem ser. O que efetivamente exige uma boa dose de suspensão de descrença por parte da plateia. A diferença fundamental entre as artimanhas de Tom Cruise e a cruzada vingadora de Edmond, além dos 180 anos que as separam, é a elementar ausência da tecnologia. No mais, a motivação, a sagacidade, o ardil e a capacidade de iludir são exatamente iguais. 

O formato aventuresco com grandes subtramas se explica pelo fato de que O Conde de Monte Cristo foi publicado inicialmente no formato de folhetim ao longo de dois anos (1844 a 1846). Os ganchos dramáticos eram uma necessidade da estrutura da obra para garantir o interesse dos leitores ao longo do tempo. Modelo semelhante às atuais telenovelas e séries de TV. Portanto, uma adaptação cinematográfica necessariamente teria de abrir mão parcial ou total de algumas destas tramas paralelas sob pena de tornar inviável dramaturgicamente uma narrativa visual em tempo razoável. Ainda assim, esta versão de 2024 é uma das adaptações mais fiéis da obra original ao respeitar sua essência narrativa, permitindo desta maneira um amplo alcance da totalidade da criação literária de Alexandre Dumas.



Grande e vigoroso, O Conde de Monte Cristo percorre o caminho obstinado da vingança de Edmond com sobriedade e seriedade, sem momentos de alívio cômico (como as versões recentes de Os Três Mosqueteiros) que afastem o propósito da condução da história, que em sua essência foca sempre no destino trágico do protagonista. Bem produzida, bem interpretada e bem dirigida esta versão captura a profundidade emocional do romance entregando para o público contemporâneo a reinterpretação de um clássico.

Assista ao trailer: O Conde de Monte Cristo


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Quem é Joe Penna?

 

Nos créditos de A Garota da Vez, lançamento recente dirigido e estrelado por Anna Kendrick, aparece o nome de Joe Penna com produtor executivo. Quem é Joe Penna?

Este é o nome artístico de Jônatas de Moura Penna, nascido em São Paulo (SP). Quem está mais atento ao universo dos youtubers identifica o cineasta por outro nome: MysteryGuitarMan. Sim, isso mesmo, Joe Penna começou sua carreira com um canal no YouTube, sendo um dos primeiros brasileiros a bombar na rede, quando chegou a ficar entre os dez usuários de todo o mundo com mais inscrições em 2010.


Autodidata e desbravador, Joe Penna emigrou para os EUA onde frequentou a Universidade de Massachusetts para estudar Medicina. Abandonou o curso em 2007 para se dedicar integralmente ao canal “MysteryGuitarMan” no YouTube, criado um ano antes. Em 2010 dirigiu a série de TV T-Shirt War e se insere no mercado do audiovisual nos Estados Unidos. Em 2011 e 2012 cria, escreve, dirige e atua na série Once Upon, e participa (dirigindo e/ou atuando) das séries Sand Box e Behind the Glasses. Ainda em 2012 escreve e dirige seu primeiro curta-metragem, o drama de aventura Meridian, que marcou o momento definitivo de passagem para o universo do cinema.


Após outras quatro realizações de curtas-metragens, em 2018 Joe Penna chega ao longa com Ártico, um drama de sobrevivência no território polar estrelado por Mads Mikkelsen. O filme foi exibido no Festival de Cannes e recebeu críticas de modo geral positivas da imprensa especializada. Atualmente Ártico está no catálogo dos canais a cabo no Brasil, onde é exibido regularmente.


A oportunidade de ouro veio no ano seguinte quando a Netflix deu sinal verde para seu novo projeto. Em meados de 2019 Joe Penna iniciou a produção e direção de Passageiro Acidental (Stowaway) que escreveu conjuntamente com Ryan Morrison, com quem já havia trabalhado no desenvolvimento do roteiro de Ártico. Estrelado por Toni Collette, Anna Kendrick, Daniel-Dae Kim e Shamier Anderson, a produção é um thriller de ficção científica que mostra a tripulação de uma nave em missão com destino à Marte. Em meio à viagem a equipe se depara com um inesperado tripulante extra a bordo, que desequilibra seriamente os recursos do sistema de suporte à vida e coloca a missão em risco.


Consta que o filme seria lançado pela Netflix no Brasil com o título de Passageiro Clandestino, inclusive chegou a ser chamado assim nas primeiras peças de divulgação. O diretor Joe Penna, ao tomar conhecimento deste título, lamentou a escolha e comentou no Twitter o equívoco: “O passageiro extra não está lá de propósito. Foi um acidente”. Inconformado ele entrou em contato com a plataforma e pediu a mudança do nome. Assim, o filme foi rebatizado com o novo título, substituindo o “Clandestino” por “Acidental”.


Aparentemente neste filme surgiu uma parceria ou amizade entre o realizador e Anna Kendrick. Após participar do filme de Joe Penna a atriz começou a trabalhar na produção de A Garota da Vez, que marcaria sua estreia na direção. Quem aparece como um dos produtores executivos do longa-metragem? Joe Penna.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A Linha da Extinção: proibido ultrapassar

 

Nos últimos anos o título de uma leva de filmes de gênero (suspense, terror e até comédia), em sua versão brasileira, tem adotado a prática de dar ordens de comando aos personagens / espectadores, tipo “não olhe”, “não conte”, “não fale”, “não case”, “não abra”, “não se mexa” e “não solte”. O thriller de ação e ficção científica A Linha da Extinção (Elevation, 2024) não se enquadra exatamente nesta moda, mas muito bem poderia se chamar “Não Desça”. Na premissa do filme as populações de um mundo pós-apocalíptico se refugiam nas zonas altas das montanhas. A recomendação é de que não se desça abaixo dos 2.400 metros de altura, a chamada linha da extinção. Ao ultrapassarem este limite as pessoas são atacadas por criaturas monstruosas de origem desconhecida.

Em uma desta comunidades, uma pequena vila na verdade, moram os protagonistas: Will (Anthony Mackie), com seu filho Hunter que sofre de problemas respiratórios, Nina (Morena Baccarin) e Katie (Maddie Hasson). A localidade foi criada há três anos, após os acontecimentos que marcaram o surgimento dos “ceifadores”, os seres que emergiram misteriosamente do subsolo para ocupar e dominar o planeta. A origem do êxodo das pessoas para as montanhas é narrada com muita síntese durante os créditos de abertura. Pressionados pela crescente escassez de alimentos e pela necessidade de suprimentos médicos para Hunter, o trio decide empreender uma perigosa missão em busca de recursos em um hospital abandonado, localizado bem abaixo da linha da extinção de 2.400 metros.


A jornada de sobrevivência do grupo em meio hostil é o mote da trama central da ação de A Linha da Extinção, que tem a direção de George Nolfi (de Os Agentes do Destino). Outro ingrediente que tempera a aventura é a relação de antagonismo que existe entre os integrantes do trio. Todos possuem um passado comum cujas consequências, de alguma maneira, se refletem no presente causando um tensionamento nas relações, que explodem justamente no momento menos apropriado: quando embarcaram em uma perigosa viagem. 

Os cenários naturais das montanhas do Colorado são muito bem utilizados contribuindo para o dinamismo de boas tomadas com drones. Uma das sequências a se destacar é a do teleférico que garante bons momentos de suspense e tensão, onde o cenário natural assume importante papel narrativo. Neste aspecto relacionado ao ambiente, onde a ameaça da trama surge da natureza, o filme A Linha da Extinção se aproxima – ou ao menos lembra demais - do universo dos filmes da franquia Um Lugar Silencioso, que também lida com as ameaças do desconhecido que destroem o mundo que conhecemos.


A produção do filme traz os nomes de Anthony Mackie e Morena Baccarin, o que lhes garante o protagonismo compartilhado, porém com resultados diversos. Enquanto Mackie (o novo Capitão-América), que faz o papel de um pai dedicado que arrisca a vida para salvar a vida do filho, possui poucos momentos para brilhar de verdade, a brasileira Morena Baccarin (de Deadpool) ganha bastante espaço para desenvolver uma personagem com uma pesada carga emocional interior e também uma missão pessoal de descobrir uma maneira de eliminar as criaturas.


A ação de A Linha da Extinção é bastante convencional, com soluções previsíveis e situações clichê. Um pecado mortal é o excesso de diálogos expositivos, como que a prestar contas ao espectador sobre os fatos que estão acontecendo. A bem da verdade o filme não possui grandes ambições justamente por reconhecer sua dimensão, pois é a típica produção com o perfil de grande circulação nas plataformas de streaming, onde possivelmente possa ter vida longa. A propósito, o gancho para a provável sequência é apresentado na cena pós-créditos.

Apesar de estar longe de ser filme do qual lembremos por muito tempo, A Linha da Extinção é um entretenimento que não ofende a inteligência do espectador. É rápido e conciso, para assistir com o cérebro desligado. 

Assista ao trailer: A Linha da Extinção


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Herege: questão de fé

 


Duas garotas sentadas em um banco de rua conversam amenidades até que o assunto inesperadamente passa para temas explicitamente sexuais. Completando o quadro, a câmera se afasta e exibe uma propaganda de preservativo no encosto do banco. Uma ironia contraditória se estabelece nos primeiros minutos de Herege (Heretic, 2024) quando descobrimos que as duas garotas em conversa tão liberal são na verdade missionárias católicas que tem como tarefa conquistar novos fiéis através da palavra. A missão do dia é visitar um homem descrente para convertê-lo para a religião. O homem em questão é o misterioso e recluso Sr. Reed (Hugh Grant) que vive isolado em um casarão. 

O thriller de horror psicológico Herege é uma produção da A24, dirigido pela dupla Scott Beck e Bryan Woods, que tem como destaque o protagonista: Hugh Grant. Conhecido por uma série de comédias românticas como Quatro Casamentos e Um Funeral, Um Lugar Chamado Notting Hill e Simplesmente Amor, aqui Hugh Grant está em registro sombrio e maligno, completamente oposto à persona que criou no cinema, ainda que preserve parcialmente alguns trejeitos de seus papéis mais cômicos, quando faz o cara legal e simpático. O que, a propósito, muito contribui para a construção do sarcasmo deste personagem complexo.


Ao receber a visita das duas jovens o Sr. Reed manifesta interesse em ouvir as palavras de fé trazidas pelas missionárias. A contragosto elas aceitam entrar na casa com um homem que vive só. A pregação começa amigável e descontraída, até que em dado ponto Reed passa a dominar a conversa e conduz as ações. Ele debocha e deprecia todos os aspectos dogmáticos das religiões segundo sua interpretação torta e distorcida. Seu principal propósito é contestar e destruir verdades estabelecidas, contradizendo todo o discurso das missionárias. Segundo sua tese todas as ideias religiosas existentes são plágios reelaborados de histórias passadas. Chega inclusive a fazer uma analogia muito esperta e bem sacada com o mercado da música, que eventualmente é acusada de fazer plágio, deliberadamente ou não, de canções ou acordes já existentes. Há ainda outra metáfora quando compara as preferências das jovens para os sanduíches mais conhecidos das famosas franquias de fast food, para concluir que no final das contas são todos iguais. Segundo ele o mesmo ocorre com as religiões: são fast foods da fé para rápido consumo.


Fica claro que as garotas entraram em uma cilada. Reed pretende subjugar suas presas com argumentos pretensamente inteligentes e coerentes, visando despertar suas consciências capturadas pela crença religiosa. Quando a situação fica por demais incomoda, as garotas sinalizam a intenção de abandonar o local. Então o terror começa. A visita de cortesia para evangelização se transforma em uma armadilha sem chance de fuga. Sem poderem sair da casa inicia-se uma espécie de jogo macabro de manipulação mental. A tese defendida pelo personagem de Hugh é de que a construção das grandes religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – se dá como forma de controle social e conquista de seguidores. A origem da profissão de fé, em tese, é a mesma. Apenas seguem por caminhos diferentes. 

As missionárias possuem histórias pessoais e origens muito diferentes, razões que justificam as maneiras distintas que reagem às ameaças que sofrem no interior da casa. Mas as aparências enganam, como diz a máxima. Herege possui uma proposta de narrativa tipo huis clos, circunscrita em um ambiente único, restrito e confinado. O casarão de Reed faz as vezes de um imenso parque de diversões macabro onde brinca com seus jogos de poder sobre o destino de suas vítimas.



Herege se apropria de discussões sobre temas de fé misturadas com reflexões filosóficas rasas. Questiona os dogmas religiosos e o poder transformador da crença no livre arbítrio das pessoas, pois não passam de utilização mercadológica da religião ao longo dos séculos. Mais do que terror, Herege se coloca como uma experiência de suspense e tensão. A necessidade de provocar reviravoltas apressa e prejudica a experiência final do filme. A meticulosa construção do clima de tensão é destruída no terço final por uma série de acontecimentos fortuitos que quebram completamente a proposta inicial, tão bem conduzida até então. Herege passa 110 minutos pregando o ateísmo para, ao fim, plantar sementes da dúvida.

Assista ao trailer: Herege

 

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Gladiador II: força e honra

O tempo decorrido entre o primeiro Gladiador (2000) e sua sequência Gladiador II (2024) é de praticamente 25 anos, o mesmo período de tempo real que separa o enredo da continuação da história original. Não é surpresa para ninguém, portanto não se trata de spoiler, pois está no trailer, o novo filme de Ridley Scott é centrado na figura do filho do ex-general e gladiador Maximus (Russell Crowe), que por circunstâncias análogas retorna à Roma na condição de prisioneiro de guerra e também se torna gladiador nos jogos do Coliseu. 

O filme abre com um prólogo que narra uma épica batalha entre o exército romano, comandado pelo general Marcus Acacius (Pedro Pascal) contra as forças de defesa da Numídia (território no norte da África, onde hoje se localiza a Argélia e Tunísia). A campanha expansionista conquista mais um território para o poderoso Império Romano. No espólio da guerra centenas de prisioneiros são enviados para trabalho escravo nas redondezas de Roma. Dentre estes prisioneiros está Hanno / Lucius (Paul Mescal, de Aftersun) que acaba sendo comprado pelo influente mercador e negociante Macrinus (Denzel Washington) para ser utilizado como gladiador.


Estes primeiros momentos de Gladiador II nos fazem pensar estarmos diante de uma mera refilmagem do filme original, e não propriamente de uma continuação. As sagas dos protagonistas são muito semelhantes. Porém, logo Ridley Scott mostra a que veio. A saga de uma vingança pessoal é apenas um ponto de partida. Outras camadas são acrescentadas à trama central e o enredo se transfigura em uma narrativa de conspirações, tramas palacianas e luta pelo poder supremo do Império. Neste aspecto o eixo da trama sai da figura do gladiador, que reprisa a trajetória do pai, e se concentra na personagem de Macrinus, em uma poderosa interpretação de Denzel Washington. 

Assim como o gladiador Hanno / Lucius luta com seus demônios internos para honrar e merecer o legado da história de seu pai, Gladiador II vem à luz com a tarefa de fazer jus ao legado do Gladiador I, que foi o filme sensação do início dos anos 2000, sucesso de bilheteria e crítica. Ridley Scott comanda essa retomada do projeto (muitas vezes adiado) sempre de olho no retrovisor, prestando tributo àquela produção fundamental que restituiu seu prestígio como realizador. Vale lembrar que o primeiro Gladiador conquistou cinco prêmios no Oscar de 2001, incluindo Melhor Filme e Ator, além de garantir uma indicação pela direção de Ridley Scott.


Nestas duas décadas e meia que separam os dois filmes houve uma significativa evolução técnica da computação gráfica, ainda um tanto incipiente no uso em larga escala naquele período de produção de Gladiador I. Os cenários gerados por bits e bytes comprovaram a viabilidade e verossimilhança da técnica e marcou época, abrindo caminho para uma série de filmes históricos e séries de fantasia, incluindo produções como Game of Thrones e similares. Hoje não há mais novidade neste campo, há inclusive um certo enfado pelo uso recorrente e não criativo da técnica, que virou um recurso antinatural que frequentemente incomoda as plateias. O uso massivo de computação gráfica pode irritar muita gente, mas certamente não irrita Ridley Scott. Nesta nova produção ele vai fundo na utilização deste recurso técnico em busca de uma monumentalidade forçada em sua obra, a ponto de sufocar visualmente a narrativa que tem lá seu interesse como exercício de jogos de poder. 

Ridley Scott é um cineasta de contradições, por vezes extremas. Costuma errar e acertar com uma frequência consistente, sempre alternando filmes de qualidade e impecável produção com outros tantos equívocos imperdoáveis e frustrantes. Sua ambição estética costuma se sobrepor ao conceito narrativo de seus projetos. Sua opção primeira costuma ser pelo épico monumental, depois, em segundo plano vem o storytelling, os arcos narrativos e suas decorrências. Ridley é o cineasta do espetáculo, não do personagem. Posto isso, Gladiador II é um exemplo típico da marca padrão de seu realizador. A busca pela grandiosidade está presente em muitos momentos, incluindo sequências exageradas com rinoceronte, babuínos e .... tubarões, em plena arena do Coliseu.


No entanto, além da relevância dos aspectos estéticos, há uma história a ser contada. O conflito em Gladiador II coloca em oposição a visão de mundo de Maximus e seus descendente Lucius. O pai possuía uma visão otimista do Império, antes de ser sacrificado por seus ideais. Já o seu filho nutre um pessimismo profundo sobre o destino do Império e dos líderes que o comandam. Sua luta não é para manter uma utopia visionária de um reino de justiça e paz, como seu pai. Sua ira se manifesta para justamente restituir os ideais de uma sociedade que sucumbe pelo hedonismo, ganancia, corrupção e tirania. O que Gladiador I possuía de heroico foi substituído pelo ceticismo sombrio em Gladiador II. Ou seja, o que era ruim no passado fica ainda pior e decadente 25 anos depois.


“O que fazemos em vida ecoa por toda a eternidade”. Parafraseando esta frase icônica de Gladiador I poderíamos afirmar que Gladiador II será um filme memorável no futuro? Dificilmente. A mescla de ação e drama é um tanto rasa e óbvia, não acertando a mão plenamente em nenhum dos caminhos. Cumpre apenas a promessa de entregar um épico de entretenimento com excelência técnica. Há, no entanto, um ponto que o coloca em destaque. A simples participação de Denzel Washington em cena eleva necessariamente a qualidade de qualquer filme onde esteja presente. Seu desempenho aqui é nada menos que primoroso e garante o interesse do público para uma sequência que, se não supera o legado do filme anterior, tem seus méritos por ousar um rumo próprio para além de uma simples reprodução do modelo original.

Assista ao trailer: Gladiador II


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui: memórias dos tempos de chumbo

O longa-metragem que marca o retorno de Walter Salles aos temas e cenários brasileiros é uma obra memorialista inspirada no livro de Marcelo Rubens Paiva. O filme aborda os episódios verídicos da tragédia familiar do desaparecimento e morte do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva (pai de Marcelo), no período da ditadura militar brasileira. Assim como em Central do Brasil, realizado há 26 anos, Ainda Estou Aqui novamente faz o relato de uma busca, de um resgate de memórias e histórias interrompidas. 

Brasil. Rio de Janeiro. Início dos anos 70. Uma primorosa recriação iconográfica, estética e sonora nos transporta para um país de contrastes. A alegria descontraída de uma praia carioca esconde os subterrâneos dos porões da repressão e tortura. É neste tempo e espaço que somos apresentados à família formada por Rubens Paiva (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), cinco filhos e muitos amigos. Sinais de ameaça iminente surgem a todo momento. Helicópteros militares em voos rasantes sobre zonas residenciais. Movimentação de tropas em caminhões. Circulação de militares pelas ruas. As apreensões de Eunice se confirmam quando certo dia agentes das forças de repressão chegam à sua casa para conduzir Rubens Paiva para um breve depoimento nas dependências de um quartel militar. A promessa era de que ele voltaria para casa em poucas horas. Nunca mais retornou, sua detenção foi negada e seu corpo jamais localizado.

O motor da narrativa de Ainda Estou Aqui é a angustiante jornada de Eunice em busca do paradeiro do companheiro de vida, pai de seus filhos. Enquanto luta obstinadamente atrás de informações que expliquem o desaparecimento, Eunice precisa encontrar forças para manter a família unida e protegida, ainda que para isso tenha que ocultar grande parte da verdadeira história para seus filhos, ainda jovens e menores de idade. Uma aparência de normalidade controlada se instala naquela casa, ao mesmo tempo em que uma obstinada batalha consome os dias de Eunice, guardiã da paz e da integridade família em risco.

Medo e angústia são dois sentimentos muito presentes nos personagens de Ainda Estou Aqui, mesmo aqueles que não possuem pleno conhecimento do que está ocorrendo. Este é um registro muito bem trabalhado por Walter Salles, que se afastou de uma abordagem mais política e, digamos, abertamente panfletária daquele contexto histórico. A ditadura e a repressão está lá, suas consequências estão expostas, mas não é este objetivamente o ponto fulcral. O olhar do filme é todo direcionado para os nocivos e lamentáveis efeitos deletérios daquele período de chumbo na vida real de pessoas reais, com suas sequelas físicas e psicológicas que se perpetuaram ao longo dos anos.


Recriar aqueles episódios ocorrido há mais de 50 anos equivale a revisitar, com dor e pesar, um baú de memórias adormecidas. A elegante direção de Walter Salles torna esta jornada uma experiência guiada pela sensibilidade e emoção, sem excessos narrativos para conquistar a plateia. A história se conta por si só, sem artifícios ou truques, apenas levada pela interpretação e um roteiro enxuto. Ainda assim há uma sequência espetacular que reforça a capacidade da gramatica audiovisual transmitir emoção e contexto. Sem palavras. A chegada dos agentes na casa ensolarada dos Paiva – localizada a poucos metros da praia – transforma simbolicamente o destino daquela família quando começam a fechar todas as cortinas das janelas de casa, impedindo a entrada de luz. A partir daquele momento a vida daquela família estava definitivamente entrando em um período sombrio de trevas. 

Referimos a questão da interpretação e neste aspecto é impossível não destacar o maravilhoso trabalho de Fernanda Torres. Interpretando com muita entrega e emoção todos os momentos limites vivenciados por Eunice Paiva, Fernanda Torres cativa e comove com sua performance cheia de nuances e carga emocional. Aqui temos uma atriz com pleno domínio do seu ofício, que tem conquistado elogios e referências positivas pela crítica nacional e internacional. Há inegavelmente uma perspectiva real de que Fernanda Torres seja indicada ao Oscar em 2025, repetindo a façanha da mãe, Fernanda Montenegro, indicada em 1999 por Central do Brasil.


A expressão “Ainda estou aqui” representa um clamor de quem aguarda, de quem espera, de quem vive a eterna expectativa do retorno. O filme de Walter Salles deixa esta mensagem. Ao reativar nossas memórias, Ainda Estou Aqui resgata um episódio doloroso que fere a história do Brasil. Para não esquecer. Para não deixar passar em vão. Assistir Ainda Estou Aqui é um ato de resgate de um Brasil que não mais desejamos, mas não pode ser esquecido. Ainda que saiamos da sessão com o peito aberto e o coração dilacerado.

Assista ao trailer: Ainda Estou Aqui


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Não Solte!: conto infantil de terror

 

As casas são elementos utilizados com frequência como espaços de confinamento onde transcorrem muitos filmes de terror. Seja como ambiente de manifestação de forças malignas ou como local de abrigo e refúgio, o fato é que as casas normalmente assumem a condição de “personagem” ativo das narrativas construídas com o objetivo de provocar o medo ao confrontar o limite entre o real e o sobrenatural. A ameaça, em última ordem, se manifesta como um poder sinistro que rompe o equilíbrio e a harmonia – ainda que aparente – de um lar doméstico. A tal da casa mal-assombrada é um clássico das histórias de terror. 

Pois justamente uma casa – olha ela aí de novo - é o elemento catalizador de todos os mistérios e espíritos do além que espreitam uma família no thriller de terror Não Solte! (Never let go, 2024). O longa-metragem é estrelado e produzido por Halle Berry, atriz vencedora do Oscar por seu desempenho em A Última Ceia, de 2002. A direção é de um especialista do gênero, o francês Alexandre Aja, que já demonstrou sua identificação com os filmes de gênero nos longas Alta Tensão (2003), a refilmagem Viagem Maldita (2006), o remake Piranha (2010) e Predadores Assassinos (2019), aquele dos crocodilos que invadem uma casa inundada por uma enchente, cuja sequência está em produção, mais uma vez com direção de Aja.


O núcleo narrativo de Não Solte! fica limitado aos arredores de uma casa isolada em meio a uma densa floresta, ou pelo menos, até aonde a corda esticada que prende seus moradores pode chegar. A explicação para esta condição inusitada é o grande mistério da história. Na casa reside uma família formada por uma mãe e dois filhos gêmeos pré-adolescentes, órfãos de pai. Segundo um ritual pagão proferido pela mãe, todos eles só podem sair de casa se estiverem amarrados por uma corda que os liga diretamente com a moradia, construída com madeira de origem sagrada. A crença é de que desta forma estariam protegidos dos espíritos e entidades sobrenaturais que vivem na floresta e rondam ameaçadoramente a casa, sem, no entanto, invadi-la, porque aquele ambiente familiar seria um refúgio seguro. 

Com esta premissa a primeira referência que nos vem à mente é o conto de fadas “João e Maria”, celebrado na obra dos irmãos Grimm. Neste clássico infantil os dois irmãos demarcam sua trilha segura de volta para casa com pedrinhas e migalhas de pão, assim escapando da morte. A analogia entre as duas histórias é totalmente justificável, ainda que caminhem por abordagens e desfechos completamente distintos. Enquanto a fábula de “João e Maria” é uma historinha de fundo moral para fazer as crianças dormirem, o filme Não Solte! se configura como um sombrio conto infantil de terror. 


A casa como elemento simbólico de segurança é muito presente no conceito de Não Solte!. Outra analogia que o filme parece propor é a ideia de que as cordas que garantem a vida dos personagens sejam entendidas como cordões umbilicais não seccionados, que asseguram a garantia da vida antes do nascimento. No caso específico aqui, o que poderíamos definir como “nascimento” seria a plena compreensão dos fatos que revela e desperta a consciência. Romper as cordas (cortar o cordão umbilical), resultaria, portanto, no processo final de libertação, física e psicológica, da influência da mãe. Neste aspecto o filme de Alexandre Aja peca por ser tão literal e óbvio em suas metáforas. Na verdade, não há um problema em si com as analogias, pois contém um valor narrativo interessante. O ponto que fragiliza o resultado é a ausência de uma complexidade na apresentação destes elementos. Eles apenas estão lá, em cena, um tanto gratuitos. Meros artifícios estéticos sem a devida reflexão crítica que as justifique no contexto geral. 

Apesar da forte presença da matriarca zelosa interpretada por Halle Berry, a história se desenvolve sob a perspectiva dos filhos. O olhar deles, bem como da sua limitada compreensão dos fatos, conduz nosso mergulho naquele universo de crenças e mitos. O medo da morte é real. As ameaças seriam também? Deste impasse se constrói o suspense psicológico no qual Não Solte! se transforma em seus dois atos finais. Na condição de espectadores somos conduzidos para um determinado destino até que lá pelas tantas as dúvidas começam a nos sobressaltar. Será isso mesmo? Há então uma mudança de percepção sobre tudo que assistimos. Reconsideramos parcialmente os fatos apresentados e colocamos a narrativa em outra rota. Quando achamos que as peças todas foram rearranjadas em seu devido lugar, novas ocorrências voltam a desordenar o conforto da plena compreensão do todo. 


Não Solte!, que inicia como um filme de terror raiz, aos poucos se transforma em um suspense psicológico de pouca inspiração, frustrando todas as boas expectativas criadas por descontinuar toda a alegoria construída com algum êxito. Uma análise sobre o poder da crença é um dos ótimos temas desperdiçados pelo realizador Alexandre Aja, que revela uma indecisão sobre exatamente qual projeto desejava fazer. Para fãs ou detratores, Não Solte! é um possível filme de M. Night Shyamalan não realizado por Shyamalan. Para o bem ou para o mal.

Assista ao trailer: Não Solte!


Jorge Ghiorzi

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