quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Gladiador II: força e honra

O tempo decorrido entre o primeiro Gladiador (2000) e sua sequência Gladiador II (2024) é de praticamente 25 anos, o mesmo período de tempo real que separa o enredo da continuação da história original. Não é surpresa para ninguém, portanto não se trata de spoiler, pois está no trailer, o novo filme de Ridley Scott é centrado na figura do filho do ex-general e gladiador Maximus (Russell Crowe), que por circunstâncias análogas retorna à Roma na condição de prisioneiro de guerra e também se torna gladiador nos jogos do Coliseu. 

O filme abre com um prólogo que narra uma épica batalha entre o exército romano, comandado pelo general Marcus Acacius (Pedro Pascal) contra as forças de defesa da Numídia (território no norte da África, onde hoje se localiza a Argélia e Tunísia). A campanha expansionista conquista mais um território para o poderoso Império Romano. No espólio da guerra centenas de prisioneiros são enviados para trabalho escravo nas redondezas de Roma. Dentre estes prisioneiros está Hanno / Lucius (Paul Mescal, de Aftersun) que acaba sendo comprado pelo influente mercador e negociante Macrinus (Denzel Washington) para ser utilizado como gladiador.


Estes primeiros momentos de Gladiador II nos fazem pensar estarmos diante de uma mera refilmagem do filme original, e não propriamente de uma continuação. As sagas dos protagonistas são muito semelhantes. Porém, logo Ridley Scott mostra a que veio. A saga de uma vingança pessoal é apenas um ponto de partida. Outras camadas são acrescentadas à trama central e o enredo se transfigura em uma narrativa de conspirações, tramas palacianas e luta pelo poder supremo do Império. Neste aspecto o eixo da trama sai da figura do gladiador, que reprisa a trajetória do pai, e se concentra na personagem de Macrinus, em uma poderosa interpretação de Denzel Washington. 

Assim como o gladiador Hanno / Lucius luta com seus demônios internos para honrar e merecer o legado da história de seu pai, Gladiador II vem à luz com a tarefa de fazer jus ao legado do Gladiador I, que foi o filme sensação do início dos anos 2000, sucesso de bilheteria e crítica. Ridley Scott comanda essa retomada do projeto (muitas vezes adiado) sempre de olho no retrovisor, prestando tributo àquela produção fundamental que restituiu seu prestígio como realizador. Vale lembrar que o primeiro Gladiador conquistou cinco prêmios no Oscar de 2001, incluindo Melhor Filme e Ator, além de garantir uma indicação pela direção de Ridley Scott.


Nestas duas décadas e meia que separam os dois filmes houve uma significativa evolução técnica da computação gráfica, ainda um tanto incipiente no uso em larga escala naquele período de produção de Gladiador I. Os cenários gerados por bits e bytes comprovaram a viabilidade e verossimilhança da técnica e marcou época, abrindo caminho para uma série de filmes históricos e séries de fantasia, incluindo produções como Game of Thrones e similares. Hoje não há mais novidade neste campo, há inclusive um certo enfado pelo uso recorrente e não criativo da técnica, que virou um recurso antinatural que frequentemente incomoda as plateias. O uso massivo de computação gráfica pode irritar muita gente, mas certamente não irrita Ridley Scott. Nesta nova produção ele vai fundo na utilização deste recurso técnico em busca de uma monumentalidade forçada em sua obra, a ponto de sufocar visualmente a narrativa que tem lá seu interesse como exercício de jogos de poder. 

Ridley Scott é um cineasta de contradições, por vezes extremas. Costuma errar e acertar com uma frequência consistente, sempre alternando filmes de qualidade e impecável produção com outros tantos equívocos imperdoáveis e frustrantes. Sua ambição estética costuma se sobrepor ao conceito narrativo de seus projetos. Sua opção primeira costuma ser pelo épico monumental, depois, em segundo plano vem o storytelling, os arcos narrativos e suas decorrências. Ridley é o cineasta do espetáculo, não do personagem. Posto isso, Gladiador II é um exemplo típico da marca padrão de seu realizador. A busca pela grandiosidade está presente em muitos momentos, incluindo sequências exageradas com rinoceronte, babuínos e .... tubarões, em plena arena do Coliseu.


No entanto, além da relevância dos aspectos estéticos, há uma história a ser contada. O conflito em Gladiador II coloca em oposição a visão de mundo de Maximus e seus descendente Lucius. O pai possuía uma visão otimista do Império, antes de ser sacrificado por seus ideais. Já o seu filho nutre um pessimismo profundo sobre o destino do Império e dos líderes que o comandam. Sua luta não é para manter uma utopia visionária de um reino de justiça e paz, como seu pai. Sua ira se manifesta para justamente restituir os ideais de uma sociedade que sucumbe pelo hedonismo, ganancia, corrupção e tirania. O que Gladiador I possuía de heroico foi substituído pelo ceticismo sombrio em Gladiador II. Ou seja, o que era ruim no passado fica ainda pior e decadente 25 anos depois.


“O que fazemos em vida ecoa por toda a eternidade”. Parafraseando esta frase icônica de Gladiador I poderíamos afirmar que Gladiador II será um filme memorável no futuro? Dificilmente. A mescla de ação e drama é um tanto rasa e óbvia, não acertando a mão plenamente em nenhum dos caminhos. Cumpre apenas a promessa de entregar um épico de entretenimento com excelência técnica. Há, no entanto, um ponto que o coloca em destaque. A simples participação de Denzel Washington em cena eleva necessariamente a qualidade de qualquer filme onde esteja presente. Seu desempenho aqui é nada menos que primoroso e garante o interesse do público para uma sequência que, se não supera o legado do filme anterior, tem seus méritos por ousar um rumo próprio para além de uma simples reprodução do modelo original.

Assista ao trailer: Gladiador II


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui: memórias dos tempos de chumbo

O longa-metragem que marca o retorno de Walter Salles aos temas e cenários brasileiros é uma obra memorialista inspirada no livro de Marcelo Rubens Paiva. O filme aborda os episódios verídicos da tragédia familiar do desaparecimento e morte do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva (pai de Marcelo), no período da ditadura militar brasileira. Assim como em Central do Brasil, realizado há 26 anos, Ainda Estou Aqui novamente faz o relato de uma busca, de um resgate de memórias e histórias interrompidas. 

Brasil. Rio de Janeiro. Início dos anos 70. Uma primorosa recriação iconográfica, estética e sonora nos transporta para um país de contrastes. A alegria descontraída de uma praia carioca esconde os subterrâneos dos porões da repressão e tortura. É neste tempo e espaço que somos apresentados à família formada por Rubens Paiva (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), cinco filhos e muitos amigos. Sinais de ameaça iminente surgem a todo momento. Helicópteros militares em voos rasantes sobre zonas residenciais. Movimentação de tropas em caminhões. Circulação de militares pelas ruas. As apreensões de Eunice se confirmam quando certo dia agentes das forças de repressão chegam à sua casa para conduzir Rubens Paiva para um breve depoimento nas dependências de um quartel militar. A promessa era de que ele voltaria para casa em poucas horas. Nunca mais retornou, sua detenção foi negada e seu corpo jamais localizado.

O motor da narrativa de Ainda Estou Aqui é a angustiante jornada de Eunice em busca do paradeiro do companheiro de vida, pai de seus filhos. Enquanto luta obstinadamente atrás de informações que expliquem o desaparecimento, Eunice precisa encontrar forças para manter a família unida e protegida, ainda que para isso tenha que ocultar grande parte da verdadeira história para seus filhos, ainda jovens e menores de idade. Uma aparência de normalidade controlada se instala naquela casa, ao mesmo tempo em que uma obstinada batalha consome os dias de Eunice, guardiã da paz e da integridade família em risco.

Medo e angústia são dois sentimentos muito presentes nos personagens de Ainda Estou Aqui, mesmo aqueles que não possuem pleno conhecimento do que está ocorrendo. Este é um registro muito bem trabalhado por Walter Salles, que se afastou de uma abordagem mais política e, digamos, abertamente panfletária daquele contexto histórico. A ditadura e a repressão está lá, suas consequências estão expostas, mas não é este objetivamente o ponto fulcral. O olhar do filme é todo direcionado para os nocivos e lamentáveis efeitos deletérios daquele período de chumbo na vida real de pessoas reais, com suas sequelas físicas e psicológicas que se perpetuaram ao longo dos anos.


Recriar aqueles episódios ocorrido há mais de 50 anos equivale a revisitar, com dor e pesar, um baú de memórias adormecidas. A elegante direção de Walter Salles torna esta jornada uma experiência guiada pela sensibilidade e emoção, sem excessos narrativos para conquistar a plateia. A história se conta por si só, sem artifícios ou truques, apenas levada pela interpretação e um roteiro enxuto. Ainda assim há uma sequência espetacular que reforça a capacidade da gramatica audiovisual transmitir emoção e contexto. Sem palavras. A chegada dos agentes na casa ensolarada dos Paiva – localizada a poucos metros da praia – transforma simbolicamente o destino daquela família quando começam a fechar todas as cortinas das janelas de casa, impedindo a entrada de luz. A partir daquele momento a vida daquela família estava definitivamente entrando em um período sombrio de trevas. 

Referimos a questão da interpretação e neste aspecto é impossível não destacar o maravilhoso trabalho de Fernanda Torres. Interpretando com muita entrega e emoção todos os momentos limites vivenciados por Eunice Paiva, Fernanda Torres cativa e comove com sua performance cheia de nuances e carga emocional. Aqui temos uma atriz com pleno domínio do seu ofício, que tem conquistado elogios e referências positivas pela crítica nacional e internacional. Há inegavelmente uma perspectiva real de que Fernanda Torres seja indicada ao Oscar em 2025, repetindo a façanha da mãe, Fernanda Montenegro, indicada em 1999 por Central do Brasil.


A expressão “Ainda estou aqui” representa um clamor de quem aguarda, de quem espera, de quem vive a eterna expectativa do retorno. O filme de Walter Salles deixa esta mensagem. Ao reativar nossas memórias, Ainda Estou Aqui resgata um episódio doloroso que fere a história do Brasil. Para não esquecer. Para não deixar passar em vão. Assistir Ainda Estou Aqui é um ato de resgate de um Brasil que não mais desejamos, mas não pode ser esquecido. Ainda que saiamos da sessão com o peito aberto e o coração dilacerado.

Assista ao trailer: Ainda Estou Aqui


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Não Solte!: conto infantil de terror

 

As casas são elementos utilizados com frequência como espaços de confinamento onde transcorrem muitos filmes de terror. Seja como ambiente de manifestação de forças malignas ou como local de abrigo e refúgio, o fato é que as casas normalmente assumem a condição de “personagem” ativo das narrativas construídas com o objetivo de provocar o medo ao confrontar o limite entre o real e o sobrenatural. A ameaça, em última ordem, se manifesta como um poder sinistro que rompe o equilíbrio e a harmonia – ainda que aparente – de um lar doméstico. A tal da casa mal-assombrada é um clássico das histórias de terror. 

Pois justamente uma casa – olha ela aí de novo - é o elemento catalizador de todos os mistérios e espíritos do além que espreitam uma família no thriller de terror Não Solte! (Never let go, 2024). O longa-metragem é estrelado e produzido por Halle Berry, atriz vencedora do Oscar por seu desempenho em A Última Ceia, de 2002. A direção é de um especialista do gênero, o francês Alexandre Aja, que já demonstrou sua identificação com os filmes de gênero nos longas Alta Tensão (2003), a refilmagem Viagem Maldita (2006), o remake Piranha (2010) e Predadores Assassinos (2019), aquele dos crocodilos que invadem uma casa inundada por uma enchente, cuja sequência está em produção, mais uma vez com direção de Aja.


O núcleo narrativo de Não Solte! fica limitado aos arredores de uma casa isolada em meio a uma densa floresta, ou pelo menos, até aonde a corda esticada que prende seus moradores pode chegar. A explicação para esta condição inusitada é o grande mistério da história. Na casa reside uma família formada por uma mãe e dois filhos gêmeos pré-adolescentes, órfãos de pai. Segundo um ritual pagão proferido pela mãe, todos eles só podem sair de casa se estiverem amarrados por uma corda que os liga diretamente com a moradia, construída com madeira de origem sagrada. A crença é de que desta forma estariam protegidos dos espíritos e entidades sobrenaturais que vivem na floresta e rondam ameaçadoramente a casa, sem, no entanto, invadi-la, porque aquele ambiente familiar seria um refúgio seguro. 

Com esta premissa a primeira referência que nos vem à mente é o conto de fadas “João e Maria”, celebrado na obra dos irmãos Grimm. Neste clássico infantil os dois irmãos demarcam sua trilha segura de volta para casa com pedrinhas e migalhas de pão, assim escapando da morte. A analogia entre as duas histórias é totalmente justificável, ainda que caminhem por abordagens e desfechos completamente distintos. Enquanto a fábula de “João e Maria” é uma historinha de fundo moral para fazer as crianças dormirem, o filme Não Solte! se configura como um sombrio conto infantil de terror. 


A casa como elemento simbólico de segurança é muito presente no conceito de Não Solte!. Outra analogia que o filme parece propor é a ideia de que as cordas que garantem a vida dos personagens sejam entendidas como cordões umbilicais não seccionados, que asseguram a garantia da vida antes do nascimento. No caso específico aqui, o que poderíamos definir como “nascimento” seria a plena compreensão dos fatos que revela e desperta a consciência. Romper as cordas (cortar o cordão umbilical), resultaria, portanto, no processo final de libertação, física e psicológica, da influência da mãe. Neste aspecto o filme de Alexandre Aja peca por ser tão literal e óbvio em suas metáforas. Na verdade, não há um problema em si com as analogias, pois contém um valor narrativo interessante. O ponto que fragiliza o resultado é a ausência de uma complexidade na apresentação destes elementos. Eles apenas estão lá, em cena, um tanto gratuitos. Meros artifícios estéticos sem a devida reflexão crítica que as justifique no contexto geral. 

Apesar da forte presença da matriarca zelosa interpretada por Halle Berry, a história se desenvolve sob a perspectiva dos filhos. O olhar deles, bem como da sua limitada compreensão dos fatos, conduz nosso mergulho naquele universo de crenças e mitos. O medo da morte é real. As ameaças seriam também? Deste impasse se constrói o suspense psicológico no qual Não Solte! se transforma em seus dois atos finais. Na condição de espectadores somos conduzidos para um determinado destino até que lá pelas tantas as dúvidas começam a nos sobressaltar. Será isso mesmo? Há então uma mudança de percepção sobre tudo que assistimos. Reconsideramos parcialmente os fatos apresentados e colocamos a narrativa em outra rota. Quando achamos que as peças todas foram rearranjadas em seu devido lugar, novas ocorrências voltam a desordenar o conforto da plena compreensão do todo. 


Não Solte!, que inicia como um filme de terror raiz, aos poucos se transforma em um suspense psicológico de pouca inspiração, frustrando todas as boas expectativas criadas por descontinuar toda a alegoria construída com algum êxito. Uma análise sobre o poder da crença é um dos ótimos temas desperdiçados pelo realizador Alexandre Aja, que revela uma indecisão sobre exatamente qual projeto desejava fazer. Para fãs ou detratores, Não Solte! é um possível filme de M. Night Shyamalan não realizado por Shyamalan. Para o bem ou para o mal.

Assista ao trailer: Não Solte!


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Terrifier 3: a volta do palhaço assassino

 

O Halloween é o Natal para os filmes de terror. Data tradicionalmente celebrada em países de língua inglesa, particularmente nos EUA, o chamado Dia das Bruxas, comemorado em 31 de outubro, está cada vez mais forte e incorporado na realidade cotidiana dos brasileiros. Inicialmente comemorado no Brasil apenas nas turmas dos cursinhos de Inglês, pouco a pouco o Halloween virou uma data popular e obrigatória na mídia, nas escolas, no comércio e nas festas temáticas. O cinema não poderia ficar de fora deste forte apelo de consumo. O mês de outubro está se firmando como o mês de preferência para o lançamento dos filmes de terror e horror. 

Após uma temporada de muitos lançamentos no gênero, com filmes como A Última Profecia, Maxxxine, Entrevista com o Demônio, Longlegs, Não Fale o Mal, Os Fantasmas Ainda se Divertem, Infestação e Sorria 2, dentre outros, o mês mais assustador do ano fecha com o lançamento de mais um exemplar, justamente no dia 31, dia do Halloween. 

Chega às telas Terrifier 3 que traz de volta a figura apavorante do palhaço serial killer em sua saga de assassinatos cruéis. Umas das figuras mais icônicas dos filmes de horror da atualidade, o palhaço Art é protagonista de algumas das sequências mais sanguinárias já vistas no cinema nos últimos anos. Depois de barbarizar nos dois filmes anteriores o palhaço Art retorna ainda mais insano e sarcástico para barbarizar suas vítimas e apavorar o público com suas sessões de violência e tortura.


Mais uma vez com direção de Damien Leone (criador original do personagem e da série) Terrifier 3 é uma sequência direta dos acontecimentos do segundo filme da franquia. Desta vez Art volta para assombrar mais uma vez suas vítimas preferenciais, os irmãos Sienna e Jonathan, sobreviventes do massacre anterior. Enquanto lutavam para reconstruir suas vidas após a tragédia, cinco anos depois os irmãos voltam a ser perseguidos, justamente quando achavam que o passado havia ficado para trás. O vilão assassino é o mesmo, as vítimas também. Mas a época do ano para os acontecimentos é outra. Nos dois primeiros filmes os ataques do palhaço Art aconteciam na noite de Halloween. Agora, a data escolhida é a noite de Natal, com Art incorporando a sinistra figura de um sádico e assustador Papai Noel.

Há um mito, utilizado como ferramenta de marketing e divulgação, de que houve desmaios e pessoas em choque quando o filme anterior foi exibido nos cinemas dos Estados Unidos. Verdade ou fake, o fato é que a notícia viralizou à época, em 2022, e contribui decisivamente para anabolizar as bilheterias e engordar a receita do filme. Inegavelmente há sequências impactantes e angustiantes em todos os filmes da série, bem acima da violência explícita que se vê normalmente nas produções que almejam grandes públicos, com lançamento em salas de cinema de shopping center. Neste quesito a franquia Terrifier certamente subiu a régua e o público tem correspondido nas bilheterias.


De modo geral, e de maneira particular neste Terrifier 3, os filmes da série avançam até os limites da comédia e da sátira, sem, no entanto, se assumir plenamente como tal. Flerta perigosamente no tênue fio da navalha com o risco de ser considerado um irmão gêmeo dos filmes da franquia Todo Mundo em Pânico, este sim uma hilária comédia de terror. Em Terrifier a parte do humor fica limitada apenas à figura do palhaço Art, um personagem pervertido e debochado ao mesmo tempo. Ele não se expressa pela voz, sequer faz ruídos. É um clown, um bobo da corte, um desmistificador do riso, movido por ódio sanguinário, sem empatia alguma pelas vítimas. 

No geral Terrifier 3 mantém o bom padrão de produção dos filmes anteriores. Possui uma fotografia elaborada, com cores saturadas e contrastadas, o que denota alguma preocupação estética. Talvez como um artifício visual para contrabalancear com as apavorantes sequências de terror gráfico explícito dos corpos dilacerados. Outro ponto a destacar em Terrifier 3 é o mergulho cada vez mais complexo nas origens do Mal encarnado pelo palhaço serial killer. A cada novo filme da série mais e mais elementos são acrescentados para compor a compreensão da origem da “maldição” ou da demência de Art.



Terrifier 3 avança algumas casinhas também no nível da violência e brutalidade dos assassinatos e sequências de terror. Definitivamente é para estômagos fortes. Portanto, parece claro que o público deve estar ciente do que vai encontrar – e vivenciar – ao entrar na sala de cinema para encarar mais uma “piada mortal” do palhaço assassino. Como diria aquele velho filme de terror dos anos 80: pague para entrar, reze para sair.

Assista ao trailer: Terrifier 3


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Sorria 2: o horror que ri por último

 

Lançado em 2022, o thriller de horror Sorria foi uma das boas surpresas da temporada no gênero que costuma repetir fórmulas, sem grandes novidades. Encontrou ressonância entre o público, que garantiu boas bilheterias em todo o mundo, e também junto à crítica, merecendo de modo geral resenhas positivas. Por ser aquele um ano ainda marcado pelos efeitos da quarentena pandêmica, o filme dirigido por Parker Finn foi considerado por muita gente uma analogia ao pânico vivido naquele momento pela ameaça de contaminação da Covid. A relação, neste caso, ainda que possível, foi meramente incidental e involuntária, pois o conceito do longa-metragem é uma expansão do tema já desenvolvido em 2019 (portanto, anterior à pandemia mundial) no curta-metragem de 11 minutos Laura Hasn’t Slept, (“Laura não dormiu”) do próprio Parker Finn, lançado apenas no fatídico ano de 2020, no qual o primeiro Sorria foi inspirado.

Para evitar uma semelhança com a ideia central de A Hora do Pesadelo, onde o vilão Freddy Kruger surge somente durante os sonhos, a proposta original que deu origem à Sorria foi alterada. Desta vez o Mal surge em alucinações e delírios despertos, não dependendo dos sonhos dos infectados pela maldição apresentada no primeiro filme. O sinal da contaminação, como já sabemos, está na cara: um largo, assustador e inusitado sorriso estampado na face.


Há uma curiosa e esperta ligação simbólica que “contamina” todos os filmes. A personagem central do curta-metragem reaparece no primeiro longa-metragem como a paciente zero que se consulta com a doutora protagonista. Para dar continuidade na saga, um dos personagens finais, testemunha da maldição no primeiro filme, ressurge desta vez no impactante prólogo que abre este Sorria 2 (Smile 2, 2024), ainda sob a direção de Parker Finn.

A “contaminação”, vale relembrar para os desavisados, ocorre quando a vítima é testemunha do suicídio de alguém (já contaminado). Após a morte consumada o “Mal” passa a habitar o novo corpo, como um parasita que invade um hospedeiro. A partir de então a nova vítima contaminada passa a ter alucinações, enxergando sorrisos macabros em rostos de familiares ou conhecidos, até que, em um delírio extremo de loucura, acaba cometendo suicídio, em frente a alguém que passa então a ser o novo hospedeiro da maldição de origem sobrenatural.


Em Sorria 2 a vítima da vez é a cantora pop Skye Riley (a ótima Naomi Scott), que está retomando a carreira após um trágico acidente ocorrido um ano atrás. Ao testemunhar o pavoroso suicídio de um fornecedor de drogas, Skye incorpora a “entidade maligna” e passa a viver momentos perturbadores, com alucinações e delírios. Sem distinguir o que é real do que é perturbação mental, a jovem cantora enfrenta seus fantasmas internos em busca de respostas antes de chegar ao limite da insanidade e consequente morte.

A pressão da fama, os compromissos de agenda e a constante necessidade de superar limites no universo competitivo do mundo artístico já são razões suficientes para exigir o máximo da saúde física e mental de Skye, ainda em recuperação do acidente sofrido. Os primeiros sinais da manifestação do Mal que tomou conta de seu corpo inicialmente foram atribuídos às exigências estressantes da sua atividade profissional. Mas logo a coisas fogem do controle. Há algo mais profundo e perturbador tomando o controle da sua vida.


Sorria 2 faz uma mistura bem temperada que reúne terror, gore, suspense psicológico e slasher, transitando por todos os estilos com a habilidade reconhecida do realizador Parker Finn. Ainda assim, o filme por vezes comete o pecado da utilização pouco inspirada da técnica do jump scare (o famoso susto repentino), um truque um tanto clichê que costuma ser uma cilada quando utilizado em demasia ou de forma gratuita. Aqui ficamos no limite do tolerável para uma produção que demonstra uma clara intenção de buscar renovação do gênero com a inserção de elementos psicológicos.

O filme apresenta situações e momentos realmente perturbadores na espiral de loucura, que transforma a vida de Skye em uma jornada rumo à insanidade suicida. Os conflitos interiores manifestados pela protagonista conduzem a narrativa para uma abordagem de temas complexos como traumas, culpas e vivência do luto, por um passado que ainda assombra seu presente.


Contribui decisivamente para a verossimilhança deste sombrio mergulho vertiginoso rumo à mais completa alucinação o desempenho realmente diferenciado da atriz protagonista, Naomi Scott. Sua entrega ao papel é intensa, transmitindo com vigor toda a angústia da cantora pop assombrada por delírios persecutórios. De origem britânica, Naomi é conhecida pelo papel da princesa Jasmine em Aladdin, a versão live-action dirigida por Guy Ritchie em 2019, protagonizada por Will Smith no papel-título. Além de mostrar sua capacidade de atuação, em Sorria 2 a atriz também teve oportunidade de exibir seu talento no canto e na dança em alguns números musicais ao longo da trama (não, o filme não é musical!), cujo estilo das canções e interpretação lembram a performance teatral de Lady Gaga.


Frequentemente nos deparamos nas redes sociais com memes e listagens que apontam sequências de filmes que superam o original. O Exterminador do Futuro 2 e Star Wars – O Império Contra-Ataca são dois exemplos sempre lembrados. Pois então, no gênero horror surgiu um novo postulante a este título. Sorria 2 supera o Sorria original, que, a propósito, é um bom filme. Nesta continuação foi expandido o conceito original introduzindo novas camadas, sem a necessidade de dar explicações sobre a origem do fenômeno. A experiência aterradora da vítima é a grande matéria prima trabalhada por Parker Finn com apuro técnico e visual caprichado. Sorria 2 é um horror que dialoga com a inteligência e a sensibilidade do público, que sai da sala de exibição com um sorriso no rosto. Não por estarem “contaminados”, mas pelo prazer de assistir um filme de horror que não deixa ninguém indiferente.  

Assista ao trailer: Sorria 2


Jorge Ghiorzi

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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Super/Man – A História de Christopher Reeve: retrato de um herói

Uma ironia dolorosa resume a vida de Christopher Reeve. O ator que construiu o mito em torno de si ao interpretar um super-herói com poderes praticamente ilimitados, dentre eles a capacidade de voar, teve seu destino final em vida restrito e imobilizado em uma cadeira de rodas, com limitadíssima capacidade motora. O homem de aço do cinema encontrou sua kriptonita na vida real ao sofrer a trágica queda de um cavalo em 1995.

Vinte anos após sua morte a trajetória do ator é retratada no emocionante e sensível documentário Super/Man: A História de Christopher Reeve (Super/Man: The Christopher Reeve Story, 2024), uma realização da dupla Ian Bonhôte e Peter Ettedgui que teve sua primeira exibição mundial no Sundance Film Festival, em janeiro deste ano. Após a repercussão extremamente positiva na audiência, a produção atraiu a atenção dos grandes players do mercado. Os direitos de distribuição foram adquiridos pelas gigantes Warner, DC Studios, HBO e CNN Films, o que garante uma grande circulação e visibilidade da obra.


O filme faz uma ampla crônica da carreira artística de Christopher Reeve, desde os primeiros tempos de ator iniciante, na escola de teatro, passando por sua ascensão à galeria dos mais renomados atores de Hollywood em sua época, até seus últimos momentos de vida, em 2004. Dentro desta trajetória destacam-se os dois momentos mais significativos da sua vida pública: a escolha para interpretar o disputadíssimo papel de Superman, no filme de 1978, e o terrível acidente que o deixou tetraplégico até o fim da vida. Estes dois episódios formam o eixo narrativo sob o qual se constrói o documentário.


O roteiro de Super/Man é constituído de imagens de arquivo, registros de vídeos domésticos, áudios do próprio ator e entrevistas com familiares e amigos mais íntimos. Este material é utilizado pelos realizadores de maneira não cronológica. A edição propõe saltos narrativos que levam o espectador alternativamente para trás e para a frente, em termos de linha do tempo da vida de Christopher Reeve. Esta técnica proporciona um dinamismo que imprime um ritmo que distancia o documentário de um tradicional registro jornalístico.


O ambiente familiar do ator, antes e após o acidente, também é bastante explorado em Super/Man, com participação dos filhos, já adultos, em depoimentos emocionados e tocantes, relembrando a figura do pai com o qual só conviveram quando ainda eram crianças. As duas companheiras que Christopher Reeve teve também registram sua presença, em espacial Dana Reeve, com quem estava casado à época do acidente, e que ficou a seu lado até os últimos dias. Juntos criaram a “Fundação Christopher & Dana Reeve”, que atua no estímulo à pesquisa científica visando a cura ou à melhoria da qualidade de vida das pessoas com paralisia. Atualmente os filhos estão à frente na gestão da Fundação, ainda ativa e influente.


As relações de Christopher Reeve com outros artistas, diretores e produtores de Hollywood revelam um ator com livre trânsito e muita consideração por parte de seus colegas de trabalho. Sabe-se que este tipo de amizade profissional costuma ser superficial e motivada por interesses momentâneos. No entanto, uma amizade muito intensa e verdadeira surgiu entre Christopher Reeve e Robin Williams. Ambos foram colegas de apartamento nos tempos das vacas magras, quando tentavam uma oportunidade em grandes produções. A ascensão dos dois foi simultânea e fortaleceu um poderoso elo de cumplicidade. Super/Man abre espaço para contar um pouco desta amizade verdadeira, que inclusive se intensificou após o acidente. Robin Williams, que nunca abandonou Christopher Reeve, esteve sempre a seu lado, tentando levar alegria e leveza à vida do ator quando a escuridão mostrava sua assustadora face. Tragicamente, exatos dez anos após a morte do amigo, o próprio Robin Williams deu fim à sua vida. O documentário não trata diretamente deste tema, embora faça uma breve e contundente referência em uma fala da atriz Susan Sarandon.


Super/Man não foge das armadilhas sentimentais que filmes deste tipo enfrentam. Há que se convir, no entanto, que não haveria de ser diferente, dada a natureza da personagem retratada e seu devastador fim de carreira e morte. Os realizadores evitam a manipulação fácil das emoções, ainda que seja inevitável o apelo às lágrimas em determinadas passagens, como os discursos de despedida de Robin Williams e Dana Reeves. O paralelo entre o homem e o mito, o ator e o super-herói, estão constantemente presentes na abordagem, muito bem sintetizado no jogo de palavras criado para o título original: Super/Man. O documentário é um registro necessário, honesto e sincero, que confirma que os grandes confrontos não ocorrem apenas na ficção dos duelos entre super-heróis e vilões dos quadrinhos. Grandes combates também são travados vida real, na luta eterna entre o ser humano e a inevitabilidade do seu fim. Como homem e como super-herói, Christopher Reeve foi gigante em todas suas batalhas.

Assista ao trailer: Super/Man – A História de Christopher Reeve

 

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Robô Selvagem: mãe natureza


A nova animação da DreamWorks reúne dois temas que estão na ordem do dia: tecnologia e meio ambiente. Robô Selvagem (The Wild Robot, 2024) é uma fábula que consegue a proeza de dialogar simultaneamente com o intocável universo da vida selvagem e as possibilidades ilimitadas da utilização da Inteligência Artificial na evolução da civilização humana sobre o planeta. O resultado é uma das mais emocionantes e tocantes animações dos últimos anos, superando com larga vantagem a animação da Disney Pixar lançada em 2008, WALL-E, com a qual possui alguma semelhança temática. 

A história inicia com um acidente que joga uma robô – a unidade ROZZUM 7134, ou apenas “Roz” – em uma remota e desabitada ilha. Naquele ambiente desconhecido a unidade robótica necessita se adaptar e aprender as regras de sobrevivência, enquanto aguarda por resgate. Neste processo Roz descobre os mecanismos que regem a flora e a fauna local. Aos poucos desenvolve uma relação de amizade e cumplicidade com Bico-Vivo, um filhotinho de ganso órfão que precisa aprender a voar, e Astuto, uma solitária e ardilosa raposa.


O elemento humano é um sujeito oculto em Robô Selvagem, pois não aparece objetivamente em cena. Apenas são percebidos e identificáveis, de maneira indireta, os reflexos e as consequências da sua existência. A Natureza profunda, intocada pelo “homem”, inadvertidamente se transfigura pela presença surpresa de um robô de alta tecnologia que literalmente cai do céu para romper o equilíbrio do ambiente de um ecossistema inexplorado e virgem (sob o ponto de vista humano). Uma subversão da ordem natural das coisas é a consequência imediata desta invasão involuntária. Daí surge uma história inspiradora com forte componente emocional que transmite lições de vida, civilização, família e empatia.

Os primeiros momentos de Robô Selvagem são vacilantes, parecem um tanto rotineiros e a animação não diz exatamente a que veio. Funcionam essencialmente para estabelecer o contexto e apresentar os “personagens” principais. No entanto, logo a animação encontra seu eixo narrativo e conquista definitivamente o interesse do espectador. Passamos a acompanhar com interesse genuíno o destino do improvável trio de protagonistas: a robô (mãe), o bebê ganso e a raposa.



A animação, dirigida por Chris Sanders (o mesmo de Lilo & Stitch e Como Treinar seu Dragão), faz uma espécie releitura do conto de fadas “O Patinho Feio” de Hans Christian Andersen, atualizado para temas como inclusão, representatividade de papeis e liberdade para exercer o direito de ser diferente em meio a hegemonia social, no caso específico do filme, em meio ao reino animal. O foco desta vez não está na figura do filhote em busca de acolhimento, mas sim na figura da robô que encarna uma mítica “mãe coragem”, que assume o papel de provedora e protetora. Com estes elementos o roteiro desenvolve uma emocionante jornada de autoconhecimento, tolerância e sobrevivência dos integrantes de uma família disfuncional, reunida por circunstâncias aleatórias em ambiente hostil. 

O gregarismo dos animais é, sob certa ótica, colocado em risco pela presença intrusa de um elemento externo que desiquilibra a harmonia ancestral do ambiente. Pois é justamente aí que ocorre o grande fato transformador, exemplar como simbologia, que promove uma necessidade colaborativa entre as espécies, subvertendo o instinto natural de preservação pela convivência entre os iguais. A mente cibernética da robô Roz não estava programada para interagir e muito menos se ocupar dos problemas das diversas espécies de animais que encontrou naquele ambiente. Ainda assim, sua inteligência superior foi tocada de alguma maneira pelos problemas de sobrevivência e os ciclos da vida aos quais os seres vivos são submetidos. Neste ponto a inteligência artificial foi substituída pela inteligência emocional, que despertou sentimentos que a máquina desconhecia até então.


Temas atuais como a preservação da natureza e a sustentação da vida estão presentes como forças vitais que sustentam a narrativa. O componente emocional, presente ao longo de todo o filme, aliado ao carisma das personagens centrais, cativam o espectador do início ao fim. Robô Selvagem é uma diversão exuberante para todas as idades. O resultado é uma experiência de cores e movimentos que proporciona uma jornada divertida, sensível e criativa. Robô Selvagem chegou para rivalizar com Divertida Mente 2 como a melhor animação de 2024.

Assista ao trailer: Robô Selvagem


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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