quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Nosferatu: a sedução do horror

 

Um dos clássicos mais icônicos do Cinema Expressionista alemão, Nosferatu foi realizado por F. W. Murnau em 1922. O roteiro foi baseado no romance “Drácula” (1897) de Bram Stoker, no entanto, por problemas legais – a viúva de Stoker negou a venda dos direitos quando a produção já estava em andamento - o filme ganhou um novo título e o nome dos personagens foi alterado. O conde Drácula foi rebatizado como conde Orlok, por exemplo. A primeira versão cinematográfica oficial só chegaria às telas em 1931, no longa-metragem “Drácula”, produzido pela Universal em Hollywood com Bela Lugosi no papel-título. Quase 60 anos depois do Nosferatu original, em 1979 o diretor alemão Werner Herzog, conterrâneo de Murnau, lançou uma sóbria e soturna refilmagem estrelada por Klaus Kinski, Isabelle Adjani e Bruno Ganz, que no Brasil ganhou o subtítulo de O Vampiro da Noite

O vampiro que nunca morre renasce mais uma vez no cinema, pouco mais de um século após a primeira aparição em celuloide. A nova versão traz a assinatura de Robert Eggers que já mostrou afinidade com o universo do horror e da fantasia fantástica em filmes como A Bruxa, O Farol e O Homem do Norte. O primeiro ponto a se ressaltar aqui é que Nosferatu (2024) não é um simples remake em grande escala do clássico do cinema mudo. Trata-se mais de uma releitura cheia de imaginação do sombrio território das sombras – já conhecido à exaustão - temperado com altas doses de sedução e abordagem erótica que aflora à pele com calafrios e desejo. 


O entrecho da trama é bastante conhecido. Na Alemanha do século XIX o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult) viaja até o isolado castelo do conde Orlock (Bill Skarsgard), localizado na Transilvânia, para fechar o contrato de venda de uma mansão na fictícia Wisborg, cidade portuária alemã onde mora. O objetivo do conde é viver próximo da sua paixão, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), esposa de Thomas. A chegada do amaldiçoado conde vampiro em busca da amada traz também o caos e o horror para a população.

Nesta versão o rigorismo formal de Eggers presta um tributo ao Expressionismo alemão ao trabalhar os elementos característicos do movimento: luzes, sombras, contrastes e distorções espaciais na cenografia. Além do que, como reverência definitiva ao filme de 1922, ainda preserva os nomes dos personagens, desconsiderando os nomes utilizados no romance de Bram Stoker. Não temos, portanto, Drácula, Jonathan, Mina, Van Helsing ou Renfield. 


Nosferatu transita entre o mundo das sombras, manifesto por recorrentes pesadelos, e o mundo real das coisas, onde o Mal assume o corpo físico de Orlok. O desequilíbrio destes mundos inicia quando Jonathan acessa o território do conde amaldiçoado, quase como concedendo uma permissão para a criatura invadir o universo dos pobres mortais. Há neste aspecto uma espécie de permuta de posições, como houvesse um troca de identidades. O ponto comum deste espelhamento é a figura de Ellen, objeto do desejo de ambos. Estabelece-se então um perigoso e mortal triângulo amoroso. O roteiro concede uma expansão da trama original propondo novas camadas de complexidades nas relações do trio de protagonistas. 

Usualmente interpretado como uma história amor que chega aos limites do folhetinesco em versões anteriores da obra de Bram Stoker, além de outras representações dos vampiros em versões pop da indústria cultural, neste Nosferatu a abordagem vai além da mera paixão romântica ao assumir uma conotação abertamente sexual com apelo carnal. Estamos, portanto, diante de uma história de adultério, sexy, visceral e extrema. O terreno explorado aqui é o do desejo e da paixão no contexto de uma história de terror gótico. O amor tóxico de Orlok por sua amada revela uma parte desconhecida da natureza da personalidade de Ellen, que horrorizada se divide entre a repulsa e a entrega. Somente um derradeiro orgasmo visceral pode dar conta do paradoxo que invade seu coração.  


A imagem da figura do insepulto Nosferatu / Orlok é uma das mais conhecidas da história do cinema de horror. Reinterpretar esteticamente este personagem clássico certamente foi um dos maiores desafios de Robert Eggers. A decisão foi reinterpretar na totalidade o visual do vampiro. Não há nada de beleza sedutora aristocrática, nem pele clara e smokings alinhados nesta nova representação. A lógica da concepção é de que se trata essencialmente de um cadáver, portanto, carnes podres, inchadas e repulsivas fazem sentido na composição do personagem. Nesta construção o visual do conde assume mais um aspecto demoníaco do que propriamente vampiresco. Completa o quadro a cavernosa voz de Orlok que traz ecos inconfundíveis do sotaque gutural característico da inflexão de Bela Lugosi (com um “r” muito carregado), fruto da ascendência romena e conhecimento parcial da língua inglesa. O resultado é uma espécie de Darth Vader das trevas.
  

Nosferatu arrebata os sentidos com uma versão exuberante de narrativa sólida e consistente. É em igual medida assustador e sedutor em seu mergulho profundo nas sombras da mente de seus personagens protagonistas. Ao explorar novos caminhos, inexistentes tanto na obra original quanto nas diversas versões cinematográficas, Robert Eggers acerta em todas suas decisões estéticas que elevam o filme a uma condição de produto artístico de excelência.

Assista ao trailer: Nosferatu


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Queer: uma odisseia existencial

 

A temporada de 2024 assinala duas produções dirigidas pelo prolífico diretor italiano Luca Guadagnino. Acredite, ele está com outros 6 (!) projetos em andamento. No primeiro semestre tivemos a estreia do ótimo Rivais, um drama esportivo de poliamor com um trisal de tenistas liderado por Zendaya. Agora, no fechamento do ano, é lançado Queer, estrelado por Daniel Craig, em sua fase pós-007, abandonando definitivamente a persona de James Bond que encarnou por 15 anos. Um ponto comum aproxima estas duas obras de Guadagnino: o sexo utilizado como artifício de sedução, manipulação e poder.

Inspirado no livro homônimo de William S. Burroughs, Queer é um drama histórico, parcialmente biográfico, com alta carga erótica, protagonizado pelo personagem alter ego William Lee, presente em outras obras do autor. Em Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), de David Cronenberg, o mesmo personagem William (Bill) Lee foi interpretado por Peter Weller. Em Queer o alter ego de Burroughs ganha o corpo e a alma de um provocativo Daniel Craig, que entrega uma atuação ousada e desprendida como você nunca viu em nenhum de seus trabalhos anteriores.


A história se passa no México dos anos 50. É lá que vive o expatriado americano William Lee. O filme passa ao largo de uma explicação mais clara da verdadeira razão que o levou a sair dos Estados Unidos. No livro este passado é esclarecido: ele foi dispensado da Marinha, dentre outras razões, por ser usuário de drogas. A trama de Queer segue a vida de Lee que percorre, de bar em bar, os ambientes da comunidade homossexual masculina da cidade, sempre em busca de novas aventuras e parceiros para uma noitada. A vida boêmia de Lee ganha novos contornos quando conhece o jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), de orientação sexual inicialmente ambígua, porém abertamente disponível para outras possibilidades. Juntos vivem uma intensa paixão que os levará para uma reveladora viagem pelas florestas equatorianas em busca de experiências sensoriais com drogas alucinógenas. 


A origem literária do material de Queer fica explicitado logo nas sequências iniciais com a exibição de páginas de manuscrito datilografado com trechos da obra. A referência de origem nas letras fica ainda mais explícita quando o roteiro é construído como capítulos intitulados de um livro, recurso utilizado com frequência em muitas produções, a propósito. Esta divisão em capítulos contribui para a construção da trama em dois grandes blocos narrativos, como volumes separados da mesma obra, distintos entre si pela alteração de cenário, cores e significados. O primeiro deles, marcado pela descoberta do corpo, mostra o cotidiano de William Lee em suas interações com a cidade e seus personagens. Aqui a perspectiva é absolutamente hedonista, com uma busca incessante pelo prazer acima de qualquer outro estímulo vital. No segundo bloco, com a viagem de experiências místicas e transcendentais sob os efeitos de erva alucinógena (que não faz parte do livro de Burroughs), Queer assume uma perspectiva existencial. A busca passa a ser a liberação da mente. O arco da jornada de William Lee percorre então os dois princípios básicos e opostos da existência humana, os arquétipos de Eros e Thanatos, as pulsões de Vida e Morte.

Sob o comando de um inspirado Guadagnino, claramente interessado no universo que retrata, um insuspeito Daniel Craig passeia em cena com seu indefectível terno de linho branco, chapéu e óculos de sol em busca de aventuras amorosas. Completando a construção de um personagem descontruído, Lee carrega no coldre junto ao corpo uma pistola onipresente, um objeto de conotação fálica, que não passa de símbolo aleatório de representatividade de poder, reminiscência de um passado do qual não se liberta na totalidade. Em um diálogo confessional e revelador conta que, de alguma maneira, é portador de uma “maldição” hereditária que predestinou sua orientação. 


A viagem por terras estranhas na América do Sul profunda assume contornos bizarros pelos reais propósitos. Os alegados poderes telepáticos do “yage”, ou ayahuasca, é a verdadeira motivação de Lee que deseja ardentemente penetrar na mente de Eugene para descobrir o que ele realmente pensa e sente, pois suspeita que seu amor profundo não é correspondido. A “viagem” proporcionada pelo chá da erva conduz às inquietantes sequências de alucinação, uma experiência psicodélica de transformação que unificam, fundem e distorcem os limites de seus corpos. Tempo e espaço voltam a ser subvertidos no desfecho de Queer. A imagem de William Lee na velhice nos remete ao astronauta solitário de Stanley Kubrick no final de 2001, que mira a si mesmo e sua história derradeira enquanto encara a morte inelutável. O destino dos protagonistas parece comprovar que o mesmo amor que salva pode ser o amor que condena.


Com sua usual ousadia estilística Luca Guadagnino explora com sensibilidade temas fundamentais do ser humano como amor-próprio, solidão e identidade. Estranho e incomum, Queer é um filme inquietante com uma pungente história de amor e luxúria, embriagada de tequila em terras tropicais.

Assista ao trailer: Queer


Jorge Ghiorzi

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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O Conde de Monte Cristo: vingança épica

 

Aparentemente há em curso um revival de adaptações cinematográficas de clássicos da literatura francesa. A novidade é a origem nacionalista destas adaptações. Por décadas Hollywood produziu inúmeras reinterpretações de obras de grandes escritores franceses, muitas delas permanecendo até hoje no imaginário popular como as versões definitivas. A novidade no movimento atual é que as novas adaptações que estão chegando aos cinemas são produzidas na própria França, assegurando desta maneira, além da língua nativa, um olhar mais condizente com o contexto territorial da origem das obras. Assim foi com as duas recentes adaptações de Os Três Mosqueteiros transformados em um díptico com ares de superprodução revisionista por respeitarem a obra original: D’Artagnan e Milady (ambos de 2023). 

Parte da equipe criativa por trás destes dois filmes está de volta com mais um projeto baseado na obra de Alexandre Dumas. A dupla de roteiristas de D’Artagnan e Milady desta vez assume a posição de realizadores. Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte assinam a direção de O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo, 2024). Retomando aquela questão das adaptações norte-americanas, é bastante provável que a adaptação mais popular e presente na mente das pessoas seja a versão de 2002, dirigida por Kevin Reynolds (Robin Hood: O Príncipe dos Ladrões e Waterworld) e estrelada por Jim Caviezel, Guy Pearce e Henry Cavill.


A versão 2024 reforça o caráter de aventura épica que fez a fama do romance de Alexandre Dumas. O filme acompanha Edmond Dantès (Pierre Niney) um jovem marinheiro que sofre uma trágica injustiça no dia de seu casamento. Ele é preso devido a uma conspiração organizada pelos seus supostos amigos, que o acusam de espião aliado a Napoleão Bonaparte. Enclausurado no sinistro Château d’If, Edmond acaba conhecendo no cárcere, como vizinho de cela, um abade que relata uma mirabolante narrativa a respeito de um gigantesco tesouro escondido. Após 14 anos (cerca de uma hora de tempo de tela) Edmond consegue escapar da prisão e parte em busca da fortuna escondida. Torna-se rico e poderoso, porém obstinado em castigar aqueles que o traíram. Reaparece na alta sociedade parisiense como o misterioso e magnífico Conde de Monte Cristo com um único objetivo: vingar-se daqueles que destruíram a sua vida.

Essencialmente O Conde de Monte Cristo é uma história de vingança que transita por três blocos narrativos: injustiça, penitência e redenção. O roteiro bem estruturado permite uma edição dinâmica, ainda que não existam grandes cenas de ação, fator que proporciona a fruição da história por três horas sem grande esforço por parte do espectador. Em termos técnicos e artísticos (fotografia, figurinos, direção de arte) o filme da dupla Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte é um deleite para os olhos e garante um espetáculo em alta escala.


A ardilosa trama de vingança de Edmond relembra, com a devida ressalva, as elaboradas tramas de filmes como Missão Impossível, que envolvem trocas de identidades com personagens dissimuladas que não são exatamente quem parecem ser. O que efetivamente exige uma boa dose de suspensão de descrença por parte da plateia. A diferença fundamental entre as artimanhas de Tom Cruise e a cruzada vingadora de Edmond, além dos 180 anos que as separam, é a elementar ausência da tecnologia. No mais, a motivação, a sagacidade, o ardil e a capacidade de iludir são exatamente iguais. 

O formato aventuresco com grandes subtramas se explica pelo fato de que O Conde de Monte Cristo foi publicado inicialmente no formato de folhetim ao longo de dois anos (1844 a 1846). Os ganchos dramáticos eram uma necessidade da estrutura da obra para garantir o interesse dos leitores ao longo do tempo. Modelo semelhante às atuais telenovelas e séries de TV. Portanto, uma adaptação cinematográfica necessariamente teria de abrir mão parcial ou total de algumas destas tramas paralelas sob pena de tornar inviável dramaturgicamente uma narrativa visual em tempo razoável. Ainda assim, esta versão de 2024 é uma das adaptações mais fiéis da obra original ao respeitar sua essência narrativa, permitindo desta maneira um amplo alcance da totalidade da criação literária de Alexandre Dumas.



Grande e vigoroso, O Conde de Monte Cristo percorre o caminho obstinado da vingança de Edmond com sobriedade e seriedade, sem momentos de alívio cômico (como as versões recentes de Os Três Mosqueteiros) que afastem o propósito da condução da história, que em sua essência foca sempre no destino trágico do protagonista. Bem produzida, bem interpretada e bem dirigida esta versão captura a profundidade emocional do romance entregando para o público contemporâneo a reinterpretação de um clássico.

Assista ao trailer: O Conde de Monte Cristo


Jorge Ghiorzi

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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Quem é Joe Penna?

 

Nos créditos de A Garota da Vez, lançamento recente dirigido e estrelado por Anna Kendrick, aparece o nome de Joe Penna com produtor executivo. Quem é Joe Penna?

Este é o nome artístico de Jônatas de Moura Penna, nascido em São Paulo (SP). Quem está mais atento ao universo dos youtubers identifica o cineasta por outro nome: MysteryGuitarMan. Sim, isso mesmo, Joe Penna começou sua carreira com um canal no YouTube, sendo um dos primeiros brasileiros a bombar na rede, quando chegou a ficar entre os dez usuários de todo o mundo com mais inscrições em 2010.


Autodidata e desbravador, Joe Penna emigrou para os EUA onde frequentou a Universidade de Massachusetts para estudar Medicina. Abandonou o curso em 2007 para se dedicar integralmente ao canal “MysteryGuitarMan” no YouTube, criado um ano antes. Em 2010 dirigiu a série de TV T-Shirt War e se insere no mercado do audiovisual nos Estados Unidos. Em 2011 e 2012 cria, escreve, dirige e atua na série Once Upon, e participa (dirigindo e/ou atuando) das séries Sand Box e Behind the Glasses. Ainda em 2012 escreve e dirige seu primeiro curta-metragem, o drama de aventura Meridian, que marcou o momento definitivo de passagem para o universo do cinema.


Após outras quatro realizações de curtas-metragens, em 2018 Joe Penna chega ao longa com Ártico, um drama de sobrevivência no território polar estrelado por Mads Mikkelsen. O filme foi exibido no Festival de Cannes e recebeu críticas de modo geral positivas da imprensa especializada. Atualmente Ártico está no catálogo dos canais a cabo no Brasil, onde é exibido regularmente.


A oportunidade de ouro veio no ano seguinte quando a Netflix deu sinal verde para seu novo projeto. Em meados de 2019 Joe Penna iniciou a produção e direção de Passageiro Acidental (Stowaway) que escreveu conjuntamente com Ryan Morrison, com quem já havia trabalhado no desenvolvimento do roteiro de Ártico. Estrelado por Toni Collette, Anna Kendrick, Daniel-Dae Kim e Shamier Anderson, a produção é um thriller de ficção científica que mostra a tripulação de uma nave em missão com destino à Marte. Em meio à viagem a equipe se depara com um inesperado tripulante extra a bordo, que desequilibra seriamente os recursos do sistema de suporte à vida e coloca a missão em risco.


Consta que o filme seria lançado pela Netflix no Brasil com o título de Passageiro Clandestino, inclusive chegou a ser chamado assim nas primeiras peças de divulgação. O diretor Joe Penna, ao tomar conhecimento deste título, lamentou a escolha e comentou no Twitter o equívoco: “O passageiro extra não está lá de propósito. Foi um acidente”. Inconformado ele entrou em contato com a plataforma e pediu a mudança do nome. Assim, o filme foi rebatizado com o novo título, substituindo o “Clandestino” por “Acidental”.


Aparentemente neste filme surgiu uma parceria ou amizade entre o realizador e Anna Kendrick. Após participar do filme de Joe Penna a atriz começou a trabalhar na produção de A Garota da Vez, que marcaria sua estreia na direção. Quem aparece como um dos produtores executivos do longa-metragem? Joe Penna.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A Linha da Extinção: proibido ultrapassar

 

Nos últimos anos o título de uma leva de filmes de gênero (suspense, terror e até comédia), em sua versão brasileira, tem adotado a prática de dar ordens de comando aos personagens / espectadores, tipo “não olhe”, “não conte”, “não fale”, “não case”, “não abra”, “não se mexa” e “não solte”. O thriller de ação e ficção científica A Linha da Extinção (Elevation, 2024) não se enquadra exatamente nesta moda, mas muito bem poderia se chamar “Não Desça”. Na premissa do filme as populações de um mundo pós-apocalíptico se refugiam nas zonas altas das montanhas. A recomendação é de que não se desça abaixo dos 2.400 metros de altura, a chamada linha da extinção. Ao ultrapassarem este limite as pessoas são atacadas por criaturas monstruosas de origem desconhecida.

Em uma desta comunidades, uma pequena vila na verdade, moram os protagonistas: Will (Anthony Mackie), com seu filho Hunter que sofre de problemas respiratórios, Nina (Morena Baccarin) e Katie (Maddie Hasson). A localidade foi criada há três anos, após os acontecimentos que marcaram o surgimento dos “ceifadores”, os seres que emergiram misteriosamente do subsolo para ocupar e dominar o planeta. A origem do êxodo das pessoas para as montanhas é narrada com muita síntese durante os créditos de abertura. Pressionados pela crescente escassez de alimentos e pela necessidade de suprimentos médicos para Hunter, o trio decide empreender uma perigosa missão em busca de recursos em um hospital abandonado, localizado bem abaixo da linha da extinção de 2.400 metros.


A jornada de sobrevivência do grupo em meio hostil é o mote da trama central da ação de A Linha da Extinção, que tem a direção de George Nolfi (de Os Agentes do Destino). Outro ingrediente que tempera a aventura é a relação de antagonismo que existe entre os integrantes do trio. Todos possuem um passado comum cujas consequências, de alguma maneira, se refletem no presente causando um tensionamento nas relações, que explodem justamente no momento menos apropriado: quando embarcaram em uma perigosa viagem. 

Os cenários naturais das montanhas do Colorado são muito bem utilizados contribuindo para o dinamismo de boas tomadas com drones. Uma das sequências a se destacar é a do teleférico que garante bons momentos de suspense e tensão, onde o cenário natural assume importante papel narrativo. Neste aspecto relacionado ao ambiente, onde a ameaça da trama surge da natureza, o filme A Linha da Extinção se aproxima – ou ao menos lembra demais - do universo dos filmes da franquia Um Lugar Silencioso, que também lida com as ameaças do desconhecido que destroem o mundo que conhecemos.


A produção do filme traz os nomes de Anthony Mackie e Morena Baccarin, o que lhes garante o protagonismo compartilhado, porém com resultados diversos. Enquanto Mackie (o novo Capitão-América), que faz o papel de um pai dedicado que arrisca a vida para salvar a vida do filho, possui poucos momentos para brilhar de verdade, a brasileira Morena Baccarin (de Deadpool) ganha bastante espaço para desenvolver uma personagem com uma pesada carga emocional interior e também uma missão pessoal de descobrir uma maneira de eliminar as criaturas.


A ação de A Linha da Extinção é bastante convencional, com soluções previsíveis e situações clichê. Um pecado mortal é o excesso de diálogos expositivos, como que a prestar contas ao espectador sobre os fatos que estão acontecendo. A bem da verdade o filme não possui grandes ambições justamente por reconhecer sua dimensão, pois é a típica produção com o perfil de grande circulação nas plataformas de streaming, onde possivelmente possa ter vida longa. A propósito, o gancho para a provável sequência é apresentado na cena pós-créditos.

Apesar de estar longe de ser filme do qual lembremos por muito tempo, A Linha da Extinção é um entretenimento que não ofende a inteligência do espectador. É rápido e conciso, para assistir com o cérebro desligado. 

Assista ao trailer: A Linha da Extinção


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Herege: questão de fé

 


Duas garotas sentadas em um banco de rua conversam amenidades até que o assunto inesperadamente passa para temas explicitamente sexuais. Completando o quadro, a câmera se afasta e exibe uma propaganda de preservativo no encosto do banco. Uma ironia contraditória se estabelece nos primeiros minutos de Herege (Heretic, 2024) quando descobrimos que as duas garotas em conversa tão liberal são na verdade missionárias católicas que tem como tarefa conquistar novos fiéis através da palavra. A missão do dia é visitar um homem descrente para convertê-lo para a religião. O homem em questão é o misterioso e recluso Sr. Reed (Hugh Grant) que vive isolado em um casarão. 

O thriller de horror psicológico Herege é uma produção da A24, dirigido pela dupla Scott Beck e Bryan Woods, que tem como destaque o protagonista: Hugh Grant. Conhecido por uma série de comédias românticas como Quatro Casamentos e Um Funeral, Um Lugar Chamado Notting Hill e Simplesmente Amor, aqui Hugh Grant está em registro sombrio e maligno, completamente oposto à persona que criou no cinema, ainda que preserve parcialmente alguns trejeitos de seus papéis mais cômicos, quando faz o cara legal e simpático. O que, a propósito, muito contribui para a construção do sarcasmo deste personagem complexo.


Ao receber a visita das duas jovens o Sr. Reed manifesta interesse em ouvir as palavras de fé trazidas pelas missionárias. A contragosto elas aceitam entrar na casa com um homem que vive só. A pregação começa amigável e descontraída, até que em dado ponto Reed passa a dominar a conversa e conduz as ações. Ele debocha e deprecia todos os aspectos dogmáticos das religiões segundo sua interpretação torta e distorcida. Seu principal propósito é contestar e destruir verdades estabelecidas, contradizendo todo o discurso das missionárias. Segundo sua tese todas as ideias religiosas existentes são plágios reelaborados de histórias passadas. Chega inclusive a fazer uma analogia muito esperta e bem sacada com o mercado da música, que eventualmente é acusada de fazer plágio, deliberadamente ou não, de canções ou acordes já existentes. Há ainda outra metáfora quando compara as preferências das jovens para os sanduíches mais conhecidos das famosas franquias de fast food, para concluir que no final das contas são todos iguais. Segundo ele o mesmo ocorre com as religiões: são fast foods da fé para rápido consumo.


Fica claro que as garotas entraram em uma cilada. Reed pretende subjugar suas presas com argumentos pretensamente inteligentes e coerentes, visando despertar suas consciências capturadas pela crença religiosa. Quando a situação fica por demais incomoda, as garotas sinalizam a intenção de abandonar o local. Então o terror começa. A visita de cortesia para evangelização se transforma em uma armadilha sem chance de fuga. Sem poderem sair da casa inicia-se uma espécie de jogo macabro de manipulação mental. A tese defendida pelo personagem de Hugh é de que a construção das grandes religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – se dá como forma de controle social e conquista de seguidores. A origem da profissão de fé, em tese, é a mesma. Apenas seguem por caminhos diferentes. 

As missionárias possuem histórias pessoais e origens muito diferentes, razões que justificam as maneiras distintas que reagem às ameaças que sofrem no interior da casa. Mas as aparências enganam, como diz a máxima. Herege possui uma proposta de narrativa tipo huis clos, circunscrita em um ambiente único, restrito e confinado. O casarão de Reed faz as vezes de um imenso parque de diversões macabro onde brinca com seus jogos de poder sobre o destino de suas vítimas.



Herege se apropria de discussões sobre temas de fé misturadas com reflexões filosóficas rasas. Questiona os dogmas religiosos e o poder transformador da crença no livre arbítrio das pessoas, pois não passam de utilização mercadológica da religião ao longo dos séculos. Mais do que terror, Herege se coloca como uma experiência de suspense e tensão. A necessidade de provocar reviravoltas apressa e prejudica a experiência final do filme. A meticulosa construção do clima de tensão é destruída no terço final por uma série de acontecimentos fortuitos que quebram completamente a proposta inicial, tão bem conduzida até então. Herege passa 110 minutos pregando o ateísmo para, ao fim, plantar sementes da dúvida.

Assista ao trailer: Herege

 

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Gladiador II: força e honra

O tempo decorrido entre o primeiro Gladiador (2000) e sua sequência Gladiador II (2024) é de praticamente 25 anos, o mesmo período de tempo real que separa o enredo da continuação da história original. Não é surpresa para ninguém, portanto não se trata de spoiler, pois está no trailer, o novo filme de Ridley Scott é centrado na figura do filho do ex-general e gladiador Maximus (Russell Crowe), que por circunstâncias análogas retorna à Roma na condição de prisioneiro de guerra e também se torna gladiador nos jogos do Coliseu. 

O filme abre com um prólogo que narra uma épica batalha entre o exército romano, comandado pelo general Marcus Acacius (Pedro Pascal) contra as forças de defesa da Numídia (território no norte da África, onde hoje se localiza a Argélia e Tunísia). A campanha expansionista conquista mais um território para o poderoso Império Romano. No espólio da guerra centenas de prisioneiros são enviados para trabalho escravo nas redondezas de Roma. Dentre estes prisioneiros está Hanno / Lucius (Paul Mescal, de Aftersun) que acaba sendo comprado pelo influente mercador e negociante Macrinus (Denzel Washington) para ser utilizado como gladiador.


Estes primeiros momentos de Gladiador II nos fazem pensar estarmos diante de uma mera refilmagem do filme original, e não propriamente de uma continuação. As sagas dos protagonistas são muito semelhantes. Porém, logo Ridley Scott mostra a que veio. A saga de uma vingança pessoal é apenas um ponto de partida. Outras camadas são acrescentadas à trama central e o enredo se transfigura em uma narrativa de conspirações, tramas palacianas e luta pelo poder supremo do Império. Neste aspecto o eixo da trama sai da figura do gladiador, que reprisa a trajetória do pai, e se concentra na personagem de Macrinus, em uma poderosa interpretação de Denzel Washington. 

Assim como o gladiador Hanno / Lucius luta com seus demônios internos para honrar e merecer o legado da história de seu pai, Gladiador II vem à luz com a tarefa de fazer jus ao legado do Gladiador I, que foi o filme sensação do início dos anos 2000, sucesso de bilheteria e crítica. Ridley Scott comanda essa retomada do projeto (muitas vezes adiado) sempre de olho no retrovisor, prestando tributo àquela produção fundamental que restituiu seu prestígio como realizador. Vale lembrar que o primeiro Gladiador conquistou cinco prêmios no Oscar de 2001, incluindo Melhor Filme e Ator, além de garantir uma indicação pela direção de Ridley Scott.


Nestas duas décadas e meia que separam os dois filmes houve uma significativa evolução técnica da computação gráfica, ainda um tanto incipiente no uso em larga escala naquele período de produção de Gladiador I. Os cenários gerados por bits e bytes comprovaram a viabilidade e verossimilhança da técnica e marcou época, abrindo caminho para uma série de filmes históricos e séries de fantasia, incluindo produções como Game of Thrones e similares. Hoje não há mais novidade neste campo, há inclusive um certo enfado pelo uso recorrente e não criativo da técnica, que virou um recurso antinatural que frequentemente incomoda as plateias. O uso massivo de computação gráfica pode irritar muita gente, mas certamente não irrita Ridley Scott. Nesta nova produção ele vai fundo na utilização deste recurso técnico em busca de uma monumentalidade forçada em sua obra, a ponto de sufocar visualmente a narrativa que tem lá seu interesse como exercício de jogos de poder. 

Ridley Scott é um cineasta de contradições, por vezes extremas. Costuma errar e acertar com uma frequência consistente, sempre alternando filmes de qualidade e impecável produção com outros tantos equívocos imperdoáveis e frustrantes. Sua ambição estética costuma se sobrepor ao conceito narrativo de seus projetos. Sua opção primeira costuma ser pelo épico monumental, depois, em segundo plano vem o storytelling, os arcos narrativos e suas decorrências. Ridley é o cineasta do espetáculo, não do personagem. Posto isso, Gladiador II é um exemplo típico da marca padrão de seu realizador. A busca pela grandiosidade está presente em muitos momentos, incluindo sequências exageradas com rinoceronte, babuínos e .... tubarões, em plena arena do Coliseu.


No entanto, além da relevância dos aspectos estéticos, há uma história a ser contada. O conflito em Gladiador II coloca em oposição a visão de mundo de Maximus e seus descendente Lucius. O pai possuía uma visão otimista do Império, antes de ser sacrificado por seus ideais. Já o seu filho nutre um pessimismo profundo sobre o destino do Império e dos líderes que o comandam. Sua luta não é para manter uma utopia visionária de um reino de justiça e paz, como seu pai. Sua ira se manifesta para justamente restituir os ideais de uma sociedade que sucumbe pelo hedonismo, ganancia, corrupção e tirania. O que Gladiador I possuía de heroico foi substituído pelo ceticismo sombrio em Gladiador II. Ou seja, o que era ruim no passado fica ainda pior e decadente 25 anos depois.


“O que fazemos em vida ecoa por toda a eternidade”. Parafraseando esta frase icônica de Gladiador I poderíamos afirmar que Gladiador II será um filme memorável no futuro? Dificilmente. A mescla de ação e drama é um tanto rasa e óbvia, não acertando a mão plenamente em nenhum dos caminhos. Cumpre apenas a promessa de entregar um épico de entretenimento com excelência técnica. Há, no entanto, um ponto que o coloca em destaque. A simples participação de Denzel Washington em cena eleva necessariamente a qualidade de qualquer filme onde esteja presente. Seu desempenho aqui é nada menos que primoroso e garante o interesse do público para uma sequência que, se não supera o legado do filme anterior, tem seus méritos por ousar um rumo próprio para além de uma simples reprodução do modelo original.

Assista ao trailer: Gladiador II


Jorge Ghiorzi

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