quarta-feira, 22 de março de 2023

John Wick 4 – Baba Yaga: insano, empolgante e divertido

 


E pensar que tudo começou por causa de um carro e um cachorro. A saga de John Wick chega ao seu quarto episódio dando sequência ao seu acerto de contas com o passado, ao mesmo tempo em que luta para não ser eliminado pelos vilões que encontra onde quer que ele apareça. Seja nas ruas de Nova Iorque ou nas areias do deserto, seja em Paris, Tóquio ou Berlim. Inimigos é o que não faltam na vida do icônico personagem interpretado por Keanu Reeves já há uma década.

No folclore russo a expressão Baba Yaga é o equivalente ao nosso brasileiríssimo “bicho-papão”. John Wick 4 – Baba Yaga chega ao circuito, mais uma vez com direção de Chad Stahelski, o que já é garantia, no mínimo, de uma unidade narrativa e artística, que ganha desdobramentos e expande o conceito original de maneira consistente a cada novo episódio da franquia.

Com exceção dos primeiros minutos do primeiro episódio da série, quando adotou um tom mais realista (com a devida ressalva do termo!), o fato é que a saga John Wick mergulha cada vez mais fundo, a cada novo filme, em uma espécie de universo paralelo e alegórico. Neste espaço-tempo onde transcorrem as tramas a ordem das coisas e as leis da física são particularmente distintas da realidade na qual nós, simples mortais, vivemos. Que não fiquemos surpresos se em algum episódio futuro da série o agente Nick Fury surgir em cena para convidar John Wick para integrar o time dos Vingadores no MCU.


Muito já se falou sobre o impacto que o primeiro John Wick, lançado em 2014, provocou nos filmes de ação. Em um passe de mágica tudo que se fazia até então no gênero ficou ultrapassado. O truque, se é que podemos falar assim, está na bem sucedida aposta do realizador Chad Stahelski (um ex-dublê) que ousou filmar as cenas de luta como grandes planos-sequência, com poucos cortes e recursos de edição. Algo semelhante aos filmes de Kung Fu dos anos 70 e aos filmes de ação asiáticos dos anos 80/90, que também adotam esta forma de filmar com poucos cortes. Muito diferente, por exemplo, dos filmes de Jason Bourne, celebrizados na primeira década dos anos 2000 justamente pela edição acelerada que fragmentava em excesso as cenas de luta.

A influência do estilo “John Wick” já está presente, por exemplo, nos filmes da franquia James Bond, que sempre foram muito espertos em captar o espírito do seu tempo em busca de renovação para manter a relevância. Neste formato de filmar lutas mais expositivas e menos descritivas, a essência do trabalho artístico deixa de ser uma tarefa do editor e passa a ser mais do coreógrafo. Ou seja, valoriza o elemento humano/orgânico (em desfavor do tecnológico), isto sem falar na maior exigência dos atores envolvidos. Que o diga o próprio Keanu Reeves. Consta que ele participa da quase totalidade das sequências, sem utilização de dublês.


Em John Wick 4 o plot básico segue inalterado: vingança. O nível da caçada pela cabeça de Wick, no entanto, está vários graus acima dos episódios anteriores, algo que beira ao épico, diríamos, sem medo do exagero. Mas o mundo não é perfeito. Ganhamos mais (muito mais) ação, porém a trama é frágil como nunca e se sustenta em um fio de história. Isto parece um lamento? Hum, creio que não. Não há uma reclamação aqui. Apenas uma constatação. O que John Wick 4 nos oferece em troca é o melhor dos mundos em termos de vitalidade, energia, ação ininterrupta e incríveis (e longas) sequências de ação. Keanu Reeves está mais veloz e mais furioso, como nunca o vimos antes, pelo menos até o próximo filme.


A já citada alegoria, sob a qual transcorrem todas as tramas de John Wick, atinge um ápice neste episódio quatro da franquia e reforça o caráter mitológico que se constrói na série. Fomos apresentados ao personagem John Wick quando ele já estava aposentado como assassino profissional. O retorno à ativa espelha, em certa medida, a Odisseia de Ulisses, que depois de anos e anos na guerra deseja apenas voltar para a tranquilidade do lar. Após violar as regras da Alta Cúpula, Wick precisa, no entanto, passar pela penitência, tal qual os Doze Trabalhos de Hércules. Nesta trajetória enfrenta desafios e provas, mas parece um trabalho sem fim, como o Mito de Sísifo que tenta em vão subir a montanha. A fantástica sequência da escadaria é uma excelente analogia desta provação.


John Wick 4 é um produto ousado e arriscado para um mercado cinematográfico que ainda busca recuperação após o período pandêmico, que restringiu o acesso às salas de cinema. Suas quase 3 horas de duração poderiam ser um veneno de bilheteria. Mas, creiam, os 169 minutos passam voando. JW4 é insano, exagerado, empolgante e divertido. Enfim, pacote completo. Que venha o 5.

Assista ao trailer: John Wick 4 – Baba Yaga


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


terça-feira, 21 de março de 2023

Além de Nós: estradas da vida

 


Rodado em catorze cidades de cinco estados - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia - Além de Nós é o longa-metragem de estreia do diretor Rogério Rodrigues para as telas grandes (anteriormente o realizador dirigiu a série Universo Z para canais de streaming). O filme se passa parcialmente no pampa gaúcho, mas sua narrativa se estende para outras regiões e locais do país, como o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e o tradicional Rodeio do Rancho Quarto de Milha em Presidente Prudente, no interior paulista.

Além de Nós conta a história de Léo (Miguel Coelho), um jovem peão de fazenda que nunca saiu de seu pequeno vilarejo no sul do Brasil. Ele sofre duas grandes perdas no mesmo dia: é demitido e testemunha a morte do pai (participação de Clemente Vascaíno). Ao encontrar uma foto e uma carta, Leo se depara com a necessidade de realizar o último desejo de seu pai. Para atender ao pedido, viaja com seu tio Artur (Thiago Lacerda) para a cidade do Rio de Janeiro. No caminho desconhecido, Leo resgata a relação com o tio, de quem discorda totalmente sobre a forma de ser e de viver, tornando esta jornada uma grande aventura de descobertas e transformações.

O filme de Rogério Rodrigues foi exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2022.


Há um pecado original na exposição inicial dos personagens de Além de Nós. Nada que comprometa essencialmente a obra, mas efetivamente retarda nossa identificação com a narrativa. Os protagonistas, Artur e Leo, são apresentados de maneira um tanto apressada e elíptica, com muitas lacunas que devem ser preenchidas (ou intuídas pelo espectador). Artur é o tio sem eira nem beira, aparentemente um gaúcho urbano que não encontra formas razoáveis e satisfatórias de conviver na solidão da vida na fazenda. A bebida é sua grande companheira e aliada. Em síntese, um péssimo exemplo a ser seguido pelo sobrinho Leo, um jovem peão de estância. O episódio da demissão de Leo é o estopim que move a narrativa. Não sabemos a razão objetiva da demissão, não sabemos se houve injustiça ou não. Portanto, a princípio, Leo não conta como nossa empatia. Ao relatar sua demissão para o pai ocorre uma discussão, único momento de interação entre os dois. A relação de Leo com o pai é aparentemente fria e conflitada. Nada que justifique plenamente, portanto, a missão que o jovem toma para si ao cumprir a qualquer custo o desejo final do falecido pai. A motivação parece frágil, ainda que represente uma espécie de acerto de contas decorrente de um sentimento de culpa.


Superado este impasse narrativo do primeiro ato, finalmente vamos embarcar na jornada. Os termos “embarcar” e “jornada”, utilizados aqui, não são gratuitos, pois trata-se sim de uma viagem. Além de Nós é um road movie, e como todos filmes que trabalham neste registro, o movimento exterior é sempre uma metáfora do movimento interior dos personagens. Cenários mudam, estradas se sucedem, experiências se acumulam e valores de transformam. Esta é a fórmula dos “filmes de estrada”. O longa de Rogério Rodrigues não foge desta cartilha.

Na condição de road movie Além de Nós é um filme de personagens em contraste com paisagens, e deste confronto a resultante é a sabedoria, o entendimento do sentido da vida e do lugar que ocupamos no mundo. Esta é a transformação que ocorre com os protagonistas, Artur e Leo. Um tema subjacente, que perpassa a narrativa, é a transformação pela qual passa o campo, em oposição ao avanço da civilização tecnológica. A lida campeira, raiz e tradicional, vem perdendo espaço, como bem comprova o peão Leo ao lamentar que a fazenda onde trabalhava optou pelo reflorestamento, abrindo mão da criação de gado no pasto. A imagem icônica de uma barreira de árvores, que interrompe a cavalgada livre do gaúcho em sua montaria, é um símbolo eloquente que representa em imagens este embate desigual.


A transformação de Leo se manifesta por um movimento inverso e espelhado entre a natureza externa da paisagem e o universo interior do personagem. Contido, quase deprimido, quando em seu habitat natural – o extenso pampa gaúcho com horizonte distante – Leo sai do casulo e assume uma personalidade expansiva e livre quando exposto à opressão do meio urbano e a rudeza do asfalto. A relação com o tio Artur (uma composição interessante de Thiago Lacerda) passa por diversas fases, da rejeição à aceitação, da indiferença à dependência. A jornada aparou as diferenças, estimulou a tolerância e revelou novas perspectivas para olhar o outro. A realização do último desejo do pai passa a ser apenas um pretexto para uma forçosa – e dolorosa – descoberta pessoal.

Além de Nós é uma viagem onde o ponto de chegada está longe de ser o destino final. É apenas o início das diversas estradas da vida que estão à nossa frente.

Assista ao trailer: Além de Nós

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Até os Ossos: amor e sangue

 


Na temporada 2022, onde o canibalismo já surgiu forte na série campeã de audiência sobre o serial killer Jeffrey Dahmer na Netflix, o cinema nos brinda com uma ousada, impactante e surpreendente história de amor que também tem como pano de fundo o canibalismo. Porém, diferente daquele produto do streaming, onde o tema aparece como um ritual escatológico de caráter criminoso, no drama de horror Até os Ossos (Bones and All), de Luca Guadagnino (Suspiria, 2018), o canibalismo recebe um tratamento mais metafórico e metafísico, como uma maldição mesmo, ainda que seja extremamente mais explícito na exibição do ato canibal em si.

Reconheçamos, de antemão, que este não é um tema fácil a ser explorado nas obras audiovisuais. É recorrente que o apelo sensacionalista venha sempre em primeiro lugar. Mas não é o caso aqui, ainda que, fosse apenas por este aspecto, Até os Ossos já mereceria nosso olhar mais atento. Mas o filme de Guadagnino vai muito além e não deixa de surpreender o espectador a todo o momento.


Baseado em livro de Camille DeAngelis, premiado em 2016, a adaptação cinematográfica traz a história de um casal de jovens, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet). Eles se encontram ao acaso em uma viagem pelo interior dos Estados Unidos. Ambos marginalizados, em fuga de seus traumas interiores. Uma particularidade os une em um misto de paixão, cumplicidade e sobrevivência: são canibais. O caráter da viagem – literal e simbólica – é um elemento muito presente nos livros da romancista DeAngelis, além de questões feministas e solidão. O filme de Guadagnino respeita estes conceitos e conduz sua narrativa como uma longa jornada de autoconhecimento, o combustível que conduz Maren e Lee até um destino incerto.

Até os Ossos é um road movie de horror e paixão. O guia onipresente da viagem/fuga é o pai de Maren, que deixa de legado uma extensa mensagem gravada em áudio, que a jovem vai ouvindo ao longo da estrada, como fossem capítulos de uma longa história de revelação de suas origens. Ela, assim como nós, é apresentada à verdadeira realidade da sua condição de “devoradora”, ou seja, consumidora de carne humana. Ainda assim, a história se revela incompleta. Falta a figura da mãe, que torna-se então o objeto de busca.


Nesta Via Crucis espiritual Maren encontra, além do parceiro de jornada, Lee (igualmente em processo de entendimento e aceitação da sua condição), outros personagens enigmáticos, que também compartilham o desejo pela carne humana. Em cada etapa da jornada, a cada parada, a cada cidade, o casal recebe novos aprendizados que dão pistas e informações vitais de sobrevivência para aqueles que vivem à margem da sociedade, amaldiçoados pelo desejo da carne.


Luca Guadagnino propõe uma experiência de realidade paralela ao espectador. Ao nos mergulhar no submundo dos chamados “seres devoradores”, somos imersos em um universo de regras próprias. São raras e pontuais as interações do mundo, digamos, corriqueiro e real. A quase totalidade da narrativa se dá em um registro alternativo. Até os Ossos é um relato de personagens marginais. Uma fábula de horror com devoradores de carne humana por necessidade, pois há uma ética e uma moral a ser respeitada. Neste arco narrativo tanto Maren quanto Lee confrontam seus fantasmas e a irreversibilidade de suas existências. Até os Ossos é um filme que permanece ecoando em nossas mentes após a sessão e já nasce predestinado a ser cultuado.


A escolha de Timothée Chalamet por Luca Guadagnino não deixa de revelar uma certa ironia do destino. Ambos já trabalharam juntos em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), com Armie Hammer, o ator que teve a carreira destruída por acusações de cometer atos de... canibalismo! Outro destaque do elenco é a canadense Taylor Russell, que ganhou grande visibilidade ao participar da nova versão de Perdidos no Espaço (3 temporadas) da Netflix, no papel de Judy Robinson. Sua presença é o grande destaque e o melhor da série. Está aí uma atriz à beira do estrelato no primeiro time.

Assista ao trailer: Até os Ossos


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Força Bruta: vai encarar?

 


Nem só de Parasita vive o cinema sul-coreano. Além de uma produção autoral de prestígio, premiada em todo o mundo, a indústria cinematográfica da nação asiática mostra uma diversidade de produções de entretenimento direcionadas aos mais diferentes públicos. Atual sucesso de público e bilheteria da temporada, este Força Bruta (The Roundup) só confirma a força dos sul-coreanos também no cinema de gênero. No caso específico, a força citada é mais do que uma simples metáfora, mas um fato objetivo, considerando-se o festival de pancadaria que vemos neste violento filme de ação policial.

A grande estrela do atual campeão de bilheteria sul-coreano é o ator Ma Dong-seok, que ganhou visibilidade e projeção mundial com participações na série Sense8 (2015) e filmes como Invasão Zumbi (2016) e Eternos (2021), utilizando o nome artístico americano de Don Lee.


Em Força Bruta ele interpreta o policial Ma Seok-do, integrante da Unidade Policial de Crimes de um dos distritos da capital Seul. Reconhecido pela forma exagerada que utiliza para executar suas missões, Ma resolve tudo na base da “força bruta”, com as próprias mãos. Enviado ao Vietnã para repratriar um criminoso fugitivo que pede asilo na embaixada sul-coreana, Ma fica desconfiado com a atitude do criminoso, que se entrega com facilidade. Fora de sua jurisdição, em país estrangeiro, Ma decide investigar um pouco mais, por conta própria, e acaba por descobrir uma sangrenta e violenta gangue envolvida com sequestros.


Constantemente flertando com a comédia – no entanto, sem nunca chegar lá - Força Bruta é um movimentado filme de investigação policial. As coreográficas sequências de lutas com primazia para as armas brancas (facas, adagas, cutelos), ao contrário aos tradicionais embates com armas de fogo, trazem um diferencial positivo para o espetáculo. Ainda que não estejamos assistindo nada exatamente inovador no gênero, que já não tenhamos visto com excelência maior, por exemplo, na saga John Wick com Keanu Reeves, Don Lee dá conta do recado com eficiência e carisma. A trama, um tanto lugar comum, é apenas pretexto para reapresentar, em grande escala, um personagem que aparentemente terá vida longa nas telas.

Sim, isto mesmo, esta não é a primeira aventura do policial Ma Seok-do, que surgiu em Cidade do Crime (The Outlaws) dirigido por Yoon-Seong Kang em 2017. A partir deste Força Bruta assume a direção o realizador Sang-young Lee, que também será responsável pela sequência The Rountrup: No Way Out, atualmente em filmagem.


Força Bruta é uma versão 2.0, revisada e anabolizada, das fitas de ação e pancadaria que Stallone, Schwarzenegger e congêneres protagonizaram nos anos 80, fazendo a alegria das locadoras de vídeo e das sessões da tarde na TV. Garantia de diversão e entretenimento escapista, sem culpa, se é isto que você procura.

Assista ao trailer: Força Bruta


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Armageddon Time: estranhos em terra estranha


O tema da imigração não é novo na filmografia do cineasta nova-iorquino James Gray. Já esteve presente, de maneira explícita, em Era Uma Vez em Nova York (2013), que mostra duas irmãs polonesas que chegam à América no início do século XX em busca de uma vida melhor. De certa maneira, o tema, em um conceito expandido e metafórico, entendido como um deslocamento do ponto de origem para um destino desconhecido, também está presente em outras obras como Z, A Cidade Perdida (2016) e Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019).

No drama Armageddon Time a saga de imigrantes em solo norte-americano volta a ser inspiração. Porém, desta vez com uma visão bem pessoal do diretor. A história que conta tem inspiração em memórias autobiográficas. Gray é, portanto, testemunha e cronista de um tempo e de um cenário que viveu bem de perto. O filme não é exatamente uma autobiografia convencional, mas evoca sentimentos e experiências pessoais de um momento bem específico dos Estados Unidos. Tudo transcorre no ano de 1980, no período que precede o início da Era Ronald Reagan, que tomaria posse como presidente eleito no ano seguinte. Nascido em 1969, Gray, portanto, teria 11 anos de idade nesta época, aparentemente a mesma do garoto protagonista.


Em Nova Iorque a família Graff, descendente de judeus ucranianos, vive no bairro do Queens a utopia que seduz as correntes migratórias dos primeiros anos do século passado: o sonho americano. As atenções da família – pais e avós - estão voltadas ao sucesso social e profissional dos dois filhos menores. Mas as maiores expectativas estão na verdade direcionadas ao caçula da família, o pré-adolescente Michael (Banks Repeta, um achado). Na escola pública onde estuda, Michael faz amizade com Johnny (Jaylin Webb), um jovem negro, filho de família humilde. Apesar das profundas diferenças de origem, ambos desenvolvem uma forte relação de parceria e compartilham sonhos. Michael deseja seguir a carreira de pintor e artista plástico. Johnny quer ser astronauta. Um revelador episódio dramático, porém, coloca em choque a amizade dos garotos e define o futuro de ambos.

A narrativa de Armageddon Time é conduzida pelo ponto de vista do pequeno Michael. É através do seu olhar – ora inocente, ora questionador - que mergulhamos nos conflitos éticos, morais e raciais que marcam sua jornada de amadurecimento. Família, escola e sociedade são forças conflitantes que agem e modelam a personalidade do garoto. Pai e mãe (Jeremy Strong e Anne Hathaway) representam a tradição; o avô (Anthony Hopkins) é o coração, a sabedoria e a sensibilidade; a escola faz o papel da doutrinação, simultaneamente origem do conhecimento formal e da repressão que oprime. Por fim, o meio social, que separa, segrega, pune e destrói sonhos.

O filme de James Gray é uma fábula moral que explora os valores da amizade e questiona os limites da lealdade. A ética está no centro da discussão, que se estabelece a partir do episódio revelador entre os garotos, que traz à superfície o que se esconde debaixo do tapete. Michael e Johnny, em lados opostos da história, representam o microcosmo de uma conjuntura discriminatória que se reproduz desde a origem das sociedades organizadas ocidentais.


As fugas da escola, as contestações aos professores e os pequenos delitos dos garotos protagonistas trazem ecos de François Truffaut, em Os Incompreendidos. A abordagem do cineasta francês foi poética, suave e, em certo nível, até mesmo condescendente. Em Armageddon Time o furo é mais embaixo. O olhar traz nuances e problematiza com mais ênfase as dificuldades das relações sociais na América, à beira da já citada Era Reagan que marcaria fortemente a década seguinte. Porém, a base sob a qual se sustentam Truffaut e Gray é essencialmente a mesma: o sistema educacional não passa de uma “fábrica de salsichas”. Armageddon Time não traz respostas fáceis, e certamente sequer deseja tê-las. É o retrato de uma época, um “ovo da serpente”.


Um pouco da chave para a compreensão do alcance do trabalho de James Gray pode estar na letra da música do The Clash, chamada justamente “Armageddon Time”, presente na trilha sonora. Diz algo mais ou menos assim: Fique por perto não brinque por perto / Esta cidade velha e todos / Parece que eu tenho de viajar / Muita gente não vai conseguir jantar à noite / Muita gente não vai conseguir Justiça esta noite / A batalha está ficando mais quente / Nessa vibração, tempo de Armagedom.

Armageddon Time, mais uma produção da RT Features, do brasileiro Rodrigo Teixeira, é um pequeno grande filme, comovente e intimista, realizado com paixão e sensibilidade.

Assista ao trailer: Armageddon Time


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A Luz do Demônio: heroína das trevas

 


O ritual do exorcismo, popularizado com o filme de William Friedkin de 1973, é a prática litúrgica milenar da Igreja Católica que se destina a expulsar o demônio - em suas diversas formas - que se apossa do corpo dos seres humanos. A tradição diz que este ritual de orações só pode ser praticado por padres. Portanto, vetado às mulheres. Esta é a premissa que sustenta a trama de A Luz do Demônio (Prey for the Devil, 2022), dirigido pelo alemão Daniel Stamm, cineasta já escolado no tema dos demônios possessivos, pois também realizou no gênero O Último Exorcismo em 2010.

A freira Ann (Jacqueline Byers) trabalha em um hospital católico. Atuando como uma espécie de enfermeira, ela atende pacientes em distúrbio psiquiátrico, suspeitos de possessão demoníaca. Ou seja, pacientes que estão a um passo de se submeterem aos rituais do exorcismo. A abordagem de Ann foge dos padrões usuais da instituição. Ela busca uma conexão mais íntima e pessoal com os pacientes. O hospital, localizado em Boston (EUA), também sedia o que seria a primeira “escola de exorcismo” fora do Vaticano, onde os padres são educados e treinados na prática. Um dos professores, após perceber o dom especial de Ann, apoia sua presença nas aulas, ainda que o acesso aos conhecimentos ritualísticos do exorcismo seja um privilégio apenas aos homens. Então, chega o dia de colocar os conhecimentos à prova. Ann encara de frente um caso de possessão por uma força demoníaca que tem ligações com seu passado.


A quantidade de filmes que tratam de possessões é tamanha que na prática constituem um subgênero em si. Mas, para azar dos fãs do terror, a expectativa de algo minimamente original se esvai a cada novo lançamento. O mais do mesmo tem sido a rotina. E aqui não é muito diferente do padrão usual. Há, no entanto, uma pequena luz no fim do túnel. A questão feminina na trama é uma evidência flagrante e um elemento que traz um olhar além da bolha do terror pelo terror. Sim, A Luz do Demônio é um terror com pauta.

Mas não fique muito empolgado com esta possibilidade. O tema está colocado, porém distante do foco principal. O olhar feminino serve apenas para captar a empatia do espectador para a apresentação da protagonista feminina. O potencial do discurso feminista fica um tanto sufocado pelos clichês em série e situações corriqueiras, bastante previsíveis. Como todo terror convencional, A Luz do Demônio investe apenas nos sustos fáceis.


A jornada da freira Ann equivale à jornada do surgimento de uma heroína. Isto fica muito claro no terceiro ato. Aí está ponto a favor de A Luz do Demônio, que abre boas possibilidades de criação de uma franquia, seja nos cinemas, ou mesmo como futura série nos canais de assinatura.

Assista ao trailer: A Luz do Demônio


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

À Procura de Mr. Goodbar: perdida na noite


A chamada Era Disco gerou pelo menos dois grandes filmes, ambos lançados no mesmo ano de 1977. O primeiro deles é um paradigma do gênero: Os Embalos de Sábado à Noite, de John Badham. O outro é À Procura de Mr. Goodbar (Looking for Mr. Goodbar), dirigido pelo, já à época, veterano Richard Brooks (Sementes da Violência; Gata em Teto de Zinco Quente; Lord Jim e A Sangue Frio). A febre das discotecas, que pregava alegria e liberdade nas pistas de dança, é a face superficial exibida pelos dois filmes setentistas. Ambos, no entanto, mergulham em níveis mais profundos das inquietações de seus protagonistas. A exuberância da trilha sonora de Os Embalos de Sábado à Noite leva muita gente a pensar – erroneamente – apenas na mensagem hedonista transmitida pelo personagem Tony Manero, papel que revelou John Travolta. Na verdade há um submundo interior do personagem em constante conflito, que em dado momento se contrapõe àquele mundo superficial. Ao fim, estamos na verdade diante de um filme essencialmente amargo.

Em À Procura de Mr. Goodbar este mergulho interno também está presente, mas em nível infinitamente mais profundo e perturbador. O peso de realismo que o filme de Richard Brooks traz é decorrente do fato de que a história é baseada em fatos verídicos, relatados em romance best-seller da época (lançado no Brasil com o título “De Bar em Bar”), que recriou um caso real ocorrido nos anos 50. A personagem central seria - forçando um paralelo - uma espécie de versão hard, radical, de Tony Manero, que traz ainda, como carga adicional, toda a complexidade feminina no contexto da década de 70, em pleno auge do movimento Women’s Lib, que pregava a libertação das mulheres.


O nome dela é Theresa Dunn (magnificamente interpretada por uma surpreendente Diane Keaton), uma dedicada professora que durante o dia trabalha em uma escola para deficientes auditivos. À noite, ela assume o outro lado da sua personalidade, percorrendo bares, casas noturnas e discotecas de Nova Iorque em busca de insaciáveis e inconsequentes aventuras amorosas, como se não houvesse amanhã. Mas, no dia seguinte, às 7h30 o alarme do despertador sempre toca, avisando que a vida real está chamando. Dividida entre dois mundos ambivalentes, Theresa carrega uma barra pesada, construindo uma jornada decadente de autodestruição turbinada com muita bebida, drogas e sexo.

Pérola um tanto esquecida dos anos 70, À Procura de Mr. Goodbar não foi exatamente um êxito em seu tempo e não encontrou aderência do grande público. Razões para isso são facilmente identificáveis. Apesar do ambiente descontraído das discotecas e da trilha sonora recheada de sucessos, o filme de Richard Brooks pega pesado e joga na cara do espectador uma história que tangencia a sordidez, cuja protagonista marcha rumo ao abismo a olhos vistos. A desilusão é um sentimento presente em todo o filme, expressando o momento particular do Zeitgeist – espírito do tempo – manifestado pela ressaca moral da sociedade norte-americana, pós Guerra do Vietnã.


A tortuosa personalidade de Theresa Dunn foi fruto de uma infância e adolescência marcada pela doença (ela sofria de escoliose severa), fato que resultou a dolorosos tratamentos e cirurgias que a deixaram imobilizada por longos períodos. Ou seja, a professora era uma pessoa marcada pela dor, que deixou marcas reais na pele (cicatrizes pelo corpo) e marcas metafóricas na psique (distúrbio de personalidade). Após uma adolescência confinada e reclusa, quando adulta busca uma espécie de compensação, vivendo com intensidade uma sexualidade tardia.

O vazio existencial de Theresa é preenchido por noites solitárias em bares mal frequentados lotados de fumaça, embalados por álcool e figuras insuspeitas, tão perdidas quanto ela própria. Um encontro de desesperançados na iminência de um destino trágico. Há uma afirmação feminina na atitude da professora, libertada do controle familiar e das convenções sociais. Após o término de um relacionamento tóxico e abusivo com seu professor, ela se descobre uma pessoa incapaz de construir relações sólidas e duradouras. Este foi o gatilho da nova vida paralela, onde a conquista da liberdade sexual é a única forma que encontra para aplacar a dores da alma.


À Procura de Mr. Goodbar é doloroso na descrição de uma personagem fragmentada. O olhar de Richard Brooks é simultaneamente íntimo (por vezes) e amoroso (quase sempre). Um olhar furtivo e voyeur que se alterna entre os inferninhos de Nova Iorque e o apartamento mal iluminado e depressivo de Theresa Dunn, onde recebe seus amantes de ocasião. Compartilhamos suas angústias e nos identificamos com sua dor, mas lamentamos a tragédia que se desenha, passo a passo.


Impossível falar deste filme sem destacar o desempenho visceral de Diane Keaton, que se entrega com intensidade a um papel ousado, sem rede de proteção. Recém saída das primeiras parcerias com Woody Allen, especialmente de Annie Hall (realizado no mesmo ano), pelo qual recebeu o Oscar de Atriz, nada fazia esperar que atriz fosse capaz deste mergulho em um tipo de papel totalmente inesperado para quem estava conquistando reconhecimento em filmes de comédia. Certamente este foi o fator que a fez aceitar o desafio de interpretar a personagem de Theresa Dunn: fugir do estereótipo. O resultado excepcional foi um atestado de seu talento como atriz, que a levaria para outros destinos na carreira.

No quesito elenco, o filme de Richard Brooks ainda apresenta um novato Richard Gere, em um de seus primeiros papéis no cinema, vivendo um dos parceiros da protagonista. Neste pequeno papel Gere já apresenta os trejeitos e maneirismos interpretativos que marcaram o início da sua carreira, particularmente em Gigolô Americano e A Força de um Amor (a refilmagem de Acossado de Godard).

À Procura de Mr. Goodbar é um filme a ser redescoberto.


Assista ao trailer: À Procura de Mr. Goodbar

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com