quarta-feira, 17 de abril de 2024

Guerra Civil: retratos do front


Cercada de polêmica e expectativa, a estreia de Guerra Civil (Civil War) marcou o recorde de bilheteria da produtora A24, responsável por outros grandes êxitos como A Bruxa, Moonlight, Midsommar e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. O filme, dirigido por Alex Garland (de Ex-Machina e Aniquilação), se passa em um período indefinido e distópico de um futuro próximo – ou alternativo - dos Estados Unidos, que se encontra em meio a uma espécie de versão revisionista da Guerra de Secessão, esta sim real, ocorrida há pouco mais de um século e meio. O conflito bélico interno, entre estados da Federação, coloca americanos lutando contra americanos.  

No centro desta guerra estão os quatro protagonistas, todos profissionais de imprensa que fazem a cobertura do conflito: Lee Smith (Kirsten Dunst), uma famosa fotógrafa de guerra, Joel (Wagner Moura), um jornalista, Sammy (Stephen Henderson), um jornalista veterano e Jessie (Cailee Spaeny), uma fotógrafa novata. O grupo parte para o foco dos combates, encarando uma perigosa viagem rumo à Washington D.C. na busca de uma entrevista exclusiva com o presidente norte-americano que se refugia na Casa Branca. No trajeto descobre a América profunda, destroçada por bombas e destruição.  



O cinema já registrou em vários filmes as experiências de jornalistas no front de guerra, correndo riscos em busca da verdade dos fatos e da melhor fotografia, aquela que pode transformar corações e mentes. Dois bons exemplos: O Ano em que Vivemos em Perigo (1982), que recria os conflitos durante a queda do governo da Indonésia, com Mel Gibson vivendo um repórter australiano, e Os Gritos do Silêncio (1984), que se passa na Guerra do Camboja, com Sam Waterston interpretando o jornalista norte-americano Sydney Schanberg, que ganhou o prêmio Pulitzer pela cobertura da tomada de Phnom Penh. Curiosamente ambos filmes foram premiados com o Oscar de Coadjuvante: Linda Hunt (interpretando um papel masculino) e Haing S. Ngor.  

O jornalismo e o fotojornalismo são a matéria prima de Guerra Civil. Particularmente o jornalismo da velha escola, que crê, como um sacerdócio, no poder da palavra e da imagem sem manipulação. Neste aspecto o filme de Alex Garland presta tributo a um tipo de jornalismo que parece estar com os dias contados. No mundo altamente digitalizado que vivemos soa um tanto anacrônico que justamente a personagem mais jovem da história utilize filmes antigos em uma máquina fotográfica analógica e encontre prazer no processo químico tradicional de revelação dos negativos. Uma pequena analogia com o próprio cinema que migrou do analógico para o digital com alguma dor para os saudosistas.  



O núcleo dos personagens centrais de Guerra Civil se constitui como uma unidade dramática que reproduz a questão do etarismo, muito presente na sociedade contemporânea. Naquele grupo convivem três gerações que se complementam: o veterano em fim de carreira, os profissionais em plena atividade, no auge do reconhecimento e a novata inspirada pelos ídolos idealizados. Na interação entre eles, como pano de fundo, se apresenta o tema do legado, da preservação dos valores e da ética da profissão. Enquanto o mundo no entorno sucumbe, há ainda razões humanitárias pelas quais se deva lutar, mesmo que reste apenas um fio de esperança e crença no ser humano. O jornalismo raiz não morreu.  

Guerra Civil se constitui no formato de jornada, e o fato que confirma esta configuração é a concepção do roteiro, construído como um road movie. Os elementos todos do filme de estrada estão lá: o deslocamento – físico e figurado -, o foco em personagens, a narrativa fragmentada e episódica, uma unidade dramática confinada e a transformação da perspectiva dos protagonistas.  



Antes de ser apenas um filme de guerra – como o título induz - o trabalho de Alex Garland se apresenta antes como uma reflexão sobre a guerra em seu sentido mais amplo, conceitual mesmo. O conflito retratado não é real, não reproduz fatos verídicos. É integralmente ficcional, portanto, não se atém a aspectos históricos de qualquer natureza que possam, de alguma forma, aprisionar seu desenvolvimento. A narrativa é centrada essencialmente nos aspectos sociais, políticos e existenciais, mas, sobretudo, nas sequelas físicas e emocionais que afetam o elemento humano, a vítima primeira de todas as guerras.  

Guerra Civil transita livremente entre o épico e o intimista. Ora com o olhar documental que registra graficamente, com requintes de detalhes, a violência absurda no campo de batalha (com um trabalho de sonoplastia e edição de som de altíssima qualidade), ora com um olhar mais sensível ao examinar os efeitos deletérios no quarteto de personagens centrais, sem abrir mão de momentos da mais pura fruição estética e existencial.  



Uma sequência em particular se destaca na construção do drama pessoal dos protagonistas. O impactante confronto entre o soldado miliciano – interpretado por Jesse Plemons – e o grupo de jornalistas acuado sob a mira de um rifle automático apontado em riste. Todos estão no alvo, todos em risco, sob uma aparente normalidade. Mas algo de tenebroso se revela abaixo da superfície de um diálogo com alto grau de tensão: a xenofobia ostensiva. Há uma dolorosa ironia quando o soldado questiona: Que tipo de americano você é? O personagem interpretado por Wagner Moura é o interlocutor do diálogo. O contexto fora de quadro fala mais alto, pois é um ator brasileiro – portanto, não-nativo – que reside e atua nos Estados Unidos, com carga de sotaque estrangeiro na fala. A sequência toda é extraordinária pelo nível de tensão envolvida, muito bem editada e exemplarmente interpretada. Não foi à toa que o próprio Wagner Moura declarou que caiu em prantos após filmar a sequência, que durou dois dias no set.  


Críticas se direcionam ao realizar Alex Garland por ele não ter sido claro e explícito em seu posicionamento político. Ele se defendeu afirmando que um posicionamento abertamente panfletário não contribuiria para o enfoque de neutralidade que conscientemente buscou. Garland optou deixar que os fatos narrados falassem por si. O fato, no entanto, é que este posicionamento, ainda que intencional, fragilizou o resultado, que ficou um tanto aquém do potencial político que poderia alcançar.  

Guerra Civil é um ensaio estético e moral sobre a natureza das guerras. O conflito que retrata é fictício, mas o desconforto que provoca é real. Poderoso e espetacular, o filme de Alex Garland é, a um só tempo, minimalista e grandioso.  

Assista ao trailer: Guerra Civil


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O Jogo da Morte: terror viral


Por volta de 2010 surgiu, aparentemente pela primeira vez na Rússia, um desafio no formato de jogo virtual, chamado Baleia Azul, que rapidamente se popularizou entre os adolescentes. O propósito do “jogo” para os participantes era cumprir diversas etapas de desafios, todos relacionados a atos de automutilação e jogos de tarefas com atividades arriscadas e perigosas, com proezas que colocavam a vida dos jovens em risco. Muitos morreram por desafios que deram errado, ou induções ao suicídio. Um tema pesado, que circulou ou eventualmente ainda circula, pelos ambientes mais baixos e sórdidos da internet. 

Rapidamente o desafio da Baleia Azul foi aproveitado para a produção de filmes que pretenderam reproduzir este ambiente de horror. O primeiro longa de larga circulação sobre o jogo foi uma produção egípcia, lançada ainda em 2010. Agora, em 2024, chegou a vez de uma produção russa (terra natal do jogo) tratar do tema. O filme em questão apropriadamente se chama O Jogo da Morte. Na primeira impressão, parece apenas um título genérico para um filme de terror. Mas, levando-se em conta o assunto do qual trata, o título O Jogo da Morte está mais do que apropriado. 

No longa, dirigido pela cineasta russa Anna Zaytsevaa irmã da protagonista Dana comete suicídio ao se jogar na frente de um trem. Em busca de respostas que explicassem a tragédia, Dana decide vasculhar o computador da irmã e descobre que ela estava envolvida em uma espécie de brincadeira na qual era chantageada e obrigada a tomar atitudes drásticas, como se mutilar física e psicologicamente, entre outras tarefas. A partir dessa descoberta Dana entra também no jogo para descobrir a identidade do responsável chantagista que provoca as mortes dos participantes e impedir que ele faça novas vítimas. 


Para início de conversa, para não deixar nenhuma dúvida: O Jogo da Morte é simplesmente um filme exploitation construído sobre uma base verídica. Passa longe de qualquer desejo de se apresentar como uma produção que pretenda ser um alerta aos pais ou sequer faça críticas ao jogo. Ainda que, nos créditos finais, venha um recadinho sobre os riscos da brincadeira perigosa. Isto posto, vamos ao filme. 

O efeito voyeurístico proporcionado pela exposição de conversas privadas na internet funciona bem no primeiro ato do longa. Então passa a ser um tanto redundante aborrecido pela recorrência. Até tornar-se absolutamente repetitivo e falsamente verossímil no terceiro ato. Ao abusar e apostar todas as fichas em uma narrativa 100% focada no ambiente virtual, apresentando uma sucessão interminável de chats, conversas de texto e bate-papos on line, O Jogo da Morte força a mão para construir um suspense que nunca convence na jornada investigativa da protagonista pelo submundo da deep web


O objetivo de simular – estética e formalmente – o que viria a ser conversas reais de internet, o que justificaria a onipresente existência de uma câmera ligada registrando tudo, lá pelas tantas perde a mão. Algumas sequências e situações do filme são absolutamente improváveis de terem sido gravadas por câmeras de celular, pela simples razão de não haver razão objetiva (real) justificável para terem sido registradas. Então, lá se vai a suspensão de descrença da plateia e o filme naufraga sem salvação. 

Por fim, o que resta de O Jogo da Morte é a certeza de estarmos diante de um thriller de suspense e terror que busca apenas e tão somente o sensacionalismo barato. Não que o longa pretenda passar a ideia de estarmos diante de um registro verídico de caso do jogo da Baleia Azul. Ainda assim, para efeito meramente comparativo, podemos definir O Jogo da Morte como uma “versão” rasa do que poderia ser uma encenação pasteurizada de um “snuff film”, versão 2.0. Então fica a dica: ao escolher um filme chamado O Jogo da Morte para assistir, escolha o original, homônimo, estrelado por Bruce Lee, em 1978. 

Assista ao trailer: O Jogo da Morte


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Argylle – O Superespião: da ficção para a realidade

 

A escritora de romances de espionagem, Elly Conway (Bryce Dallas Howard), conta, em uma série de livros de sucesso, as aventuras do agente secreto Argylle (Henry Cavill) em perigosas missões contra um sindicato global de espionagem chamado “Divisão”. As tramas criadas pela imaginativa autora começam a atrair a atenção de agências reais de espionagem, pois refletem e antecipam com muita precisão ações verídicas. Então, seu mundo vira de pernas pro ar quando a linha entre o real e a ficção começa a ficar bem confusa e sua vida passa a correr risco. 

A premissa não é original. Já vimos, com resultados distintos, algo semelhante em filmes como O Magnífico (1973) com Jean-Paul Belmondo, Tudo Por Uma Esmeralda (1984) com Kathleen Turner e o recente Cidade Perdida (2022) com Sandra Bullock. Usualmente, e em Argylle – O Superespião (Argylle) não é diferente, a figura da escritora é sempre uma personagem reclusa, fragilizada e emocionalmente carente que vira o jogo usando como chave as próprias aventuras que cria como ficção. Uma espécie de terapia radical que coloca à prova todos seus medos e receios diante da vida.


Quando os dois mundos se entrelaçam, o universo do livro invade o mundo real e pessoas do mundo real ganham versões ficcionalizadas. O vai-e-vem do enredo enreda a plateia e convida para uma movimentada aventura que opera em dois níveis. Aliás, recomenda-se a atenção do espectador, sob pena de perder o fio da meada lá pelas tantas. Quem diria, hein? A “Dama na Água” em pessoa, Bryce Dallas Howard, depois das correrias sem fim da franquia Jurassic World, pagando de heroína de filme de ação e espionagem. Entre caras, bocas e gritos, a verdade é que Bryce está muito bem e convence no papel. E, como bônus, garante lugar no pódio das scream queens (rainhas do grito) da atualidade.


Seu parceiro de aventura, o agente Aidan, é interpretado com muita graça por Sam Rockwell. Pois está aí um ator que merece melhor sorte no atual panorama das produções de Hollywood. Apesar de já ter ganho o Oscar de Ator coadjuvante por Três Anúncios para um Crime (2017), ele ainda não ganhou um papel de grande visibilidade como protagonista. Além da presença de Bryan Cranston, Catherine O’Hara e o onipresente Samuel L. Jackson, completam o elenco de Argylle duas participações luxuosas: a cantora Dua Lipa, em sua estreia como atriz, com um papel coadjuvante bem bacana, e Henry Cavill, exercendo o “modo on” de canastrice (no que se sai muito bem, a propósito). 

A direção é assinada por Matthew Vaughn, líder criativo por trás de duas franquias: Kingsman e, sim, Argylle (alguém dúvida que estamos diante de uma nova franquia?) Será que lá adiante estes dois universos – Kingsman e Argylle - haverão de se encontrar? Quem viver verá.


Como comédia de ação, Argylle – O Superespião é criativo, imaginativo e um delícia de assistir. Ainda que peque pela excessiva duração. Faria um bem danado para o ritmo se fosse mais enxuto. Um destaque de encher os olhos é a sequência do tiroteio slow motion em meio às nuvens de fumaça colorida. Um delírio policromático de fazer inveja às sequências alucinantes e exageradas dos filmes de ação de Bollywood.

Assista ao trailer: Argylle – O Superespião


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Folhas de Outono: um encontro de solidões

 

O amor, como manifestação romântica exacerbada, é uma construção histórica e social. Assim como a literatura romântica, surgida no século XVIII, que valorizava as emoções e o sentimentalismo exagerado, o cinema, desde os primórdios, se apropriou desta narrativa idealizada. Gerações e gerações de espectadores foram expostas e moldadas em massa nas salas de exibição por este modelo padronizado disseminado pelos filmes. Particularmente por Hollywood, desde o período mudo.

Ainda que em síntese seja fruto deste modelo, Folhas de Outono (Kuolleet lehfet / Fallen leaves) desde os primeiros minutos quebra expectativas quando subverte as regras de uma história romântica tradicional ao lapidar quaisquer resquícios de sentimentalismo excessivo que não façam sentido ao efeito minimalista pretendido pelo realizador finlandês Aki Kaurismaki. Folhas de Outono é poético no título, mas não se engane, é duro, sem concessões fáceis, mesmo que se proponha a ser uma comédia.


Dois solitários da classe trabalhadora. Ela, Ansa, estoquista de supermercado. Ele, Holappa, operário da construção civil. Duas engrenagens de uma máquina capitalista que impessoaliza e massacra sonhos. Dois seres invisíveis da grande Helsinki. Um encontro acidental em um bar de karaokê muda o destino de ambos. Nasce uma atração, que se transforma em paixão, até se estabelecer como necessidade. Um relacionamento improvável, mas indispensável. Um ato de sobrevivência que cura a solidão existencial.


O filme de Kaurismaki não paga tributo ao cinema clássico romântico. É mais ambicioso neste ponto. Paga tributo ao cinema como um todo. A relação de Ansa e Holappa é mediada pela sétima arte em diversos momentos. No primeiro encontro o programa escolhido é uma sessão de cinema. No escurinho da sala, no silêncio da sessão, suas sensibilidades encontram a conexão desejada. A fachada do prédio, repleto de cartazes de filmes, faz cenário para uma “história de cinema” da vida real. E o final, ah o final. O tributo definitivo ao gênio da comédia cinematográfica: Charlie Chaplin. Uma joia de sensibilidade em estado bruto.


O amor um tanto melancólico do casal é tratado com delicadeza, afeto e ternura. Com poucas palavras e muito sentimento. Há frescor e verdade em uma história de encontros e desencontros, que teima em apresentar obstáculos à plena realização passional de Ansa e Holappa. O destino parece conspirar contra a relação do casal, mas as dificuldades momentâneas são apenas um mero detalhe. A felicidade está logo ali, na próxima esquina. Basta seguir o caminho.

Assista ao trailer: Folhas de Outono


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Mergulho Noturno: poder maligno das águas

 


Jogador profissional de beisebol, Ray (Wyatt Russell), prestes a se aposentar, por conta de uma lesão, muda-se com a esposa e filhos para uma nova casa com piscina no quintal. Local perfeito fazer suas sessões de fisioterapia com exercícios na água. Aos poucos percebe uma melhora significativa em seu estado físico. Será que a água da piscina tem algo a ver com isso? Que segredos sombrios se escondem nas profundezas daquela piscina?

O terror Mergulho Noturno (Night swim), dirigido por Bryce McGuire, se constrói a partir do medo ancestral da água, fonte de benesses para o ser humano na mesma medida oposta em que, eventualmente, é causador de tragédias climáticas. O medo provém não do que enxergarmos sobre sua superfície, mas do que poderia haver de oculto em águas profundas.


Desde Poltergeist (1982) e Dama da Água (2006) uma piscina não provocava arrepios nas plateias. Caso a pretensão de Mergulho Noturno tenha sido incutir nas pessoas o medo de mergulhar em uma piscina à noite, falhou miseravelmente. Guardadas as devidas (imensas) proporções que os distinguem, talvez a tentativa tenha sido repetir o efeito Tubarão que instaurou o pavor em algumas gerações com banhos em mar aberto. Medo, aliás, que perdura até hoje, quase meio século depois do lançamento. Mas em Mergulho Noturno o medo é rápido, indolor, descartável e nem um pouco memorável.

Misto de terror e suspense, o longa foi inspirado em um curta-metragem de quatro minutos realizado em 2014 pelo mesmo realizador Bryce McGuire em parceria com Rod Blackhurst (que no longa assina apenas como coroteirista). Portanto, estamos diante de uma trama estendida, que preserva o conceito original da existência de uma “piscina assassina”, mas agrega sem muita convicção uma mitologia maligna que tenta minimamente dar sentido a um enredo que se sustenta precariamente.


Mergulho Noturno, uma produção da Blumhouse, repete o enredo da casa assombrada e da família sob ataque de forças malignas. Já vimos este filme dezenas de vezes, com resultados imensamente superiores. O elenco fraco carece de carisma, fato que contribui decisivamente para a completa ausência de empatia com os espectadores. Pouco nos importamos com os destinos dos personagens com os quais não nos identificamos e pelos quais não torcemos em momento algum.

A trama de Mergulho Noturno segue passo a passo o formulismo dos filmes de terror mais recentes. A evolução dos recursos de computação digital resolveu muitos problemas práticos das produções. Virtualmente qualquer solução estética e visual é possível. Essa é a parte boa do processo. A face negativa é a acomodação criativa dos realizadores que costumeiramente tornam-se explícitos demais deixando pouco espaço para a imaginação dos espectadores completarem as lacunas. Tudo é entregue pronto e mastigado. A dificuldade impõe soluções criativas e artísticas, em oposição, recursos ilimitados conduzem a um impasse criativo. Este sim é o verdadeiro “Mal” dos filmes de terror das últimas duas décadas.


Ainda que Mergulho Noturno não peque exatamente por esta questão de uso massivo de recursos de computação digital (é até modesto nesta questão), ele é raso por sua concepção como um todo, particularmente por não cumprir a contento uma premissa interessante. No gênero terror e assemelhados, raramente há um sopro de novidade. E Mergulho Noturno certamente não é um destes momentos. O filme, que prometeu mergulhar fundo na experiência do terror doméstico, ficou na verdade boiando no rasinho da piscina.

Assista ao trailer: Mergulho Noturno 

 

Jorge Ghiorzi

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domingo, 14 de janeiro de 2024

Priscilla e Leonard: do rei ao maestro

 


O final da temporada cinematográfica de 2023 e o início da temporada 2024 foi marcado pelo lançamento de duas cinebiografias de figuras ilustres da música norte-americana. O maestro e compositor Leonard Bernstein, autor das composições do musical West Side Story (adaptada para o cinema com o título de Amor Sublime Amor, no Brasil), e Priscilla Presley, ex-esposa de Elvis, chegaram aos cinemas em longas-metragens onde o único ponto comum é o universo da música. Pois as abordagens e resultados não poderiam ser mais distintos.

Maestro se apresenta como um filme de flagrantes pretensões autorais, um verdadeiro tour de force de Bradley Cooper, aqui fazendo dupla jornada como ator e diretor, em sua segunda obra como realizador. Já Priscilla, que traz na direção a assinatura de Sofia Coppola, mostra episódios do atribulado relacionamento de Priscilla e Elvis Presley, desde o primeiro encontro até o rompimento.

Há, por definição, uma sensível diferença entre os dois filmes. Maestro se apresenta menos como uma cinebiografia e mais como um perfil distanciado e interpretativo do artista, onde o papel de sua esposa ganha um genuíno papel de protagonismo (interpretado magnificamente por Carey Mulligan). Por sua vez, o filme de Sofia Coppola tem uma proposta mais, digamos, convencional, pois desenvolve a trajetória da protagonista de forma mais efetivamente biográfica, quase episódica, mas sempre com um olhar comprometido, afetuoso e compreensivo, revelador da identificação feminina e feminista.

Curiosamente, as duas obras, oriundas do universo da música, prescindem absolutamente da música para narrar suas histórias. As composições clássicas de Leonard Bernstein e os rocks irresistíveis de Elvis Presley são praticamente sonegados ao público, pois não passam de coadjuvantes com pouco tempo de tela. Em poucas e pontuais sequências marcam presença, mas longe, muito longe, de saciar a expectativa da audiência. O que, convenhamos, dado o tamanho dos artistas, é uma frustração inicial. Faz falta? Faz. Compromete a experiência? Absolutamente não.


Após a bem sucedida versão século 21 de Nasce Uma Estrela (2018) o ator Bradley Cooper encontrou sua nova persona cinematográfica e se impôs uma tarefa difícil: achar um lugar ao sol como realizador de prestígio. Maestro é sua aposta para conquistar este lugar. Que virada de mesa. Da comédia Se Beber, Não Case! Bradley chega, com Maestro, ao drama (dilema?) de “se casar, não beba”. Tudo em seu filme gira em torno do seu casamento, da paixão arrebatadora com a amiga / amante / esposa Felicia até o ato final da história do casal. Por tratar-se de um melodrama, com toques biográficos, Maestro é, em essência, um filme sobre sua mulher, e não do artista como criador. É desta perspectiva que vem a força do protagonismo de Felicia como contraponto e eventualmente musa inspiradora de Leonard Bernstein.


Neste aspecto há que se louvar o desprendimento de Bradley Cooper que generosamente abre espaço para sua parceira de elenco brilhar. Ainda que, nos momentos onde o foco narrativo é exclusivamente o artista, a interpretação do ator exija para si muitos holofotes (metafóricos e literais). O resultado, no mais das vezes, é um desempenho elogiável, mesmo que aqui e ali demonstre um que de overacting e histrionismo. Um exemplo: a longa sequência do concerto na catedral, com Bradley reproduzindo com excelência os gestos exagerados e eloquentes de Bernstein com a batuta à frente da orquestra. O melhor momento do ator/diretor representando o maestro é justamente este. Pura entrega, sem falas, apenas expressão corporal.


O casamento também é o centro das atenções de Priscilla. Um casamento imperfeito que iniciou de maneira um tanto bizarra quando Elvis prestava serviço militar em uma base norte-americana na Alemanha. A bizarrice não está no cenário, mas na pouca idade de Priscilla quando começaram a namorar (sem sexo, segundo Elvis). Priscilla tinha 14 anos e Elvis 24. Algo impensável para um artista de sucesso nos dias de hoje. Além da pouca idade, Priscilla enfrentou ainda outro desafio. Naquela época (final dos anos 50) Elvis era o ídolo da música mais desejado pelas mulheres, de todas as idades. Então, a solução foi “escondê-la” dos olhos do público, segundo orientação do empresário Coronel Tom Parker que comandava a carreira de Elvis com mão de ferro. Priscilla ficou oculta da vida pública do rei do rock nos primeiros anos de relacionamento, vivendo na mansão de Graceland em Memphis (Tennessee) como uma princesa aprisionada numa gaiola dourada.


Esta ocultação da mulher de Elvis da vida pública é o objeto de interesse de Sofia Coppola, que adaptou a autobiografia de Priscilla Presley, lançada em 1985. Seu filme mostra o dilema de uma jovem inexperiente que aceita abrir mão de sua individualidade em nome do amor por Elvis. O arco narrativo de Priscilla percorre a jornada da protagonista, da perda da inocência até a tomada de consciência e o amadurecimento. De quebra mostra um lado B de Elvis raramente exposto: um homem inseguro, infantil e autoritário (com a esposa). Ou seja, o casamento de Elvis e Priscilla estava longe de ser um conto de fadas.


Já quanto ao filme, Priscilla está bem distante de ser um trabalho memorável na filmografia de Sofia Coppola. O filme se ressente de sua estrutura absolutamente acadêmica e episódica (conforme já citado) que enfraquece a força narrativa do longa ao buscar o realismo. Nos identificamos com o contexto histórico, compactuamos com a tragédia pessoal de Priscilla, mas falta paixão. Desta vez a escolha de Sofia deixou a desejar.

Assista ao trailer: Maestro e Priscilla


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

 

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O Judoka: em busca do filme perdido

Os 50 anos da pioneira adaptação de quadrinhos brasileira 

Neste ano de 2023 completaram-se 50 anos do lançamento do filme O Judoka, longa-metragem brasileiro que adaptou o personagem das histórias em quadrinhos para o cinema. O personagem Judoka, lançado em uma publicação mensal da EBAL (Editora Brasil-América) em 1969, foi apresentado à época como o “primeiro herói genuinamente brasileiro”. Aquele período foi marcado pela chegada às bancas de revista brasileiras dos super-heróis da Marvel, como Homem-de-Ferro, Thor, Hulk, Namor e Capitão América. Este último parece ter sido uma forte referência para o uniforme utilizado pelo Judoka. Assim como o Capitão América utiliza as cores da bandeira norte-americana, o nosso herói nacional utiliza o verde e amarelo em sua vestimenta (lembrando que as cores só eram percebidas nas capas coloridas, pois as páginas do miolo eram impressas em preto e branco).

Capa da edição nº 1 da revista em quadrinhos (1969) e o cartaz do filme (1973) 

Lançado em 1973, o filme O Judoka, dirigido por Marcelo Ramos Motta, possui inegável valor histórico para a produção cinematográfica brasileira, seja pelo ineditismo e ousadia da proposta, seja pelo mito que se criou em torno do longa-metragem. Naquele período inicial dos anos 70 as adaptações de histórias em quadrinhos eram desconsideradas pela indústria. O primeiro movimento realmente efetivo, com a força dos grandes estúdios de Hollywood, foi a adaptação de Superman, dirigida por Richard Donner, em 1978. O êxito da produção despertou o interesse e alavancou uma série de outras produções baseadas nas HQs, até chegarmos ao domínio absoluto dos blockbusters da Marvel e DC que tomou conta das salas de cinema na virada do século e perdura até hoje.

Portanto, dentro deste cenário, O Judoka, produzido cinco anos antes de Superman, foi precursor e visionário, ainda que involuntário e aleatório, devido à falta de continuidade e ao absoluto fracasso de bilheteria da produção. O filme ficou em cartaz apenas uma semana no Rio de Janeiro, onde foi produzido, As poucas cópias existentes (consta que eram apenas 7 ou 8) foram posteriormente exibidas, por alguns dias, nas maiores capitais do país: São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador. Após este breve período de exibição o filme saiu completamente de circulação, entrou no limbo e sumiu sem deixar vestígio. A ponto de muita gente duvidar que o filme um dia realmente existiu, que tudo havia sido um delírio coletivo, particularmente dos fãs da revista.


Uma lenda se formou em torno da produção, mas efetivamente o filme existiu. Algumas pessoas diretamente envolvidas ainda estão por aí para confirmar. O Judoka foi estrelado por Pedro Aguinaga, que à época detinha o título de “homem mais bonito do Brasil”, após vencer concurso promovido pelo programa de Flávio Cavalcanti. Figura bastante conhecida no jet set carioca, Pedrinho Aguinaga (como era chamado) chegou a atuar posteriormente com alguma regularidade no cinema brasileiro, em filmes como Os Trapalhões na Guerra dos Planetas e algumas produções de Neville D’Almeida: Rio Babilônia, Matou a Família e foi ao Cinema e Navalha na Carne.

O par romântico de Aguinaga em O Judoka foi interpretado pela atriz Elizângela (recentemente falecida) estrela em ascensão das telenovelas da Globo na época. Quando o filme foi lançado ela estava no elenco da novela Cavalo de Aço. Outro nome de destaque do elenco é Marcus Alvisi (como um dos vilões da história), que posteriormente fez carreira como professor de interpretação e diretor teatral.


Não consta que haja nenhuma cópia pública disponível do filme dirigido por Marcelo Ramos Motta. A versão integral de O Judoka é objeto de busca permanente de pesquisadores do cinema brasileiro. O filme, até o momento inacessível, assumiu a condição de objeto de culto, quase um “santo graal” para os cinéfilos em geral e fãs do personagem em particular.

A realização do longa-metragem foi a primeira e única experiência de direção de Marcelo Ramos Motta, uma figura um tanto misteriosa e enigmática do cinema nacional. Sua vida certamente daria um filme, como se diz usualmente para personagens que nos fascinam. O pouco que se sabe da trajetória de Marcelo se parece por demais com a biografia de um personagem de ficção. Não existem mais do que meia dúzia de fotos com o registro da imagem do realizador. Curiosamente, uma delas é justamente um lobby card de divulgação de O Judoka, onde ele aparece orientando Pedrinho Aguinaga na coreografia de uma luta.

No set de filmagem Marcelo Ramos Motta (no centro) passa instruções para Pedro Aguinaga

Nascido no Rio de Janeiro, na adolescência Marcelo falava fluentemente o inglês, sem sotaque, algo um tanto raro nos anos 50. Posteriormente morou por vários anos nos Estados Unidos. Por lá escreveu alguns contos, todos no gênero da ficção científica, e chegou ainda a desenvolver dois roteiros para o programa General Motors Theatre, uma série dramática de antologia da televisão canadense (ambos também de ficção científica). A obra em inglês de Marcelo Ramos Motta (contos e roteiros) foram publicadas em livro por uma pequena editora norte-americana.



Ao retornar ao Brasil, no início dos anos 60, Marcelo investiu na área que realmente era seu maior interesse: o ocultismo e o esoterismo. Publicou livros e artigos sobre o tema e filiou-se a grupos como a A.M.O.R.C. (Antiga e Mística Ordem Rosacruz) e a FRA (Fraternitas Rosicruciana Antiqua). Marcelo também propagava e divulgava as ideias do ocultista britânico Aleister Crowley. No círculo de amizades de Marcelo no Rio de Janeiro estavam dois futuros personagens de sucesso da música e da literatura brasileira: Raul Seixas e Paulo Coelho. Ambos foram inseridos no universo do esoterismo por influência de Marcelo Ramos Motta, que fazia as vezes de mentor de Raul e Paulo. A experiência coletiva do trio foi intensa e deu frutos também como parceria musical. Marcelo foi parceiro de composição em várias canções, inclusive “Tente Outra Vez”, sucesso lançado em 1975.

Especula-se que o propósito de Marcelo Ramos Motta ao realizar O Judoka (um personagem de sucesso naquele momento) era faturar uma boa bilheteria para futuramente utilizar os lucros para seus projetos relacionados à expansão das ordens místicas por todo o Brasil. O cinema propriamente nunca foi o interesse principal de Marcelo, mas um meio para angariar recursos. Porém, o projeto naufragou nas bilheterias. Jamais recuperou o investimento, inclusive deixou dívidas que o amarguraram pelo restante da vida. Marcelo Ramos Motta morreu em 1987, aos 56 anos. Não deixou herdeiros. Por esta razão, seus direitos autorais das canções foram repassados para as filhas de Raul Seixas. Uma informação equivocada que circula é de que Marcelo também teria dirigido A Estranha Hospedaria dos Prazeres (1976) em parceria com José Mojica Marins. Trata-se de um homônimo, que assina apenas como Marcelo Motta.



Como já citado, não existem cópias integrais de O Judoka. O que há, em estado muito precário, são cerca de 25 minutos do filme, preservados pela Cinemateca do MAM (RJ). Recentemente o pesquisador e restaurador Fábio Vellozo localizou uma lata com o trailer original, que foi recuperado e digitalizado. Um documento histórico que merece ser conhecido desta aventura da cinematografia brasileira.

Assista o trailer de O Judokahttps://vimeo.com/775177231


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul

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