terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Agente Secreto: perna cabeluda, gato de duas caras e tubarão

 

Em meio a um cenário de renovado prestígio para o cinema nacional, O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, surge não como um simples sucesso, mas como um fenômeno cultural de repercussão internacional. A trilha de seu impacto é pavimentada por aclamação crítica, premiações em festivais, destaque à visão autoral do diretor e à performance do protagonista, Wagner Moura.

Grande parte do êxito de O Agente Secreto reside na habilidade de Kleber Mendonça em conduzir, com notável sensibilidade, uma trama de múltiplas camadas. O diretor mantém um ritmo preciso sem abrir mão de um olhar amplo e ambicioso sobre a realidade brasileira de cinquenta anos atrás, evitando qualquer tom didático ou simplificação. É nesse equilíbrio que o filme se torna ardiloso, por dialogar com um passado que ecoa de forma perturbadora no presente. Mais do que um resgate da memória coletiva, a obra se projeta como um alerta sobre o destino de uma nação que teima em se perder pelos mesmos (des)caminhos.

Recife, 1977. Na esteira de um passado turbulento que insiste em não ficar para trás, Marcelo (Wagner Moura), um professor especializado em tecnologia, deixa São Paulo com a esperança de encontrar um recomeço. Sua chegada à capital pernambucana coincide com as comemorações do Carnaval. Aquela aparente euforia logo se revela enganosa. Por trás da alegria se esconde um caos subterrâneo de violência e repressão. Após se instalar em uma espécie de “casa de refugiados”, Marcelo passa a ser alvo de uma dupla de assassinos de aluguel. A cidade que prometia ser um porto seguro revela-se, na verdade, uma armadilha da qual ele não consegue escapar.

A trama de O Agente Secreto não se constrói sobre grandes ações, mas sobre a tensão silenciosa da vigilância, os gestos mínimos de resistência e a paisagem urbana do Recife (com destaque para o Cine São Luiz, conhecido nacionalmente após Retratos Fantasmas), que se torna um personagem simultaneamente solar, sombrio e onipresente. O filme é, no fundo, um estudo sobre a corrosão da alma em um país onde a linha entre o público e o privado foi violentamente apagada.

O filme se configura, assim, como um amplo mosaico do Brasil dos anos 1970. Um país multicolorido, pleno de sons, sabores e alegria na superfície, mas que sustenta um simulacro de felicidade para encobrir um universo oculto de corrupção, violência e autoritarismo. O filme encontra seu eixo justamente nesse contraste entre animação e repressão, expondo as fissuras de um tempo em que a aparência festiva mascarava a tensão política e moral do país.

Com uma narrativa que subverte a cronologia tradicional, O Agente Secreto acaba se tornando vários filmes em um só, mesclando doses de humor, momentos de drama, situações de suspense, elementos de filme de crime e registros documentais de sua época. O caráter contraditório da realidade brasileira fica explícito pelas pitadas de nonsense e elementos bizarros como uma perna cabeluda, um gato de duas caras e um tubarão. Em suma, um suco de Brasil: intenso, caótico e, de algum modo, fascinante.

Em O Agente Secreto, Kleber Mendonça constrói um retrato deliberadamente alegórico de um país dilacerado. Seus personagens, transitando entre o real e o caricatural, espelham o delírio de uma sociedade sob o jugo da vigilância. Essa atmosfera de descompasso é intensificada por uma mise-en-scène que emprega enquadramentos instáveis, cortes abruptos e uma fotografia de cores saturadas e sombras densas, forjando uma sensação de permanente inquietação.

A essa visão fragmentada soma-se uma estética sonora igualmente irônica e calculada. A trilha, os efeitos e os silêncios são manipulados para acentuar o contraste entre a fachada alegre do cotidiano e a tensão que consome por dentro. É nesse universo à beira do absurdo que reside a chave do filme. Ao mesclar o grotesco e o cotidiano, o realizador explora o surreal como ferramenta narrativa, criando uma experiência em que o espectador oscila sensorialmente. O resultado é uma narrativa que transforma o caos político dos anos 70 em um exercício de linguagem cinematográfica. Sob a aparência de uma trama de suspense com enredo policial, O Agente Secreto funde com naturalidade a moralidade e a paranoia do Brasil.

Assista ao trailer: O Agente Secreto


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Bom Menino: pelos olhos do medo

 

Imagine um filme de horror e suspense onde tudo que vemos e sentimos é filtrado pela percepção de um cão. Esta é a premissa ousada e genial de Bom Menino (Good Boy, 2025), dirigido por Ben Leonberg. O filme não apenas utiliza um cachorro como protagonista, mas mergulha o espectador por completo em sua subjetividade, criando uma experiência de medo única e profundamente cinematográfica.

A trama segue um homem que, após uma tragédia familiar não detalhada, se refugia na antiga casa de sua família, um local carregado de memórias e suspeito de ser, em algum nível, mal-assombrado. Ele não está sozinho, seu fiel cão, Indy, faz companhia. É através dos olhos e ouvidos de Indy que testemunhamos o tutor passar por uma inquietante transformação, possivelmente ligada a uma maldição hereditária, enquanto ambos são expostos a ameaças invisíveis, mas potencialmente fatais.

A opção narrativa de adotar a perspectiva canina tem implicações formais profundas. A câmera permanece quase sempre em ângulo baixo, e os humanos são retratados de forma fragmentada, apenas torsos, mãos, pernas, etc. Seus rostos raramente são vistos por completo, nunca se constituindo como personagens plenos, mas como "objetos de cena" dentro do mundo sensorial de Indy. A reconhecida sensibilidade canina é traduzida com maestria, nos conduzindo a dimensões sonoras e visuais inacessíveis à percepção humana. Nesse universo, silêncios se tornam eloquentes e ruídos se amplificam, construindo uma tensão constante.

Nesse contexto, há algo de brilhante na expressão neutra de Indy. Ela funciona como uma tela em branco para as projeções do espectador, um princípio que remete diretamente ao famoso Efeito Kuleshov. O cineasta russo Lev Kuleshov demonstrou, nos anos 1920, que uma mesma expressão facial impassível adquire significados diferentes conforme a imagem que a precede ou sucede. Em Bom Menino, o olhar do cão não comunica por si só, mas pelo contexto criado pela montagem. Cada corte, cada novo enquadramento projeta sobre ele uma emoção: medo, alerta, curiosidade. O significado não está intrinsicamente em seus olhos, mas naquilo que o espectador, guiado pelo filme, decide ver neles. Ele nada expressa, mas tudo reflete.

A magia do filme é que essa "atuação" convincente é alcançada sem a dependência de truques digitais, já que a produção é de baixíssimo orçamento. O segredo reside na paciência do realizador e no trabalho magistral de edição. Não é surpresa, então, descobrir que Indy é, na vida real, o cachorro do próprio roteirista e diretor, Ben Leonberg. Essa sintonia real entre dono e animal explica parte do sucesso, com o restante da magia sendo conquistado na sala de corte, onde os fragmentos de comportamento canino são costurados para criar uma performance narrativa.

Apesar da engenhosidade de sua premissa e de sua curta duração (pouco mais de 70 minutos), é inegável que, em certo ponto, as situações de tensão começam a se tornar um pouco repetitivas, sem conduzir a trama para frente com a agilidade que se poderia esperar. No entanto, este é um tropeço menor diante da realização geral.

Por fim, para além de seus méritos como filme de terror, Bom Menino reforça de maneira poderosa e comovente a conexão única entre cães e seres humanos. O filme nos lembra que, por vezes, a lealdade mais pura e a percepção mais aguçada do perigo vêm de uma criatura que, embora não fale nossa língua, nos entende de uma forma que talvez nós mesmos não sejamos capazes. É um testemunho arrepiante e belo do vínculo que desafia até mesmo as sombras mais antigas e assustadoras.

Assista ao trailer: Bom Menino


Jorge Ghiorzi

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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Depois da Caçada: a fragilidade das máscaras morais

 

O mais recente filme do prolífico e contundente Luca Guadagnino, Depois da Caçada (After the hunt, 2025), traz todas as marcas reconhecíveis de sua filmografia: desejo reprimido, moralidade flexível, rebeldia criativa e um certo inconformismo iconoclasta. Ainda assim, é um trabalho que se distancia emocionalmente de obras anteriores, como Rivais, Queer e o subestimado Até os Ossos. Aqui, o diretor parece interessado menos em como amamos e mais em como pensamos sobre o amor, o poder e o julgamento. Depois da Caçada é um filme cerebral, provocativo e, por vezes, deliberadamente desconfortável. 

A história gira em torno de Alma (Julia Roberts), professora de filosofia em Yale, cuja vida pessoal e profissional começam a desmoronar após uma série de pequenas fraturas éticas e afetivas. Casada com Frederik (Michael Stuhlbarg), um intelectual espirituoso que aceita com humor o fato de amar mais do que é amado, Alma atrai o interesse de Hank (Andrew Garfield), colega de departamento e espécie de rebelde acadêmico, além da admiração fervorosa de Maggie (Ayo Edebiri), sua aluna de doutorado. Essas relações, que se iniciam como trocas intelectuais e afetivas, se tornam o epicentro de um jogo de poder que expõe a fragilidade das máscaras morais que sustentam o meio universitário.


Guadagnino transforma esse microcosmo acadêmico num campo de batalha de ideias e ressentimentos. O campus, com seus corredores frios e salas iluminadas por luz difusa, se configura como um cenário quase clínico, onde as emoções são dissecadas com precisão cirúrgica. O filme oscila entre a sátira e o drama psicológico, mostrando personagens que confundem retórica com ética e que se protegem atrás de discursos sofisticados, enquanto suas vidas pessoais se desintegram.

É revigorante ver um filme de Hollywood voltado a adultos, que aborda com seriedade temas como feminismo, cultura do cancelamento, política de identidade e diferença geracional. Mas “Depois da Caçada” é, em muitos momentos, mais admirável do que envolvente. Guadagnino parece tão interessado em discutir as contradições de nosso tempo que esquece de nos fazer sentir o impacto humano dessas contradições. Seu filme quer ser uma radiografia moral do presente, mas por vezes soa como uma tese filmada. Brilhante, provocante, porém emocionalmente árida.


Julia Roberts, no entanto, sustenta todo este peso com uma presença magnética. Ela está em quase todos os 139 minutos, e sua performance é o eixo em torno do qual o caos gira. É um tour de force, daqueles que costumam render indicações a prêmios, e, ainda que o roteiro lhe ofereça mais ideias do que emoções, Roberts encontra humanidade até nas contradições mais duras de Alma.


Com ecos de um ceticismo sofisticado à la Woody Allen, mas sem o alívio da comédia, Depois da Caçada é um filme que pensa demais e sente de menos. É cinema de conceito, não de catarse. Admirável na construção, mas frustrante na entrega. Uma experiência que nos desafia, mas nos toca com pouca paixão.

Assista ao trailer: Depois da Caçada


Jorge Ghiorzi

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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Batman Eternamente: extravagância neon revisitada



Celebrando três décadas desde o seu lançamento, Batman Eternamente (Batman Forever), dirigido por Joel Schumacher, retorna às telas de cinema como um relançamento que mexe com nossas memórias. Não como uma joia esquecida, mas como um artefato peculiar de uma era audaciosa, por vezes desastrosa, do cinema de super-herói. O filme é, do primeiro ao último minuto, uma extravagância desmedida, um festival de exageros que beira o inacreditável. O tempo, longe de tê-lo redimido, apenas confirmou o que a crítica e o público já sabiam em 1995, pois trata-se de um equívoco criativo de proporções monumentais.

A tênue trama serve meramente como fio condutor para uma sucessão de cenas caóticas. O Batman (Val Kilmer) precisa enfrentar uma dupla de vilões: Duas-Caras (Tommy Lee Jones), um ex-promotor público desfigurado e obcecado, e o Charada (Jim Carrey), um gênio da tecnologia que lança enigmas mortais sobre Gotham City. Enquanto isso, o herói se vê atraído pela psiquiatra Dr. Chase Meridian (Nicole Kidman), que está igualmente interessada em estudar a mente do homem por trás da máscara. A narrativa é um mero pretexto para Schumacher mergulhar sua Gotham City em um oceano de luzes neon, roupas de couro e tomadas absurdamente amplas dos músculos do Batman.



É no campo das atuações, porém, que o filme atinge seus picos mais surreais de descontrole. Tommy Lee Jones, um ator de talento inquestionável, interpreta Duas-Caras com uma fúria tão desmedida e caricata que beira a paródia. Ele rosna, grita e espuma pela boca em cada cena, sem uma pitada da nuance trágica que o personagem merece. Jim Carrey, na esteira do sucesso explosivo de O Máskara, leva sua persona hipercinética ao extremo absoluto. Seu Charada é menos um gênio do crime e mais uma versão alucinada do seu personagem cômico Ace Ventura, se contorcendo e tagarelando em um ritmo frenético que cansa mais do que diverte. Juntos, eles formam uma dupla de vilões que não ameaça, mas simplesmente oprime os sentidos com seu excesso.


A receptividade na época foi relativamente mista, ainda que seus aspectos negativos tenham sido reconhecidos até pelos mais ferrenhos fãs do personagem. O público e a crítica estavam ainda apegados ao tom sombrio e gótico estabelecido por Tim Burton nos dois primeiros filmes. Batman Eternamente foi recebido como uma guinada brusca e barulhenta em direção ao camp e ao comercialismo puro. A saída de Burton e de Michael Keaton foi sentida profundamente, e a escolha de Joel Schumacher, cuja filmografia (Os Garotos Perdidos, Um Dia de Fúria) não sugeria afinidade com heróis mascarados, mostrou-se um erro crucial. O diretor admitiu ter se inspirado principalmente na série de TV dos anos 60, e isso explica tudo. A atmosfera é deliberadamente kitsch, uma celebração do absurdo que ignora completamente a complexidade do homem-morcego.


Reassistir ao filme 30 anos depois provoca um sentimento peculiar. A princípio, a avalanche de más decisões criativas ainda assusta. No entanto, visto através da lente da nostalgia e da condescendência que o tempo concede, Batman Eternamente ganha um charme acidental. Ele se torna um documento de sua época, um produto de estúdio desesperado para ser pop e vender brinquedos. É impossível não sentir uma ponta de lamento por Val Kilmer, um ótimo ator preso no meio desse furacão de mau gosto, tentando em vão trazer um pouco de seriedade a um set que mais parecia um circo. Batman Eternamente não é um bom filme, mas três décadas depois, sua falha catártica e honesta é, de uma forma estranha, mais digna do que os produtos calculados e sem alma que às vezes vemos hoje. É um erro glorioso, e como tal, merece ser lembrado.

Assista ao trailer: Batman Eternamente


Jorge Ghiorzi

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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

30 anos do PREVIEW: pioneira publicação de cinema de Porto Alegre


 

Em setembro de 1995, ano emblemático marcado pelas comemorações do centenário do cinema, foi lançado o primeiro número do Preview, uma publicação mensal dedicada ao universo da sétima arte. As edições eram distribuídas gratuitamente nas salas de cinema de Porto Alegre.

Em um período em que a internet ainda engatinhava e as fontes de informação eram escassas, o Preview se destacou como uma iniciativa pioneira no jornalismo cultural local voltado exclusivamente ao cinema. Com apenas quatro páginas, o informativo trazia notícias sobre lançamentos, curiosidades e matérias sobre os bastidores da indústria cinematográfica. Na época, cinéfilos e demais interessados dependiam quase exclusivamente de publicações impressas para acompanhar novidades e tendências do setor, entre elas as populares revistas Set e Cinemin, que dominavam o mercado editorial nacional nos anos 1990.



Criado e editado pelo jornalista e crítico de cinema Jorge Ghiorzi, o Preview , que a partir do 2º ano passou a se chamar Cine Guia Preview, teve 32 edições mensais entre 1995 e 1998, período que marcou seu primeiro ciclo de existência. Além de informar, a publicação também serviu como ponto de encontro para a comunidade cinéfila da capital gaúcha, antecipando tendências que mais tarde seriam amplificadas pelas redes sociais e pelos portais especializados.


Dez anos após seu encerramento, em 2008, o Cine Guia Preview iniciou um segundo ciclo, desta vez em formato digital. Convertido em newsletter quinzenal, passou a ser distribuído gratuitamente por e-mail a assinantes e teve seu conteúdo disponibilizado também no blog oficial. Com essa transformação, a publicação acompanhou a transição do jornalismo impresso para o ambiente online. Nessa nova fase, foram produzidas 41 edições até 2011, quando a publicação encerrou suas atividades de forma definitiva.

Alguns anos mais tarde, surgiu nas bancas de todo o país uma revista impressa editada por uma grande empresa do mercado nacional que adotou o mesmo nome, Preview, embora não tivesse qualquer relação com a publicação original porto-alegrense lançada em 1995.

Ao completar três décadas de seu surgimento, o Cine Guia Preview permanece como um marco da imprensa cultural do Rio Grande do Sul, lembrado como uma das primeiras iniciativas regionais dedicadas exclusivamente à cobertura de cinema e por ter dado voz e espaço à paixão pelo audiovisual em um período anterior à era digital.


sábado, 9 de agosto de 2025

A Hora do Mal: fábula sombria de inocência e horror


Em um dia comum de aula, 17 crianças desaparecem misteriosamente. Elas se levantam de suas camas, abrem as portas da frente e correm noite adentro, como se obedecessem a um chamado invisível. Todas essas crianças pertencem à mesma turma da terceira série de uma escola primária. Este é o ponto de partida A Hora do Mal (Weapons), sem dúvida, perturbador e irresistivelmente intrigante para os fãs de um bom suspense psicológico. 

Dirigido com ousadia e criatividade por Zach Cregger, o filme transforma sua premissa em um verdadeiro quebra-cabeça narrativo. O roteiro se desenvolve de forma não linear, estruturado em capítulos de aproximadamente 15 minutos, cada um nomeado a partir de um personagem que ocupa o centro, ou a periferia, do mistério. À medida que cada peça é revelada, a trama se torna mais complexa e envolvente, revelando camadas cuidadosamente construídas.


No centro da história está Justine Gandy, interpretada com intensidade e vulnerabilidade por Julia Garner (da série Ozark, e também do elenco do recente Quarteto Fantástico). Professora da turma desaparecida, Justine chega à escola certa manhã e encontra apenas um de seus 18 alunos presente, o tímido Alex, vivido por Cary Christopher. Tanto ela quanto o menino são interrogados pela polícia, assim como o diretor da escola, Marcus (Benedict Wong, de Doutor Estranho), mas as investigações encontram poucas pistas concretas. As imagens das câmeras de segurança das casas das crianças revelam algo ainda mais inquietante: elas não estavam fugindo de algo, mas sim correndo em direção a alguma coisa ou a alguém. Completa o elenco de protagonistas o ator Josh Brolin (de Vingadores: Ultimato, Deadpool 2 e Duna). 

É nesse clima de crescente estranheza que o filme mergulha, mais interessado em construir uma atmosfera desconcertante do que provocar sustos fáceis. A Hora do Mal é, muitas vezes, mais bizarro do que propriamente assustador, o que pode frustrar parte do público acostumado a um terror mais convencional. No entanto, para quem aprecia narrativas ousadas e atmosferas densas, o filme oferece uma experiência hipnótica e inquietante.

A trama avança com uma sensação de inevitabilidade sombria. Forças invisíveis parecem manipular os personagens, levando-os a atos de extrema violência, muitas vezes praticados pelos que aparentam ser os mais inofensivos. Somente no penúltimo capítulo surge um novo personagem que lança uma luz reveladora sobre os eventos, reformulando completamente o entendimento do espectador até então.


O tom do filme, ao mesmo tempo grotesco e tragicômico, evoca ecos do cinema de David Lynch, com sua justaposição de elementos surreais, domésticos e perturbadores. Essa combinação se intensifica em seu trecho final, onde a comédia ácida coexiste com cenas de violência explosiva e visceral, em um clímax construído com habilidade. 

O elenco, comprometido e afinado com o tom singular da produção, sustenta com solidez uma história que poderia facilmente resvalar para o absurdo. Julia Garner, em especial, imprime humanidade e tensão à sua personagem, funcionando como a âncora emocional de uma narrativa cada vez mais fragmentada e alucinante.

Independentemente de como se receba o desfecho, que mistura ironia sombria com um senso de fatalismo cínico, é inegável que A Hora do Mal atinge um feito notável. A narrativa transforma um conto aparentemente simples em uma distorcida história de ninar, onde a inocência é corrompida e os monstros podem muito bem estar dentro de nós.

Assista ao trailer: A Hora do Mal


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 4 de junho de 2025

Bailarina: exército de uma mulher só

Aventura spin-off derivada do universo criado nos filmes da série John Wick, Bailarina (Ballerina, 2025) surge como a contraparte feminina ao assassino de aluguel interpretado por Keanu Reeves. Este é um filme de origem que opera dentro de um contexto narrativo previamente estabelecido, com suas próprias regras e hierarquias.

Com direção de Len Wiseman, cineasta experiente em ação convencional (Anjos da Noite), Bailarina nos apresenta o surgimento de Eve Macarro (Ana de Armas), uma assassina treinada desde criança nas tradições da organização Ruska Roma que sai em busca de vingança pela morte do pai. Ambientado no submundo criminoso dos filmes de John Wick, o filme a coloca contra uma rede de poderosas figuras, repetindo a fórmula de violência estilizada da franquia original, mas com um protagonismo feminino como única novidade digna de nota.

Apesar de operar dentro do universo coeso de John Wick, Bailarina falha em justificar sua própria existência. O filme reproduz mecanicamente as regras do mundo estabelecido (a moeda, o Hotel Continental, a hierarquia de assassinos), mas sem a inventividade narrativa ou visual que tornou a franquia original relevante. A trama é convencional e previsível: uma jornada de vingança linear, repleta de cenas de ação competentes, porém genéricas. Embora essas sequências ecoem à distância o estilo de Chad Stahelski (diretor dos filmes de Keanu Reeves, que aqui tem uma breve participação), faltam nelas o ritmo frenético e a elegância do criador das obras matrizes da franquia. O resultado é um produto que parece feito por encomenda, não por paixão.

Len Wiseman entrega cenas tecnicamente aceitáveis, mas que carecem da ousadia coreográfica que nos acostumamos a ver na franquia John Wick. As lutas, embora bem filmadas, são bastante clichês para o gênero. A falta de identidade visual é flagrante – até a fotografia, que imita o neon noir da franquia-mãe, parece uma versão pouco inspirada.

A atriz Ana de Armas é o grande destaque, trazendo algum carisma e presença física ao papel. No entanto, Eve Macarro é uma protagonista em contradição. Sua "ferocidade de exército de uma mulher só" é diluída por um subplot maternal forçado, uma tentativa desajeitada de humanizá-la. O roteiro ainda insiste em simbolismos pesados (o nome "Eve" como uma alusão bíblica à queda e redenção), mas nenhum deles se traduz em profundidade real. O longa ainda traz ainda no elenco Anjelica Huston, Gabriel Byrne, Lance Reddick, Norman Reedus e Ian McShane.

Bailarina poderia ter explorado novas facetas do universo Wick, como a violência sob uma ótica feminina ou as contradições morais desse mundo, mas opta por ser um cover sem originalidade. Até a promessa do "olhar feminino" se resume a trocar um protagonista masculino por uma mulher que age exatamente como um homem no mesmo contexto. O filme não ousa questionar ou expandir a mitologia; contenta-se em ser uma sombra pálida de suas referências.

Entretenimento passageiro para fãs do gênero, Bailarina é um spin-off que cumpre o mínimo: entrega ação, uma protagonista carismática e fidelidade ao universo original. No entanto, falha como obra autônoma, repetindo fórmulas sem reinventá-las. Assista por conta e risco, mas não espere ser surpreendido.

Assista ao trailer: Bailarina


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Chofer de Praça: um retrato do Brasil profundo

 

Lançada em 1958, a comédia CHOFER DE PRAÇA foi o 9º filme da extensa filmografia do humorista, ator e cantor paulista Amácio Mazzaropi. Esta produção marcou sua estreia como produtor e também a primeira aparição de Geny Prado, atriz que se tornaria sua parceira recorrente em quase todas as obras seguintes.

O filme inicia com a tomada de uma casinha modesta, isolada num meio rural típico do interior brasileiro. A câmera se aproxima da porta da casa. Ela abre e vemos um casal saindo. Ambos carregando malas, claramente demonstrando que estão partindo em viagem. O casal sai de cena, mas a câmera permanece mais alguns segundos no mesmo enquadramento. Então, a seguir surge um cachorro, reproduzindo o mesmo movimento de seus donos ou tutores. Ele sai da casa “carregando” uma pequena mala presa aos dentes. Ele também vai viajar. Nada mais é necessário para que a comédia conquiste o público desde o primeiro instante.

O enredo, seguindo o padrão dos filmes de Mazzaropi, é bastante singelo, sem complexidades maiores, mas sim, com uma habitual lição moral no terceiro ato. Chofer de Praça conta a história de um humilde casal que se muda para a capital de São Paulo com a missão de ajudar o filho mais velho a pagar e concluir a “faculidade” de Medicina. Para ganhar a vida, o pai consegue emprego como chofer de praça dirigindo um carro antigo, barulhento e caindo aos pedaços. Isto passa a ser motivo de piadas e humilhações da vizinhança e dos demais colegas de ofício. O filho, ainda que necessite muito do dinheiro, sente muita vergonha do trabalho do pai.

O filme segue por várias sequências e gags de humor que reforçam este contexto, revelando ao longo da narrativa um subtexto crítico que condena o alpinismo social em detrimento de valores morais. Ainda que trabalhe e reforce estereótipos da humildade rural em oposição a arrogância dos habitantes das zonas urbanas, Chofer de Praça aborda com muita simplicidade, comicidade e sensibilidade as questões de classe que estão constantemente presentes na realidade brasileira.

É inegável o timing de comédia de Amácio Mazzaropi. Apesar de sua origem na tradição da comédia circense, mais caracterizada pelo humor de performance física (da qual Os Trapalhões foram herdeiros), Mazzaropi demonstra seu talento no texto, no mais das vezes minimalista, e no perfeito “tempo de comédia”. Uma frase, um gesto, uma palavra, um resmungo monossilábico, tudo isto rende um humor mais eficiente – e atemporal – do que uma torta na cara ou um “pum do palhaço”. Mazzaropi era dotado deste dom e isto fez dele um dos grandes do nosso cinema.

Infelizmente o prestígio do artista foi se diluindo no decorrer dos anos, particularmente por suas últimas produções dos anos 70 e 80, que contaminaram negativamente a avaliação de toda sua obra. Esta rejeição ou mesmo desconhecimento da sua obra é uma realidade para as novas gerações, para as quais Mazzaropi não passa de um artista menor de uma certa subcultura brasileira. A decadência, em alguma medida, é natural na carreira de qualquer artista. Mal comparando, e respeitando as devidas dimensões, vale lembrar que isto ocorreu também com gênios da comédia como Jacques Tati e Charles Chaplin, apenas para citar dois grandes. Os últimos trabalhos destes artistas também já não demonstravam o brilho criativo de outros tempos. Apesar das oscilações em sua carreira, Mazzaropi não apenas assegurou seu lugar na história do cinema brasileiro, mas também construiu um imaginário popular que resiste como testemunho de uma identidade nacional muitas vezes esquecida.


Chofer de Praça, assim como toda a filmografia de Mazzaropi, permanece não apenas como um registro do humor brasileiro de seu tempo, mas também como um espelho das contradições sociais que, décadas depois, ainda se repetem — prova de que sua obra, longe de ser 'menor', é um retrato atemporal de um país em eterna transformação.

Assista ao trailer: Chofer de Praça

Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 27 de maio de 2025

O Esquema Fenício: a gaiola de ouro de Wes Anderson

 

Autor de um cinema geométrico, matemático e sensorial, Wes Anderson consolida-se como um devoto da simetria, mais rigoroso que Stanley Kubrick, outro cineasta obcecado pelo tema. Seus filmes funcionam como livros para colorir vistos por um olhar obsessivo, nos quais a forma sempre suplanta o discurso. Em O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme, 2025) essa assinatura atinge seu ápice onde cada plano é uma equação resolvida com a precisão de um ourives, mas também com a frieza de um teorema matemático.

Ambientado nos anos 1950, o filme acompanha o magnata europeu Zsa-Zsa Korda (Benício Del Toro), que, após sobreviver a múltiplos atentados, nomeia sua filha (uma freira) como herdeira de seu império. Juntos, embarcam numa jornada repleta de espionagem internacional, traições e dilemas morais entre família e poder. O enredo, no entanto, é mero pretexto para Anderson explorar seu verdadeiro interesse: a arquitetura da narrativa.

O roteiro trata o inesperado como um jogo de RPG de derivações infinitas e Anderson deleita-se em explorar cada possibilidade narrativa. A construção labiríntica exige atenção redobrada, mesclando complexidade estrutural e uma estética deliberadamente delicada. Um equilíbrio que revela seu fascínio pela fragmentação e pelo controle minucioso. É o caos traduzido em precisão visual com cenários exuberantes, ação desenfreada e situações absurdas que coexistem sob uma mesma lente simétrica.

Comparado a Asteroid City, seu filme anterior, aqui Anderson introduz o humor de maneira orgânica (ainda que contida), sem recorrer a grandes efeitos cômicos. Essa leveza descontraída, marca de seus melhores trabalhos, como O Grande Hotel Budapeste, outro filme de espionagem e aventura com humor ácido, serve de contraponto ao formalismo estético, quase como uma homenagem ao tom das aventuras de Tintim, de Hergé. Referências temáticas e visuais à obra do quadrinista ecoam nos planos meticulosamente diagramados e na aura de 'missão impossível' europeia.

Caro leitor, até aqui nos detivemos apenas na parte positiva da história, destacando seus méritos e aspectos criativos, amplamente reconhecidos. O lado menos solar dessa narrativa, porém, é a recorrente repetição de uma fórmula que, com pouca margem de erro, parece estar à beira do esgotamento. Wes Anderson vive um paradoxo em sua obra. O mesmo conjunto de elementos que o consagrou como um cineasta de estilo inconfundível agora o aproxima perigosamente de se tornar um pastiche de si mesmo. O diretor, afinal, está enclausurado em sua própria gaiola de ouro. Seu excesso de simetria e paletas de cores impecáveis, antes veículos de narrativas melancólicas ou satíricas, agora parecem servir apenas à autocitação. Em outros tempos sinônimo de inovação, sua assinatura visual corre o risco de se tornar mera decoração vazia.

Assistir O Esquema Fenício é realmente uma experiência, ainda que não inteiramente prazerosa. De início nos deleitamos com o deslumbramento estético de cores, formas, composições e arte visual. Em determinado momento, na metade do filme, passamos a ficar incomodados pela falta de rumo e propósito de uma história que se perde em digressões vazias sem avançar em um arco narrativo convincente que de fato nos seduza. Por fim, em seu terceiro ato, torcemos para que os minutos voem e o filme, enfim, chegue a um desfecho. Qualquer desfecho, desde que ponha fim à experiência.

Cada novo filme de Wes Anderson parece confirmar uma verdade curiosa: atuar em suas obras é certamente mais divertido que assisti-las. Essa ironia explica os elencos estelares que o cineasta consegue reunir. Em O Esquema Fenício a lista é tão prestigiosa quanto dispersa. Além do já citado protagonista Benicio Del Toro ainda temos em cena, em participações secundárias, mínimas ou secretas, nomes como Michael Cera, William Defoe, Tom Hanks, F. Murray Abraham, Bryan Cranston, Riz Ahmed, Benedict Cumberbatch, Bill Murray, Scarlett Johansson, Jeffrey Wright, Mathieu Amalric e Charlotte Gainsbourg.

É um espetáculo de nomes grandiosos a serviço de um filme que, no final, se revela mais um exercício de estilo do que uma narrativa satisfatória. Diante disso, talvez o verdadeiro divertimento para o espectador esteja em adotar o próprio espírito lúdico do realizador: transformar a experiência numa caça ao tesouro, explorando cada quadro em busca dessas estrelas perdidas no labirinto visual. Wes Anderson permanece um mestre incontestável no seu ofício, mas seu universo meticulosamente construído necessita urgentemente de mais alma e menos esquemas.

Assista ao trailer: O Esquema Fenício

Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


sábado, 24 de maio de 2025

Manas: a irmandade como resistência

 

Longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand, Manas é um filme que mergulha na complexidade da infância roubada e da resistência feminina em um cenário ao mesmo tempo belo e brutal: a Amazônia brasileira. A narrativa acompanha Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem prestes a entrar na adolescência, criada em um ambiente marcado pelo abuso e pela opressão de um pai violento. Seu desejo de escapar desse ciclo de dor a leva a uma jornada de descobertas, onde a solidariedade entre mulheres (mãe, irmã e outras figuras de sua comunidade) se torna sua única âncora de esperança.

Brennand constrói um filme que evita o apelo fácil, optando por uma abordagem mais sugestiva do que explícita. O abuso nunca é mostrado de forma gráfica, mas sua presença é palpável em cada olhar assustado, em cada silêncio tenso, na arquitetura precária da casa sobre palafitas que parece aprisionar suas personagens. A diretora captura a ambiguidade das relações familiares: a mãe que falha em proteger; a irmã mais velha que escapou das amarras de um destino inevitável, e por fim, a própria Marcielle, cuja inocência aos poucos se transforma em uma consciência dolorosa de que a fuga talvez seja sua única salvação.

A performance de Jamilli Correa é o coração do filme. Com uma expressividade rara para sua idade, a atriz transmite a mistura de vulnerabilidade e resiliência de Marcielle, tornando sua jornada profundamente comovente. A câmera a observa de perto, quase como uma cúmplice, reforçando a intimidade da narrativa. A fotografia, por sua vez, contrasta a beleza crua da Amazônia com a asfixia do ambiente doméstico, criando uma metáfora visual para a contradição entre liberdade e aprisionamento.

O título Manas (termo coloquial para "irmãs") não é casual. O filme é, acima de tudo, sobre os laços entre mulheres em um mundo dominado por violência masculina / parental. Cada personagem feminina representa uma resposta diferente à opressão: a submissão, a fuga, a rebeldia ou a sororidade discreta. Brennand não oferece respostas fáceis. A mãe, por exemplo, não é vilã nem heroína, mas vítima de um sistema que a esmaga. A força do filme está justamente em sua nuance, evitando maniqueísmos para mostrar como o abuso é perpetuado e, ao mesmo tempo, como pode (e deve) ser desafiado.

Manas é uma estreia promissora para Brennand, confirmando seu talento para retratar dramas sociais com sensibilidade e primoroso senso estético. A escolha de narrar uma história tão dura através dos olhos de uma criança adiciona uma camada de poesia à crueza do tema, enquanto a direção de arte e a fotografia elevam o filme a um patamar quase onírico. Por opção narrativa da realizadora o filme evita um olhar sensacionalista e manipulador. A ausência de confrontos mais diretos ou de um clímax definido pode, à primeira vista, sugerir que o filme recua. No entanto, é justamente aí que reside sua força. Manas é rigoroso em sua narrativa minimalista, apoiada em silêncios que dilaceram e olhares que suplicam. Sua profundidade está justamente em sua capacidade de apresentar os conflitos com uma simplicidade acachapante.

O filme de Marianna Brennand é uma obra importante, especialmente no contexto do cinema brasileiro contemporâneo, que muitas vezes negligencia histórias do interior sob perspectivas femininas. Premiado no Festival de Veneza, Manas chama atenção não só pela qualidade técnica, mas por sua urgência temática. Não é um filme fácil, por doer no fundo da alma, mas é certamente um daqueles que permanecem na memória e na consciência.

Assista ao trailer: Manas


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Missão: Impossível – O Acerto Final: o fim de uma era?

 

O último capítulo da saga Missão: Impossível é superlativo em suas ambições, não apenas nos riscos físicos e na ação vertiginosa que consolidaram sua marca, mas na ousadia narrativa de fragmentar seu desfecho em duas partes. A confiança absoluta no conceito levou os produtores a uma aposta audaciosa: desdobrar a missão final de Ethan Hunt em dois filmes seriados, estratégia que, em 2023, revelou apenas a primeira metade de um quebra-cabeça repleto de espetáculo. Se Acerto de Contas – Parte 1 apostou em um tom introspectivo, explorando as consequências das escolhas passadas de Hunt, Missão: Impossível - O Acerto Final (Mission: Impossible - The Final Reckoning) redireciona o foco para o espetáculo puro, em detrimento da profundidade. As sequências de ação, meticulosamente coreografadas, reafirmam o compromisso da franquia com o cinema prático, mas a divisão em duas partes levanta uma questão crucial: haveria substância suficiente para justificar a extensão, ou o desfecho sucumbe ao peso de suas próprias expectativas?

O Acerto Final dá continuidade ao cliffhanger explosivo do filme anterior, que deixou Ethan Hunt e a IMF à deriva. Após falharem em interceptar a chave que controla a Entidade (a IA renegada), o mundo mergulha em um caos invisível. Governos não confiam em seus próprios dados, aliados se tornam suspeitos e a ameaça de uma guerra nuclear paira no ar. Gabriel (Esai Morales), operador da IA, surge como um profeta do colapso, enquanto a missão de Hunt se concentra em recuperar o código-fonte capaz de neutralizar a Entidade, escondido em um submarino nuclear russo desaparecido em águas geladas e território disputado.

Se confirmado como o último capítulo, O Acerto Final marca o fim de uma era para uma das franquias de ação mais resilientes e consistentes do cinema contemporâneo. A dupla Acerto de Contas (7º filme) e O Acerto Final (8º filme) funciona como um épico de despedida, elevando a escala da série a patamares quase operísticos. A sensação de conclusão é trabalhada com nostalgia deliberada: desde os créditos iniciais, que revisitam cenas icônicas como a invasão ao cofre da CIA em Missão: Impossível (1996) ou a queda livre em Efeito Fallout (2018), até o resgate de personagens-chave como Luther (Ving Rhames) e Benji (Simon Pegg), cuja química com Hunt evoca décadas de parceria. Até Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), cujo destino ambíguo no filme anterior gerou polêmica, recebe um arco que encerra não apenas sua história, mas um ciclo de sacrifícios e redenção.

A direção de Christopher McQuarrie reforça esse tom de despedida com sequências que ecoam a mitologia da franquia: o trem em alta velocidade remete ao primeiro filme, enquanto os combates corpo a corpo revisitam a brutalidade de Efeito Fallout. Até o vilão Gabriel, com seu fatalismo filosófico, surge como antítese definitiva de Hunt, encapsulando o conflito entre dever e humanidade que sempre permeou a série. Em um momento especialmente simbólico, a sombra de Jim Phelps (Jon Voight) ressurge como um lembrete de que toda a jornada de Hunt começou com uma traição e talvez termine com uma última escolha entre missão e família.

O Acerto Final transcende o blockbuster convencional. Nas entrelinhas, o filme dispara um alerta sobre os perigos da inteligência artificial descontrolada. Tema que ressoa com urgência em nossa era digital. A trama, envolta em conspirações high-tech, reflete as próprias inquietações de Tom Cruise, um crítico ferrenho da desumanização do cinema. Cada cena prática, cada façanha sem dublês, é um manifesto silencioso contra a substituição do real pelo virtual. Enquanto Hunt enfrenta uma IA para salvar o mundo, Cruise trava nos bastidores sua própria batalha pela preservação do cinema como experiência visceral. A franquia mantém sua tradição: sequências de ação espetaculares, com Cruise arriscando-se pessoalmente e um uso comedido de CGI. Em O Acerto Final, a perseguição aérea com aviões bimotores analógicos é um tributo ao cinema de raiz, onde criatividade superava limitações tecnológicas. É um espetáculo que homenageia o passado enquanto desafia os limites do presente.

Missão: Impossível – O Acerto Final é um epílogo digno, ainda que imperfeito. Se por um lado recorre excessivamente a flashbacks e referências nostálgicas, por outro eleva o espetáculo a níveis estratosféricos, equilibrando ação vertiginosa com um olhar melancólico sobre o fim da jornada. O filme encerra com um clima de festa que se despede, mas deixa a porta entreaberta, talvez para novas missões, talvez para um novo capítulo sem Cruise. Seja como for, Ethan Hunt entra para a história como o espião que tornou o impossível uma possibilidade, tanto na tela quanto nos bastidores.

Assista ao trailer: Missão: Impossível – O Acerto Final


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela