quarta-feira, 19 de julho de 2023

Oppenheimer: um exercício de imersão sensorial e estética

 

Uma certa tendência à grandeza e grandiloquência, marca registrada na quase totalidade da obra de Christopher Nolan, está ostensivamente presente nas três horas de duração do drama histórico Oppenheimer (Oppenheimer, 2023). A cinebiografia do físico J. Robert Oppenheimer, que passou à História como “pai da bomba atômica”, transita do universo quântico das partículas subatômicas até a vastidão do globo terrestre e além. Uma viagem que coloca o espírito humano à prova em sua eterna busca pela dominação das forças que regem a natureza. O que Albert Einstein teorizou, Oppenheimer colocou em prática, inaugurando uma nova Era para a humanidade.

Anos 40. Segunda Guerra Mundial. Os alemães nazistas avançam nas pesquisas para desenvolver uma arma nuclear. Caso fossem vitoriosos neste experimento bélico a Alemanha se tornaria incontestavelmente invencível, e a conquista global seria um fato inevitável. Este é o cenário que dá o ponto de partida do filme de Nolan. Os Estados Unidos, inicialmente neutros no conflito, após o ataque japonês à Pearl Harbor, foram induzidos a abandonar a isenção e mergulhar de cabeça na guerra que colocava em risco a liberdade na Europa, particularmente do aliado Reino Unido.


A risco da criação pelos alemães de uma bomba a partir da fissão nuclear acelerou a pesquisa científica dos norte-americanos. Assim surgiu o secretíssimo Projeto Manhattan, liderado pelo Oficial do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, Leslie Groves (Matt Damon), e o físico teórico J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy). Os cientistas e físicos mais destacados dos EUA foram convocados para se dedicarem em tempo integral ao desenvolvimento daquela que seria a primeira bomba atômica do mundo. Para tanto ficaram isolados por três anos em uma cidade-laboratório especialmente construída em Los Álamos, no meio do deserto do Novo México. O final desta história sabemos todos: a bomba atômica foi desenvolvida, mas não a tempo de ser utilizada contra a Alemanha nazista, que assinou rendição antes, diante das Forças Aliadas que invadiram Berlim. Mas, a Segunda Guerra prosseguia no front asiático, especialmente com o Japão, que se recusava a depor armas. Após um bem sucedido teste no deserto (uma sequência primorosa), poucos dias depois as duas primeiras bombas atômicas foram lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945.

Uma das críticas contumazes atribuídas aos filmes de Christopher Nolan é que eles despendem muito esforço narrativo ao tentar explicar em demasia determinadas situações e/ou aspectos técnicos com diálogos por demais expositivos. Há em Oppenheimer uma reversão de expectativa neste sentido. Por mais que as questões da física quântica e nuclear sejam estranhas aos leigos – portanto, exigissem uma abordagem mais didática -, o fato é que desta vez o realizador mostra-se mais comedido. É inclusive econômico nas explicações científicas. Mantem-se na exposição dos conceitos básicos, suficientes para a compreensão essencial do espectador, que acaba conectando-se ao drama pelo o que ele tem de conflito moral, e não pelo o que oferece em termos de ciência. Esta decisão favorece nossa empatia com a batalha pessoal e os dramas de consciência do protagonista.


Oppenheimer opera em quatro abordagens distintas que se alternam ao longo das já citadas três horas de duração. Há em cena, simultaneamente, com pesos relativamente equilibrados e linhas temporais próprias (como em Dunkirk), uma empolgante narrativa de experimento científico, uma ágil trama de espionagem industrial, um emocionante drama político e um comovente drama pessoal com toques de tragédia. Embalando tudo, com muita criatividade estética, qualidade técnica e sensibilidade artística, uma irretocável percepção de espetáculo de entretenimento que Christopher Nolan já demonstrou em muitas oportunidades.


Isento de posicionamento moral, Oppenheimer, o filme, reflete em essência a incógnita que é Oppenheimer, o homem. O renomado físico era uma figura dúbia, controversa, com viés de vaidade mal disfarçada. Oppenheimer é um sedutor exercício de imersão sensorial e estética, que apresenta um belíssimo painel de um período histórico conturbado, cujas consequências abriram as portas para a Guerra Fria, que perdurou por cerca de quatro décadas.

Uma curiosidade: o Projeto Manhattan já havia sido tema de um filme em 1989, chamado O Início do Fim (Fat Man and Little Boy), dirigido por Roland Joffé (de Os Gritos do Silêncio e A Missão). O papel do Oficial militar Leslie Groves, vivido por Matt Damon no filme de Nolan, foi interpretado por Paul Newman no filme de Joffé.

Assista ao trailer: Oppenheimer

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 12 de julho de 2023

Missão: Impossível – Acerto de Contas – Parte Um: o auge da franquia

 

Depois de salvar as salas de cinema atraindo multidões no momento crítico de retomada da atividade na pós-pandemia, com o mega êxito Top Gun: Maverick em 2022, Tom Cruise assumiu para si uma nova missão: revitalizar os filmes de ação, sufocados pela avassaladora invasão dos universos dos super-heróis e pelo impasse criativo do gênero que se perdia em fórmulas vencidas. Então, missão dada é missão cumprida. Cruise injetou doses maciças de adrenalina na franquia Missão: Impossível, especialmente a partir dos três últimos episódios. O 7º capítulo acaba de chegar aos cinemas. Além de colocar a série em seu ápice, transforma a saga de Ethan Hunt e sua IMF (ainda longe de encerrar) em um marco do cinema de entretenimento contemporâneo, que se supera a cada novo capítulo. Algo que a franquia Indiana Jones teve todas as oportunidades para ser, mas se perdeu pelo caminho. Mas isso é outra conversa.

Missão: Impossível – Acerto de Contas – Parte Um (Mission: Impossible – Dead Reckoning Part One) é o terceiro trabalho de direção de Christopher McQuarrie na franquia (os anteriores foram Nação Secreta, em 2015, e Efeito Fallout, em 2018). Seguindo o padrão da série, a equipe do IMF, formada por Ethan (Tom Cruise), Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), Benji Dunn (Simon Pegg) e Luther Stickell (Ving Rhames), é mais uma vez convocada para entrar em cena para impedir que uma aterrorizante arma tecnológica caia em mãos erradas, o que representaria uma ameaça de âmbito global com risco para toda a humanidade. Na corrida frenética e perigosa da equipe ao redor do mundo Ethan ainda é confrontado com um inimigo misterioso e mortal, um velho conhecido do passado, com o qual tem um acerto de contar a fazer.


A trama de MI7 lida com ameaças e perigos da Inteligência Artificial, ou seja, o excesso do uso da tecnologia que está imbricada em todos os momentos e situação do nosso dia a dia cada vez mais conectado. O subtexto do filme de Christopher McQuarrie (também roteirista) traz uma crítica a este uso e submissão excessiva à tecnologia que nos controla. É possível que neste posicionamento o filme reflita um pouco do posicionamento pessoal de Tom Cruise, um crítico contumaz do streaming, por exemplo. Neste contexto, não deixa de ser emblemático que o grande MacGuffin da narrativa é uma prosaica e analógica chave, um objeto suficientemente simbólico e representativo por si só, que contrasta com a tecnologia de ponta apresentada no universo do filme.

Como qualquer MacGuffin que se preze, a tal chave troca de mão em mão, entre os vilões e mocinhos da trama. O que nos leva a uma vertiginosa viagem proposta por MI7. Do deserto do Marrocos às ruas e vielas de Roma e Veneza, de um movimentado aeroporto em Abu Dhabi às planícies geladas da Áustria. Em cada uma das etapas temos uma unidade de ação praticamente independente, como se McQuarrie propusesse pequenos minifilmes, como fossem fases de um grande videogame em evolução.


Ao longo dos sete filmes da série MI a personagem de Tom Cruise foi evoluindo e agregando novas camadas e nuances em sua personalidade. De um espião quase ingênuo, no primeiro filme dirigido por Brian De Palma em 1996, até se transformar no destemido e voluntarioso agente dos filmes mais recentes, Ethan Hunt, no entanto, preserva seus maiores valores, a lealdade com seus companheiros e sua eterna suspeita com as reais intenções dos dirigentes políticos e forças que dizem lutar pela liberdade. Diferente do realista, trágico e rancoroso agente James Bond da fase Daniel Craig, por exemplo, o Ethan Hunt de Tom Cruise segue por um caminho mais dinâmico e visceral, o tipo de herói com o qual a plateia se identifica e pelo qual torce e vibra a cada sequência. Neste aspecto, MI7 não deixa dúvida.


Para os cinéfilos há pelo menos duas referências cinematográficas saborosas e saudosistas que não podem passar em branco. Uma delas é um tributo à célebre e icônica sequência do salto de moto de Steve McQueen em Fugindo do Inferno (1963). A outra é uma homenagem ao primeiro filme da série Missão: Impossível, com uma sequência vertiginosa de um trem em alta velocidade por um túnel.


Missão: Impossível – Acerto de Contas – Parte Um é um filme de ação superlativo. Uma aventura empolgante que faz o tempo voar, sem exaustão, por suas quase 3 horas de duração. E pensar que apenas acabamos de assistir metade da história, inconclusa nesta primeira parte. A sequência e o desfecho só veremos, a princípio, em 2024. Então, que o tempo voe até lá.

Assista ao trailer: Missão: Impossível – Acerto de Contas – Parte Um


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 14 de junho de 2023

The Flash: universos em choque

 


O status de maturidade dos heróis dos quadrinhos só é alcançado quando o personagem ganha um filme solo para chamar de seu. Então, mais um integrante da DC vem se juntar a este seleto grupo. Flash, o Velocista Escarlate, foi premiado com uma aventura onde é protagonista, ainda que acompanhado por um time de coadjuvantes de peso, como Batman, por exemplo.

The Flash, dirigido pelo argentino Andy Muschietti (realizador de It – A Coisa), desde a produção gerou muita atenção dos fãs. Inicialmente pelas informações vindas dos sets, que criavam uma crescente expectativa positiva com a produção, e depois, com as informações negativas do comportamento errático do protagonista, Ezra Miller. O receio era que o filme sofresse algum tipo de cancelamento por parte dos fãs. Para sorte da Warner e DC, o movimento não se confirmou.

A base do roteiro veio da célebre HQ Ponto de Ignição (no original, Flashpoint) que essencialmente trata de um embaralhamento das linhas temporais que geram realidades alternativas, provocada imprudentemente pelo Flash. Tudo começa quando Barry Allen (Ezra Miller) descobre por acaso que poderia utilizar sua supervelocidade para viajar pelo tempo e retornar ao passado. Agindo contra os conselhos de Batman, seu parceiro na Liga, que alertou dos riscos e da impossibilidade física da alteração do passado, Flash decide voltar no tempo para evitar o assassinato da própria mãe e provar que seu pai, acusado pelo crime, é inocente. Ao fazer isso, perturba a ordem natural, mistura as linhas temporais e fica preso em uma realidade alternativa, onde o General Zod (Michael Shannon) planeja atacar e dominar o planeta Terra. Neste multiverso Flash contará com a ajuda de outras versões de si próprio e de heróis da Liga.


O tema dos universos alternativos e múltiplos tem sido um tema muito presente no cinema atual, desde as aventuras recentes do Homem-Aranha e Doutor Fantástico, até o multipremiado e oscarizado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. O conceito da viagem do tempo e da alteração do passado já está bastante estabelecido na cultura popular, desde a Trilogia De Volta Para o Futuro (há quase 40 anos), que, a propósito, é bastante citada neste The Flash, em uma das grandes sacadas cômicas do filme.

Dolorosas perdas familiares estão na raiz da trajetória de vários heróis das HQs. Batman, Homem-Aranha e Superman são exemplos clássicos deste tipo de sina transformadora do espírito. Flash é outro personagem amargurado por este tipo de perda. É pela dor que vem o amadurecimento que marca a transição da juventude para a vida adulta. Em The Flash este aspecto está fortemente presente, inclusive como elemento catalizador da ação e das boas intenções, que nem sempre resultam nos benefícios desejados. Há sempre um aprendizado, uma lição. O alegre, brincalhão e desencanado Barry Allen encara, com muita dor, este rito de passagem que define sua trajetória.


A presença de Andy Muschietti na direção garantiu a inserção de várias referências latinas no filme. A começar pela descendência latina do herói protagonista, cuja mãe é interpretada pela espanhola Maribel Verdú (de E Sua Mãe Também e O Labirinto do Fauno). Ainda no elenco há a presença da atriz Sacha Calle, de ascendência colombiana, no papel de Supergirl. Isto sem falar nas canções mexicanas e panamenhas na trilha sonora.

O grande destaque de The Flash, no entanto, que faz a delícia dos cinéfilos, é a possibilidade de apresentar diferentes versões de personagens conhecidos e realizar o sonho de materializar alguns desejos secretos dos fãs. Um exemplo (sem spoiler): as várias versões do Superman, inclusive uma delas, muito curiosa, nunca concretizada. Num universo paralelo tudo é possível. Então, vale a brincadeira. Mas, inegavelmente a presença que mais chama atenção tem um forte componente nostálgico: Michael Keaton (o Batman de 1989) volta a vestir o uniforme do Cavaleiro das Trevas (“surpresa” que já havia sido entregue pelo trailer).


A expectativa elevada pelo primeiro protagonismo solo de Flash no cinema se mostrou um tanto exagerada. Não entrega a promessa na totalidade. The Flash, na maior parte do tempo, se mostra uma aventura que beira ao genérico. O que, em se tratando de filmes de super-herói já é algo razoável, diga-se, dado o fato de que o gênero já está em franco processo de esgotamento da fórmula e exaustão do público.


The Flash é divertido quando não se leva a sério, ainda que nem todas piadas funcionem bem. No entanto, o filme de Andy Muschietti é um importante e sólido passo no pretendido reboot do Universo DC. Após o The Batman, vem este The Flash, e fica aparentemente estabelecido que o artigo The (em inglês) deverá acompanhar os novos títulos futuros.

Assista ao trailer: The Flash


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Mafia Mamma – De Repente Criminosa: poderosa chefona


A presença feminina, usualmente relegada ao segundo plano, quando muito, em produções que tem o universo mafioso como tema, ganha protagonismo absoluto na comédia Mafia Mamma – De Repente Criminosa (Mafia Mamma), estrelada por Toni Collette, sob direção de Catherine Hardwicke (de Aos Treze, Crepúsculo e A Garota da Capa Vermelha).

Kristin (Collette) é uma típica dona de casa, mãe e esposa de uma família suburbana nos Estados Unidos. Certo dia um telefonema vira sua vida pelo avesso. Descobre que seu avô faleceu na Itália e recebe uma convocação, quase intimação, para comparecer ao funeral e tratar de assuntos familiares. Lá descobre que herdou um império da máfia que está em conflito com uma famiglia adversária e ela, a inocente dona de casa, foi escolhida para ser a nova chefona da família, a capo di tutti capi.

Personagens inocentes lançados em situações inesperadas é um tema clássico e recorrente no cinema, especialmente em comédias. De imediato podemos lembrar do maravilhoso Muito Além do Jardim, onde o simplório jardineiro interpretado por Peter Sellers chega até aos altos escalões da Casa Branca como conselheiro, por conta de uma sucessão de mal entendidos, felizes coincidências, instinto de sobrevivência e muita sorte.


Uma referência permanente que pontua Mafia Mamma é o clássico dos clássicos, O Poderoso Chefão de Francis Coppola. Seja por citações literais e metalinguísticas ao nome do filme (que a Kristin de Toni Collete afirma nunca ter assistido), seja por referências estéticas como a presença de laranjas (que sempre prenunciam a morte nos filmes de Coppola) ou pela reprodução da cena da porta fechando no momento que o novo Don (no caso, Donna) recebe a reverência do beija-mão de seus fiéis seguidores. Uma outra ponte possível entre Mafia Mamma e O Poderoso Chefão, é um espelhamento entre Kristin e Michael Corleone. Ambos os mais improváveis herdeiros de um império mafioso, no entanto, por um golpe do destino foram os escolhidos para liderar os rumos da famiglia em um momento crítico. No mais, param aí as referências. Os filmes percorrem caminhos completamente opostos: onde um é tragédia e dor, o outro é comédia e diversão.


A trajetória da dona de casa, com um casamento infeliz, que parte para “novas aventuras” está muito bem representada pelo arco da personagem Kristin, a poderosa chefona. Ao romper com seu passado acomodado e submisso ela descobre um novo propósito na vida. Na trama, de forte viés feminino, os homens ocupam uma de duas possibilidades: ou são babacas ou são tóxicos. Quando não sendo os dois ao mesmo tempo.

A mensagem das mulheres no poder, no comando, vem embalada em uma comédia muito bem construída e, acima de tudo, divertida. O saldo final é solidamente positivo graças ao talento indiscutível de Toni Collette, uma das atrizes mais versáteis e competentes da sua geração. Ela consegue brilhar em qualquer gênero: drama, comédia ou horror. Contribui muito para o alto astral de Mafia Mamma o elenco de coadjuvantes, todos ótimos e admiráveis. O único ponto levemente dissonante, curiosamente, é o outro grande nome da produção, a italiana Monica Bellucci. Sua personagem tem pouco a acrescentar a trama (apesar da expectativa que se constrói), é dispensável, nunca diz a que veio e parece ter sido interpretada no piloto automático.


A própria Toni Collette é uma das produtoras de Mafia Mamma – De Repente Criminosa, e, tendo em vista o bom resultado, não seria nenhuma surpresa se estivermos diante do nascimento de uma nova franquia de filmes estrelados pela poderosa chefona. Sim, Collette poderá ter uma série para chamar de sua.

Assista ao trailer: Mafia Mamma – De Repente Criminosa


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 19 de abril de 2023

A Morte do Demônio – A Ascensão: banho de sangue

 


Quando Sam Raimi surgiu para o mundo com a trilogia Morte do Demônio / Evil Dead, era um criativo cineasta em início de carreira, sem compromissos com a grande indústria, que ainda podia ousar e experimentar, sem fórmulas pré-estabelecidas. Na medida em que conquistava um lugar ao sol em Hollywood, Sam Raimi foi pouco a pouco perdendo o vigor, se acomodando ao modelo industrial. Perdeu parcialmente a autonomia e a marca autoral, na razão inversa do crescimento da conta bancária. Aquela explosão de criatividade do primeiro filme da série, no Brasil batizado como Uma Noite Alucinante (nada mais anos 80 do que este título), foi se perdendo pouco a pouco. 

A inusitada mistura de terror, humor pastelão (do nível de Os Três Patetas) e generosas doses de nonsense, que marcaram fortemente os três filmes originais, jamais se repetiram. Nem na retomada da franquia A Morte do Demônio, de 2013, dirigida pelo uruguaio Fede Alvarez, muito menos com este legítimo gore de 2023, A Morte do Demônio: A Ascensão (Evil Dead Rise), escrito e realizado por Lee Cronin (de The Hole in the Ground), com produção executiva dos criadores originais, Sam Raimi e Bruce Campbell (ator protagonista dos três primeiros filmes). Sai de cena o humor, restando apenas o terror, o livro dos mortos, muito sangue, a motosserra e a marca Evil Dead / A Morte do Demônio.



A mudança é também de cenário. A ação deixa para trás uma isolada cabana nos bosques do Tennessee e se transfere para um pequeno apartamento familiar em um prédio residencial em Los Angeles. A família em questão é formada por uma mãe, recém separada do marido, e seus três filhos (dois adolescentes e uma jovem garota). Certo dia a irmã da mãe chega para visitar a família, mas a tranquilidade daquele encontro familiar é interrompida quando encontram um tal livro sobrenatural que despertam forças malignas adormecidas. 

A Morte do Demônio: A Ascensão é objetivo e direto em sua proposta de submeter a plateia a um banho de sangue sem trégua. É papo reto, sem meias palavras. Após um rápido prólogo e também uma rápida apresentação dos personagens centrais da família, somos submetidos a cerca de 90 minutos ininterruptos, sem descanso, de muito sangue, cenas de horror gráfico e vísceras em profusão. Com direito ainda a uma sequência no elevador que faz uma homenagem explícita à O Iluminado de Stanley Kubrick.


Além desta manifesta intenção de privilegiar em primeiro lugar o horror no espectador, o filme de Lee Cronin apresenta ainda um subtexto de caráter feminista. Não apenas por apresentar a clássica personagem da “final girl”, a personagem feminina que salva o dia (no caso, a noite). O foco em questão aqui é a maternidade. A mãe que protege a cria acima de tudo, sob qualquer ameaça. A personagem da tia que visita a família está grávida (aqui não há nenhum spoiler, este fato já é apresentado na abertura). O instinto materno, ainda prematuro, se manifesta bravamente quando o Mal ronda aquele apartamento. Aqui uma outra referência parece inspirar o roteiro: a tenente Ripley de Aliens – O Resgate.


A Morte do Demônio: A Ascensão no geral entrega exatamente o que promete: sustos e pavor em dose cavalares. Certamente estamos diante de uma produção que pouco ou nada lembra o espírito anarquista dos títulos anteriores da série. Ao apontar claramente novos caminhos para expansão da mitologia do Livro dos Mortos, que ainda deverá ter muitas reencarnações pela frente, Sam Raimi fecha as portas do passado e mira novos desafios para manter viva uma ideia promissora que surgiu no início dos anos 80.

Assista ao trailer: A Morte do Demônio: A Ascensão


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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Os Três Mosqueteiros - D’Artagnan: tudo pelo reino



O romance histórico do francês Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros (1844), é uma das histórias clássicas mais adaptadas pelo cinema, a ponto de estabelecer um gênero cinematográfico em si, o “capa-e-espada”. Desde os filmes mudos, passando por desenhos animados, comédias e musicais, as aventuras de Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan já ganharam muitas versões, interpretações e releituras. Às vésperas de completar 280 anos o clássico de Alexandre Dumas ganha mais uma versão, que chega às telas como uma das adaptações mais fiéis da obra original, produzida na França, com cenários franceses, elenco francês e diretor francês. Ou seja, uma autêntica produção com “lugar de fala”, legitimada pela origem de todos os envolvidos.

Dirigido por Martin Bourboulon (da comédia Relacionamento à Francesa e do drama biográfico Eiffel) Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan (Les trois mousquetaires: D’Artagnan), na verdade é a primeira parte de um programa duplo. A segunda parte, Os Três Mosqueteiros: Milady, será lançada no final do ano.


Herói improvável, D’Artagnan (François Civil) assume o protagonismo involuntário da história ao se apresentar como o homem certo, na hora certa. Recém chegado à Paris, vindo da Gasconha (sul da França) com a ambição de integrar o pequeno exército de mosqueteiros, servidores leais do rei Luis XIII (Louis Garrel), o jovem e impetuoso D’Artagnan se vê de imediato mergulhado no meio de ardiloso plano para derrubar o reino. Aquele era um período de intensa disputa política que opõe duas nações, França e Inglaterra, e duas religiões, Católicos e Protestantes. A trama tem como vilã a sedutora Milady de Winter, interpretada por Eva Green, que parece talhada para papéis desta natureza, e ganhará ainda mais destaque no segundo filme da série.

O maquiavélico Cardeal de Richelieu, em conluio com Milady, articula um complô para desacreditar a rainha, revelando um caso de adultério que abalaria o reino. Mas, os Mosqueteiros entram em ação cena, salvam a pele da rainha e garantem a unidade do abalado reino do rei Luis XIII. A trama ganha contornos de suspense e emoção, que a aproximam de uma investigação policial que sustenta as duas horas desta primeira parte da narrativa.


As dinâmicas sequências de ação e lutas são, no mais das vezes, empolgantes e vigorosas. Duelos de espada aparecem em filmes desde os primórdios do cinema, mas, é fato, pouco evoluíram em termos de coreografia e encenação ao longo dos últimos 100 anos. Neste aspecto há que se considerar que neste Os Três Mosqueteiros há algo de novo que merece ser destacado. Não exatamente na coreografia, mas na forma de gravar as lutas, quase sempre captadas com câmera baixa em leve contra-plongée (de baixo para cima) e, o que faz toda diferença para transmitir uma sensação de imersão e realismo (!), são mostradas em engenhosos planos-sequência (olha aí John Wick fazendo escola).


Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan tem o mérito de fazer a releitura de um clássico, respeitando sua origem, sem, no entanto, abrir mão de uma narrativa que busca o ritmo de uma boa aventura que faça sentido às plateias atuais. Ponto negativo: o filme certamente sofrerá um efeito de frustração pela falta de desfecho, como Kill Bill, por exemplo, por ser dividido em duas partes lançadas com vários meses de intervalo. Porém, com uma agravante, fruto do nosso tempo. O ritmo ágil e descartável com que o audiovisual é consumido nos dias que correm, a primeira parte deste Os Três Mosqueteiros poderá parecer velha e antiga demais (talvez até mesmo esquecida) quando a segunda parte chegar aos cinemas no final do ano.

Assista ao trailer: Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Air - A História Por Trás do Logo: parceria de sucesso

 


O primeiro encontro de Michael Jordan com o cinema ocorreu há 27 anos. O colega de cena do maior jogador de basquete de todos os tempos foi ninguém menos do que Pernalonga, na animação Space Jam: O Jogo do Século. Dois anos depois Jordan fez uma pequena participação em Jogada Decisiva, de Spike Lee, que se passa no mundo do basquetebol. Hoje aposentado das quadras, empresário bilionário, o atleta volta às telas. O retorno não é em pessoa, mas como personagem real retratado em um drama que recria, com toques de ficção, um dos momentos mais emblemáticos do início da sua carreira: a vitoriosa parceria com a Nike.

Air – A História Por Trás do Logo (Air), dirigido por Ben Affleck, revela a incrível história dos bastidores que antecederam a parceria revolucionária entre um então novato Michael Jordan e a também novata e incipiente divisão de basquete da Nike. Naquele tempo, início dos anos 80, a famosa marca de artigos esportivos era apenas uma postulante ao podium dos líderes do setor. A Adidas e a Converse dominavam o mercado A grande sacada da Nike, consolidada em 1984, foi apostar em um jovem talento do basquete e jogar todas as fichas em uma arriscada jogada única. O resto é história. A parceria de Michael Jordan com a Nike revolucionou o mundo dos esportes e da cultura contemporânea com o lançamento da marca de tênis Air Jordan.


Quem apostou na ideia, e a perseguiu como um sonho intuitivo, foi um vendedor, Sonny Vaccaro (Matt Damon), responsável pela divisão de Basquete da Nike, empresa que era conhecida apenas pelos praticantes de corrida. Primeiramente precisou convencer internamente que sua visão estava correta, em especial persuadir o dono da empresa, Phil Knight (Ben Affleck). Depois, convencer a família de Michael Jordan do projeto inovador da Nike. O atleta estava inclinado a fechar contrato com a Adidas, mas então entra em cena a mãe de Jordan (Viola Davis), que sempre soube o imenso valor do talento de seu filho dentro e fora das quadras.

A empreitada do funcionário da Nike para obter a todo custo a atenção de Jordan e sua família passa por uma série de obstáculos (apresentados de maneira simplista) e o roteiro doura um tanto a pílula, abusando de personagens bem intencionados. Sabemos, claro, que não é exatamente assim que ocorre no ambiente corporativo dos tubarões predadores dos grandes negócios.


Air – A História Por Trás do Logo faz um justo e merecido tributo a um dos maiores atletas da história, mas traz um ranço típico de filmes biográficos “chapa branca”, que não ousam, optando por mostrar seus personagens apenas com virtudes, sem nuances. Consta que o próprio Michael Jordan participou, ainda que informalmente, na concepção da história que vemos nas telas. Certamente isto explica o clima de “filme de sessão da tarde”, sem grandes conflitos, o que resulta em uma obra meramente didática e burocrática. Jordan não aparece em cena, mas o filme retrata uma parte importante da sua vida. No elenco o destaque fica mesmo com Matt Damon e Viola Davis, ambos nada mais do que corretos, operando em modo piloto automático.

Como cineasta Ben Affleck se mostra como um realizador absolutamente convencional, sem nenhum traço autoral identificável que o tire da condição de aplicado operário padrão de Hollywood. Ainda que, vale lembrar, Argo tenha recebido o Oscar de Melhor Filme, em 2013, e Affleck premiado pela direção no Globo de Ouro e BAFTA.


Air – A História Por Trás do Logo é o mais longo comercial da Nike que você já viu, apresentado com toda pompa e circunstância como um primoroso case de marketing com lições que farão a alegria de mentores de carreira, coachs motivacionais e gestores corporativos.

Assista ao trailer: Air - A História Por Trás do Logo


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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