segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Batman Eternamente: extravagância neon revisitada



Celebrando três décadas desde o seu lançamento, Batman Eternamente (Batman Forever), dirigido por Joel Schumacher, retorna às telas de cinema como um relançamento que mexe com nossas memórias. Não como uma joia esquecida, mas como um artefato peculiar de uma era audaciosa, por vezes desastrosa, do cinema de super-herói. O filme é, do primeiro ao último minuto, uma extravagância desmedida, um festival de exageros que beira o inacreditável. O tempo, longe de tê-lo redimido, apenas confirmou o que a crítica e o público já sabiam em 1995, pois trata-se de um equívoco criativo de proporções monumentais.

A tênue trama serve meramente como fio condutor para uma sucessão de cenas caóticas. O Batman (Val Kilmer) precisa enfrentar uma dupla de vilões: Duas-Caras (Tommy Lee Jones), um ex-promotor público desfigurado e obcecado, e o Charada (Jim Carrey), um gênio da tecnologia que lança enigmas mortais sobre Gotham City. Enquanto isso, o herói se vê atraído pela psiquiatra Dr. Chase Meridian (Nicole Kidman), que está igualmente interessada em estudar a mente do homem por trás da máscara. A narrativa é um mero pretexto para Schumacher mergulhar sua Gotham City em um oceano de luzes neon, roupas de couro e tomadas absurdamente amplas dos músculos do Batman.



É no campo das atuações, porém, que o filme atinge seus picos mais surreais de descontrole. Tommy Lee Jones, um ator de talento inquestionável, interpreta Duas-Caras com uma fúria tão desmedida e caricata que beira a paródia. Ele rosna, grita e espuma pela boca em cada cena, sem uma pitada da nuance trágica que o personagem merece. Jim Carrey, na esteira do sucesso explosivo de O Máskara, leva sua persona hipercinética ao extremo absoluto. Seu Charada é menos um gênio do crime e mais uma versão alucinada do seu personagem cômico Ace Ventura, contorcendo-se e tagarelando em um ritmo frenético que cansa mais do que diverte. Juntos, eles formam uma dupla de vilões que não ameaça, mas simplesmente oprime os sentidos com seu excesso.


A receptividade na época foi relativamente mista, ainda que seus aspectos negativos tenham sido reconhecidos até pelos mais ferrenhos fãs do personagem. O público e a crítica estavam ainda apegados ao tom sombrio e gótico estabelecido por Tim Burton nos dois primeiros filmes. Batman Eternamente foi recebido como uma guinada brusca e barulhenta em direção ao camp e ao comercialismo puro. A saída de Burton e de Michael Keaton foi sentida profundamente, e a escolha de Joel Schumacher, cuja filmografia (Os Garotos Perdidos, Um Dia de Fúria) não sugeria afinidade com heróis mascarados, mostrou-se um erro crucial. O diretor admitiu ter se inspirado principalmente na série de TV dos anos 60, e isso explica tudo. A atmosfera é deliberadamente kitsch, uma celebração do absurdo que ignora completamente a complexidade do homem-morcego.


Reassistir ao filme 30 anos depois provoca um sentimento peculiar. A princípio, a avalanche de más decisões criativas ainda assusta. No entanto, visto através da lente da nostalgia e da condescendência que o tempo concede, Batman Eternamente ganha um charme acidental. Ele se torna um documento de sua época, um produto de estúdio desesperado para ser pop e vender brinquedos. É impossível não sentir uma ponta de lamento por Val Kilmer, um ótimo ator preso no meio desse furacão de mau gosto, tentando em vão trazer um pouco de seriedade a um set que mais parecia um circo. Batman Eternamente não é um bom filme, mas três décadas depois, sua falha catártica e honesta é, de uma forma estranha, mais digna do que os produtos calculados e sem alma que às vezes vemos hoje. É um erro glorioso, e como tal, merece ser lembrado.

Assista ao trailer: Batman Eternamente


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

30 anos do PREVIEW: pioneira publicação de cinema de Porto Alegre


 

Em setembro de 1995, ano emblemático marcado pelas comemorações do centenário do cinema, foi lançado o primeiro número do Preview, uma publicação mensal dedicada ao universo da sétima arte. As edições eram distribuídas gratuitamente nas salas de cinema de Porto Alegre.

Em um período em que a internet ainda engatinhava e as fontes de informação eram escassas, o Preview se destacou como uma iniciativa pioneira no jornalismo cultural local voltado exclusivamente ao cinema. Com apenas quatro páginas, o informativo trazia notícias sobre lançamentos, curiosidades e matérias sobre os bastidores da indústria cinematográfica. Na época, cinéfilos e demais interessados dependiam quase exclusivamente de publicações impressas para acompanhar novidades e tendências do setor, entre elas as populares revistas Set e Cinemin, que dominavam o mercado editorial nacional nos anos 1990.



Criado e editado pelo jornalista e crítico de cinema Jorge Ghiorzi, o Preview , que a partir do 2º ano passou a se chamar Cine Guia Preview, teve 32 edições mensais entre 1995 e 1998, período que marcou seu primeiro ciclo de existência. Além de informar, a publicação também serviu como ponto de encontro para a comunidade cinéfila da capital gaúcha, antecipando tendências que mais tarde seriam amplificadas pelas redes sociais e pelos portais especializados.


Dez anos após seu encerramento, em 2008, o Cine Guia Preview iniciou um segundo ciclo, desta vez em formato digital. Convertido em newsletter quinzenal, passou a ser distribuído gratuitamente por e-mail a assinantes e teve seu conteúdo disponibilizado também no blog oficial. Com essa transformação, a publicação acompanhou a transição do jornalismo impresso para o ambiente online. Nessa nova fase, foram produzidas 41 edições até 2011, quando a publicação encerrou suas atividades de forma definitiva.

Alguns anos mais tarde, surgiu nas bancas de todo o país uma revista impressa editada por uma grande empresa do mercado nacional que adotou o mesmo nome, Preview, embora não tivesse qualquer relação com a publicação original porto-alegrense lançada em 1995.

Ao completar três décadas de seu surgimento, o Cine Guia Preview permanece como um marco da imprensa cultural do Rio Grande do Sul, lembrado como uma das primeiras iniciativas regionais dedicadas exclusivamente à cobertura de cinema e por ter dado voz e espaço à paixão pelo audiovisual em um período anterior à era digital.


sábado, 9 de agosto de 2025

A Hora do Mal: fábula sombria de inocência e horror


Em um dia comum de aula, 17 crianças desaparecem misteriosamente. Elas se levantam de suas camas, abrem as portas da frente e correm noite adentro, como se obedecessem a um chamado invisível. Todas essas crianças pertencem à mesma turma da terceira série de uma escola primária. Este é o ponto de partida A Hora do Mal (Weapons), sem dúvida, perturbador e irresistivelmente intrigante para os fãs de um bom suspense psicológico. 

Dirigido com ousadia e criatividade por Zach Cregger, o filme transforma sua premissa em um verdadeiro quebra-cabeça narrativo. O roteiro se desenvolve de forma não linear, estruturado em capítulos de aproximadamente 15 minutos, cada um nomeado a partir de um personagem que ocupa o centro, ou a periferia, do mistério. À medida que cada peça é revelada, a trama se torna mais complexa e envolvente, revelando camadas cuidadosamente construídas.


No centro da história está Justine Gandy, interpretada com intensidade e vulnerabilidade por Julia Garner (da série Ozark, e também do elenco do recente Quarteto Fantástico). Professora da turma desaparecida, Justine chega à escola certa manhã e encontra apenas um de seus 18 alunos presente, o tímido Alex, vivido por Cary Christopher. Tanto ela quanto o menino são interrogados pela polícia, assim como o diretor da escola, Marcus (Benedict Wong, de Doutor Estranho), mas as investigações encontram poucas pistas concretas. As imagens das câmeras de segurança das casas das crianças revelam algo ainda mais inquietante: elas não estavam fugindo de algo, mas sim correndo em direção a alguma coisa ou a alguém. Completa o elenco de protagonistas o ator Josh Brolin (de Vingadores: Ultimato, Deadpool 2 e Duna). 

É nesse clima de crescente estranheza que o filme mergulha, mais interessado em construir uma atmosfera desconcertante do que provocar sustos fáceis. A Hora do Mal é, muitas vezes, mais bizarro do que propriamente assustador, o que pode frustrar parte do público acostumado a um terror mais convencional. No entanto, para quem aprecia narrativas ousadas e atmosferas densas, o filme oferece uma experiência hipnótica e inquietante.

A trama avança com uma sensação de inevitabilidade sombria. Forças invisíveis parecem manipular os personagens, levando-os a atos de extrema violência, muitas vezes praticados pelos que aparentam ser os mais inofensivos. Somente no penúltimo capítulo surge um novo personagem que lança uma luz reveladora sobre os eventos, reformulando completamente o entendimento do espectador até então.


O tom do filme, ao mesmo tempo grotesco e tragicômico, evoca ecos do cinema de David Lynch, com sua justaposição de elementos surreais, domésticos e perturbadores. Essa combinação se intensifica em seu trecho final, onde a comédia ácida coexiste com cenas de violência explosiva e visceral, em um clímax construído com habilidade. 

O elenco, comprometido e afinado com o tom singular da produção, sustenta com solidez uma história que poderia facilmente resvalar para o absurdo. Julia Garner, em especial, imprime humanidade e tensão à sua personagem, funcionando como a âncora emocional de uma narrativa cada vez mais fragmentada e alucinante.

Independentemente de como se receba o desfecho, que mistura ironia sombria com um senso de fatalismo cínico, é inegável que A Hora do Mal atinge um feito notável. A narrativa transforma um conto aparentemente simples em uma distorcida história de ninar, onde a inocência é corrompida e os monstros podem muito bem estar dentro de nós.

Assista ao trailer: A Hora do Mal


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 4 de junho de 2025

Bailarina: exército de uma mulher só

Aventura spin-off derivada do universo criado nos filmes da série John Wick, Bailarina (Ballerina, 2025) surge como a contraparte feminina ao assassino de aluguel interpretado por Keanu Reeves. Este é um filme de origem que opera dentro de um contexto narrativo previamente estabelecido, com suas próprias regras e hierarquias.

Com direção de Len Wiseman, cineasta experiente em ação convencional (Anjos da Noite), Bailarina nos apresenta o surgimento de Eve Macarro (Ana de Armas), uma assassina treinada desde criança nas tradições da organização Ruska Roma que sai em busca de vingança pela morte do pai. Ambientado no submundo criminoso dos filmes de John Wick, o filme a coloca contra uma rede de poderosas figuras, repetindo a fórmula de violência estilizada da franquia original, mas com um protagonismo feminino como única novidade digna de nota.

Apesar de operar dentro do universo coeso de John Wick, Bailarina falha em justificar sua própria existência. O filme reproduz mecanicamente as regras do mundo estabelecido (a moeda, o Hotel Continental, a hierarquia de assassinos), mas sem a inventividade narrativa ou visual que tornou a franquia original relevante. A trama é convencional e previsível: uma jornada de vingança linear, repleta de cenas de ação competentes, porém genéricas. Embora essas sequências ecoem à distância o estilo de Chad Stahelski (diretor dos filmes de Keanu Reeves, que aqui tem uma breve participação), faltam nelas o ritmo frenético e a elegância do criador das obras matrizes da franquia. O resultado é um produto que parece feito por encomenda, não por paixão.

Len Wiseman entrega cenas tecnicamente aceitáveis, mas que carecem da ousadia coreográfica que nos acostumamos a ver na franquia John Wick. As lutas, embora bem filmadas, são bastante clichês para o gênero. A falta de identidade visual é flagrante – até a fotografia, que imita o neon noir da franquia-mãe, parece uma versão pouco inspirada.

A atriz Ana de Armas é o grande destaque, trazendo algum carisma e presença física ao papel. No entanto, Eve Macarro é uma protagonista em contradição. Sua "ferocidade de exército de uma mulher só" é diluída por um subplot maternal forçado, uma tentativa desajeitada de humanizá-la. O roteiro ainda insiste em simbolismos pesados (o nome "Eve" como uma alusão bíblica à queda e redenção), mas nenhum deles se traduz em profundidade real. O longa ainda traz ainda no elenco Anjelica Huston, Gabriel Byrne, Lance Reddick, Norman Reedus e Ian McShane.

Bailarina poderia ter explorado novas facetas do universo Wick, como a violência sob uma ótica feminina ou as contradições morais desse mundo, mas opta por ser um cover sem originalidade. Até a promessa do "olhar feminino" se resume a trocar um protagonista masculino por uma mulher que age exatamente como um homem no mesmo contexto. O filme não ousa questionar ou expandir a mitologia; contenta-se em ser uma sombra pálida de suas referências.

Entretenimento passageiro para fãs do gênero, Bailarina é um spin-off que cumpre o mínimo: entrega ação, uma protagonista carismática e fidelidade ao universo original. No entanto, falha como obra autônoma, repetindo fórmulas sem reinventá-las. Assista por conta e risco, mas não espere ser surpreendido.

Assista ao trailer: Bailarina


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Chofer de Praça: um retrato do Brasil profundo

 

Lançada em 1958, a comédia CHOFER DE PRAÇA foi o 9º filme da extensa filmografia do humorista, ator e cantor paulista Amácio Mazzaropi. Esta produção marcou sua estreia como produtor e também a primeira aparição de Geny Prado, atriz que se tornaria sua parceira recorrente em quase todas as obras seguintes.

O filme inicia com a tomada de uma casinha modesta, isolada num meio rural típico do interior brasileiro. A câmera se aproxima da porta da casa. Ela abre e vemos um casal saindo. Ambos carregando malas, claramente demonstrando que estão partindo em viagem. O casal sai de cena, mas a câmera permanece mais alguns segundos no mesmo enquadramento. Então, a seguir surge um cachorro, reproduzindo o mesmo movimento de seus donos ou tutores. Ele sai da casa “carregando” uma pequena mala presa aos dentes. Ele também vai viajar. Nada mais é necessário para que a comédia conquiste o público desde o primeiro instante.

O enredo, seguindo o padrão dos filmes de Mazzaropi, é bastante singelo, sem complexidades maiores, mas sim, com uma habitual lição moral no terceiro ato. Chofer de Praça conta a história de um humilde casal que se muda para a capital de São Paulo com a missão de ajudar o filho mais velho a pagar e concluir a “faculidade” de Medicina. Para ganhar a vida, o pai consegue emprego como chofer de praça dirigindo um carro antigo, barulhento e caindo aos pedaços. Isto passa a ser motivo de piadas e humilhações da vizinhança e dos demais colegas de ofício. O filho, ainda que necessite muito do dinheiro, sente muita vergonha do trabalho do pai.

O filme segue por várias sequências e gags de humor que reforçam este contexto, revelando ao longo da narrativa um subtexto crítico que condena o alpinismo social em detrimento de valores morais. Ainda que trabalhe e reforce estereótipos da humildade rural em oposição a arrogância dos habitantes das zonas urbanas, Chofer de Praça aborda com muita simplicidade, comicidade e sensibilidade as questões de classe que estão constantemente presentes na realidade brasileira.

É inegável o timing de comédia de Amácio Mazzaropi. Apesar de sua origem na tradição da comédia circense, mais caracterizada pelo humor de performance física (da qual Os Trapalhões foram herdeiros), Mazzaropi demonstra seu talento no texto, no mais das vezes minimalista, e no perfeito “tempo de comédia”. Uma frase, um gesto, uma palavra, um resmungo monossilábico, tudo isto rende um humor mais eficiente – e atemporal – do que uma torta na cara ou um “pum do palhaço”. Mazzaropi era dotado deste dom e isto fez dele um dos grandes do nosso cinema.

Infelizmente o prestígio do artista foi se diluindo no decorrer dos anos, particularmente por suas últimas produções dos anos 70 e 80, que contaminaram negativamente a avaliação de toda sua obra. Esta rejeição ou mesmo desconhecimento da sua obra é uma realidade para as novas gerações, para as quais Mazzaropi não passa de um artista menor de uma certa subcultura brasileira. A decadência, em alguma medida, é natural na carreira de qualquer artista. Mal comparando, e respeitando as devidas dimensões, vale lembrar que isto ocorreu também com gênios da comédia como Jacques Tati e Charles Chaplin, apenas para citar dois grandes. Os últimos trabalhos destes artistas também já não demonstravam o brilho criativo de outros tempos. Apesar das oscilações em sua carreira, Mazzaropi não apenas assegurou seu lugar na história do cinema brasileiro, mas também construiu um imaginário popular que resiste como testemunho de uma identidade nacional muitas vezes esquecida.


Chofer de Praça, assim como toda a filmografia de Mazzaropi, permanece não apenas como um registro do humor brasileiro de seu tempo, mas também como um espelho das contradições sociais que, décadas depois, ainda se repetem — prova de que sua obra, longe de ser 'menor', é um retrato atemporal de um país em eterna transformação.

Assista ao trailer: Chofer de Praça

Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 27 de maio de 2025

O Esquema Fenício: a gaiola de ouro de Wes Anderson

 

Autor de um cinema geométrico, matemático e sensorial, Wes Anderson consolida-se como um devoto da simetria — mais rigoroso que Stanley Kubrick, outro cineasta obcecado pelo tema. Seus filmes funcionam como livros para colorir vistos por um olhar obsessivo, nos quais a forma sempre suplanta o discurso. Em O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme, 2025) essa assinatura atinge seu ápice onde cada plano é uma equação resolvida com a precisão de um ourives, mas também com a frieza de um teorema matemático.

Ambientado nos anos 1950, o filme acompanha o magnata europeu Zsa-Zsa Korda (Benício Del Toro), que, após sobreviver a múltiplos atentados, nomeia sua filha — uma freira — como herdeira de seu império. Juntos, embarcam numa jornada repleta de espionagem internacional, traições e dilemas morais entre família e poder. O enredo, no entanto, é mero pretexto para Anderson explorar seu verdadeiro interesse: a arquitetura da narrativa.

O roteiro trata o inesperado como um jogo de RPG de derivações infinitas e Anderson deleita-se em explorar cada possibilidade narrativa. A construção labiríntica exige atenção redobrada, mesclando complexidade estrutural e uma estética deliberadamente delicada — um equilíbrio que revela seu fascínio pela fragmentação e pelo controle minucioso. É o caos traduzido em precisão visual com cenários exuberantes, ação desenfreada e situações absurdas que coexistem sob uma mesma lente simétrica.

Comparado a Asteroid City, seu filme anterior, aqui Anderson introduz o humor de maneira orgânica (ainda que contida), sem recorrer a grandes efeitos cômicos. Essa leveza descontraída, marca de seus melhores trabalhos — como O Grande Hotel Budapeste, outro filme de espionagem e aventura com humor ácido —, serve de contraponto ao formalismo estético, quase como uma homenagem ao tom das aventuras de Tintim, de Hergé. Referências temáticas e visuais à obra do quadrinista ecoam nos planos meticulosamente diagramados e na aura de 'missão impossível' europeia.

Caro leitor, até aqui nos detivemos apenas na parte positiva da história, destacando seus méritos e aspectos criativos, amplamente reconhecidos. O lado menos solar dessa narrativa, porém, é a recorrente repetição de uma fórmula que, com pouca margem de erro, parece estar à beira do esgotamento. Wes Anderson vive um paradoxo em sua obra. O mesmo conjunto de elementos que o consagrou como um cineasta de estilo inconfundível agora o aproxima perigosamente de se tornar um pastiche de si mesmo. O diretor, afinal, está enclausurado em sua própria gaiola de ouro. Seu excesso de simetria e paletas de cores impecáveis, antes veículos de narrativas melancólicas ou satíricas, agora parecem servir apenas à autocitação. Em outros tempos sinônimo de inovação, sua assinatura visual corre o risco de se tornar mera decoração vazia.

Assistir O Esquema Fenício é realmente uma experiência, ainda que não inteiramente prazerosa. De início nos deleitamos com o deslumbramento estético de cores, formas, composições e arte visual. Em determinado momento, na metade do filme, passamos a ficar incomodados pela falta de rumo e propósito de uma história que se perde em digressões vazias sem avançar em um arco narrativo convincente que de fato nos seduza. Por fim, em seu terceiro ato, torcemos para que os minutos voem e o filme, enfim, chegue a um desfecho. Qualquer desfecho, desde que ponha fim à experiência.

Cada novo filme de Wes Anderson parece confirmar uma verdade curiosa: atuar em suas obras é certamente mais divertido que assisti-las. Essa ironia explica os elencos estelares que o cineasta consegue reunir. Em O Esquema Fenício a lista é tão prestigiosa quanto dispersa. Além do já citado protagonista Benicio Del Toro ainda temos em cena, em participações secundárias, mínimas ou secretas, nomes como Michael Cera, William Defoe, Tom Hanks, F. Murray Abraham, Bryan Cranston, Riz Ahmed, Benedict Cumberbatch, Bill Murray, Scarlett Johansson, Jeffrey Wright, Mathieu Amalric e Charlotte Gainsbourg.

É um espetáculo de nomes grandiosos a serviço de um filme que, no final, se revela mais um exercício de estilo do que uma narrativa satisfatória. Diante disso, talvez o verdadeiro divertimento para o espectador esteja em adotar o próprio espírito lúdico do realizador: transformar a experiência numa caça ao tesouro, explorando cada quadro em busca dessas estrelas perdidas no labirinto visual. Wes Anderson permanece um mestre incontestável no seu ofício, mas seu universo meticulosamente construído necessita urgentemente de mais alma e menos esquemas.

Assista ao trailer: O Esquema Fenício

Jorge Ghiorzi

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sábado, 24 de maio de 2025

Manas: a irmandade como resistência

 

Longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand, Manas é um filme que mergulha na complexidade da infância roubada e da resistência feminina em um cenário ao mesmo tempo belo e brutal: a Amazônia brasileira. A narrativa acompanha Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem prestes a entrar na adolescência, criada em um ambiente marcado pelo abuso e pela opressão de um pai violento. Seu desejo de escapar desse ciclo de dor a leva a uma jornada de descobertas, onde a solidariedade entre mulheres – sua mãe submissa, uma irmã que fugiu e outras figuras de sua comunidade – se torna sua única âncora de esperança.

Brennand constrói um filme que evita o apelo fácil, optando por uma abordagem mais sugestiva do que explícita. O abuso nunca é mostrado de forma gráfica, mas sua presença é palpável em cada olhar assustado, em cada silêncio tenso, na arquitetura precária da casa sobre palafitas que parece aprisionar suas personagens. A diretora captura a ambiguidade das relações familiares: a mãe que falha em proteger; a irmã mais velha que escapou das amarras de um destino inevitável, e por fim, a própria Marcielle, cuja inocência aos poucos se transforma em uma consciência dolorosa de que a fuga talvez seja sua única salvação.

A performance de Jamilli Correa é o coração do filme. Com uma expressividade rara para sua idade, a atriz transmite a mistura de vulnerabilidade e resiliência de Marcielle, tornando sua jornada profundamente comovente. A câmera a observa de perto, quase como uma cúmplice, reforçando a intimidade da narrativa. A fotografia, por sua vez, contrasta a beleza crua da Amazônia – o rio lamacento, a vegetação densa – com a asfixia do ambiente doméstico, criando uma metáfora visual para a contradição entre liberdade e aprisionamento.

O título Manas (termo coloquial para "irmãs") não é casual. O filme é, acima de tudo, sobre os laços entre mulheres em um mundo dominado por violência masculina / parental. Cada personagem feminina representa uma resposta diferente à opressão: a submissão, a fuga, a rebeldia ou a sororidade discreta. Brennand não oferece respostas fáceis. A mãe, por exemplo, não é vilã nem heroína, mas vítima de um sistema que a esmaga. A força do filme está justamente em sua nuance, evitando maniqueísmos para mostrar como o abuso é perpetuado e, ao mesmo tempo, como pode (e deve) ser desafiado.

Manas é uma estreia promissora para Brennand, confirmando seu talento para retratar dramas sociais com sensibilidade e primoroso senso estético. A escolha de narrar uma história tão dura através dos olhos de uma criança adiciona uma camada de poesia à crueza do tema, enquanto a direção de arte e a fotografia elevam o filme a um patamar quase onírico. Por opção narrativa da realizadora o filme evita um olhar sensacionalista e manipulador. A ausência de confrontos mais diretos ou de um clímax definido pode, à primeira vista, sugerir que o filme recua – mas é justamente aí que reside sua força. Manas é rigoroso em sua narrativa minimalista, apoiada em silêncios que dilaceram e olhares que suplicam. Sua profundidade está justamente em sua capacidade de apresentar os conflitos com uma simplicidade acachapante.

O filme de Marianna Brennand é uma obra importante, especialmente no contexto do cinema brasileiro contemporâneo, que muitas vezes negligencia histórias do interior sob perspectivas femininas. Premiado no Festival de Veneza, Manas chama atenção não só pela qualidade técnica, mas por sua urgência temática. Não é um filme fácil, por doer no fundo da alma, mas é certamente um daqueles que permanecem na memória e na consciência.

Assista ao trailer: Manas


Jorge Ghiorzi

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