quarta-feira, 19 de abril de 2023

A Morte do Demônio – A Ascensão: banho de sangue

 


Quando Sam Raimi surgiu para o mundo com a trilogia Morte do Demônio / Evil Dead, era um criativo cineasta em início de carreira, sem compromissos com a grande indústria, que ainda podia ousar e experimentar, sem fórmulas pré-estabelecidas. Na medida em que conquistava um lugar ao sol em Hollywood, Sam Raimi foi pouco a pouco perdendo o vigor, se acomodando ao modelo industrial. Perdeu parcialmente a autonomia e a marca autoral, na razão inversa do crescimento da conta bancária. Aquela explosão de criatividade do primeiro filme da série, no Brasil batizado como Uma Noite Alucinante (nada mais anos 80 do que este título), foi se perdendo pouco a pouco. 

A inusitada mistura de terror, humor pastelão (do nível de Os Três Patetas) e generosas doses de nonsense, que marcaram fortemente os três filmes originais, jamais se repetiram. Nem na retomada da franquia A Morte do Demônio, de 2013, dirigida pelo uruguaio Fede Alvarez, muito menos com este legítimo gore de 2023, A Morte do Demônio: A Ascensão (Evil Dead Rise), escrito e realizado por Lee Cronin (de The Hole in the Ground), com produção executiva dos criadores originais, Sam Raimi e Bruce Campbell (ator protagonista dos três primeiros filmes). Sai de cena o humor, restando apenas o terror, o livro dos mortos, muito sangue, a motosserra e a marca Evil Dead / A Morte do Demônio.



A mudança é também de cenário. A ação deixa para trás uma isolada cabana nos bosques do Tennessee e se transfere para um pequeno apartamento familiar em um prédio residencial em Los Angeles. A família em questão é formada por uma mãe, recém separada do marido, e seus três filhos (dois adolescentes e uma jovem garota). Certo dia a irmã da mãe chega para visitar a família, mas a tranquilidade daquele encontro familiar é interrompida quando encontram um tal livro sobrenatural que despertam forças malignas adormecidas. 

A Morte do Demônio: A Ascensão é objetivo e direto em sua proposta de submeter a plateia a um banho de sangue sem trégua. É papo reto, sem meias palavras. Após um rápido prólogo e também uma rápida apresentação dos personagens centrais da família, somos submetidos a cerca de 90 minutos ininterruptos, sem descanso, de muito sangue, cenas de horror gráfico e vísceras em profusão. Com direito ainda a uma sequência no elevador que faz uma homenagem explícita à O Iluminado de Stanley Kubrick.


Além desta manifesta intenção de privilegiar em primeiro lugar o horror no espectador, o filme de Lee Cronin apresenta ainda um subtexto de caráter feminista. Não apenas por apresentar a clássica personagem da “final girl”, a personagem feminina que salva o dia (no caso, a noite). O foco em questão aqui é a maternidade. A mãe que protege a cria acima de tudo, sob qualquer ameaça. A personagem da tia que visita a família está grávida (aqui não há nenhum spoiler, este fato já é apresentado na abertura). O instinto materno, ainda prematuro, se manifesta bravamente quando o Mal ronda aquele apartamento. Aqui uma outra referência parece inspirar o roteiro: a tenente Ripley de Aliens – O Resgate.


A Morte do Demônio: A Ascensão no geral entrega exatamente o que promete: sustos e pavor em dose cavalares. Certamente estamos diante de uma produção que pouco ou nada lembra o espírito anarquista dos títulos anteriores da série. Ao apontar claramente novos caminhos para expansão da mitologia do Livro dos Mortos, que ainda deverá ter muitas reencarnações pela frente, Sam Raimi fecha as portas do passado e mira novos desafios para manter viva uma ideia promissora que surgiu no início dos anos 80.

Assista ao trailer: A Morte do Demônio: A Ascensão


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com

Os Três Mosqueteiros - D’Artagnan: tudo pelo reino



O romance histórico do francês Alexandre Dumas, Os Três Mosqueteiros (1844), é uma das histórias clássicas mais adaptadas pelo cinema, a ponto de estabelecer um gênero cinematográfico em si, o “capa-e-espada”. Desde os filmes mudos, passando por desenhos animados, comédias e musicais, as aventuras de Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan já ganharam muitas versões, interpretações e releituras. Às vésperas de completar 280 anos o clássico de Alexandre Dumas ganha mais uma versão, que chega às telas como uma das adaptações mais fiéis da obra original, produzida na França, com cenários franceses, elenco francês e diretor francês. Ou seja, uma autêntica produção com “lugar de fala”, legitimada pela origem de todos os envolvidos.

Dirigido por Martin Bourboulon (da comédia Relacionamento à Francesa e do drama biográfico Eiffel) Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan (Les trois mousquetaires: D’Artagnan), na verdade é a primeira parte de um programa duplo. A segunda parte, Os Três Mosqueteiros: Milady, será lançada no final do ano.


Herói improvável, D’Artagnan (François Civil) assume o protagonismo involuntário da história ao se apresentar como o homem certo, na hora certa. Recém chegado à Paris, vindo da Gasconha (sul da França) com a ambição de integrar o pequeno exército de mosqueteiros, servidores leais do rei Luis XIII (Louis Garrel), o jovem e impetuoso D’Artagnan se vê de imediato mergulhado no meio de ardiloso plano para derrubar o reino. Aquele era um período de intensa disputa política que opõe duas nações, França e Inglaterra, e duas religiões, Católicos e Protestantes. A trama tem como vilã a sedutora Milady de Winter, interpretada por Eva Green, que parece talhada para papéis desta natureza, e ganhará ainda mais destaque no segundo filme da série.

O maquiavélico Cardeal de Richelieu, em conluio com Milady, articula um complô para desacreditar a rainha, revelando um caso de adultério que abalaria o reino. Mas, os Mosqueteiros entram em ação cena, salvam a pele da rainha e garantem a unidade do abalado reino do rei Luis XIII. A trama ganha contornos de suspense e emoção, que a aproximam de uma investigação policial que sustenta as duas horas desta primeira parte da narrativa.


As dinâmicas sequências de ação e lutas são, no mais das vezes, empolgantes e vigorosas. Duelos de espada aparecem em filmes desde os primórdios do cinema, mas, é fato, pouco evoluíram em termos de coreografia e encenação ao longo dos últimos 100 anos. Neste aspecto há que se considerar que neste Os Três Mosqueteiros há algo de novo que merece ser destacado. Não exatamente na coreografia, mas na forma de gravar as lutas, quase sempre captadas com câmera baixa em leve contra-plongée (de baixo para cima) e, o que faz toda diferença para transmitir uma sensação de imersão e realismo (!), são mostradas em engenhosos planos-sequência (olha aí John Wick fazendo escola).


Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan tem o mérito de fazer a releitura de um clássico, respeitando sua origem, sem, no entanto, abrir mão de uma narrativa que busca o ritmo de uma boa aventura que faça sentido às plateias atuais. Ponto negativo: o filme certamente sofrerá um efeito de frustração pela falta de desfecho, como Kill Bill, por exemplo, por ser dividido em duas partes lançadas com vários meses de intervalo. Porém, com uma agravante, fruto do nosso tempo. O ritmo ágil e descartável com que o audiovisual é consumido nos dias que correm, a primeira parte deste Os Três Mosqueteiros poderá parecer velha e antiga demais (talvez até mesmo esquecida) quando a segunda parte chegar aos cinemas no final do ano.

Assista ao trailer: Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Air - A História Por Trás do Logo: parceria de sucesso

 


O primeiro encontro de Michael Jordan com o cinema ocorreu há 27 anos. O colega de cena do maior jogador de basquete de todos os tempos foi ninguém menos do que Pernalonga, na animação Space Jam: O Jogo do Século. Dois anos depois Jordan fez uma pequena participação em Jogada Decisiva, de Spike Lee, que se passa no mundo do basquetebol. Hoje aposentado das quadras, empresário bilionário, o atleta volta às telas. O retorno não é em pessoa, mas como personagem real retratado em um drama que recria, com toques de ficção, um dos momentos mais emblemáticos do início da sua carreira: a vitoriosa parceria com a Nike.

Air – A História Por Trás do Logo (Air), dirigido por Ben Affleck, revela a incrível história dos bastidores que antecederam a parceria revolucionária entre um então novato Michael Jordan e a também novata e incipiente divisão de basquete da Nike. Naquele tempo, início dos anos 80, a famosa marca de artigos esportivos era apenas uma postulante ao podium dos líderes do setor. A Adidas e a Converse dominavam o mercado A grande sacada da Nike, consolidada em 1984, foi apostar em um jovem talento do basquete e jogar todas as fichas em uma arriscada jogada única. O resto é história. A parceria de Michael Jordan com a Nike revolucionou o mundo dos esportes e da cultura contemporânea com o lançamento da marca de tênis Air Jordan.


Quem apostou na ideia, e a perseguiu como um sonho intuitivo, foi um vendedor, Sonny Vaccaro (Matt Damon), responsável pela divisão de Basquete da Nike, empresa que era conhecida apenas pelos praticantes de corrida. Primeiramente precisou convencer internamente que sua visão estava correta, em especial persuadir o dono da empresa, Phil Knight (Ben Affleck). Depois, convencer a família de Michael Jordan do projeto inovador da Nike. O atleta estava inclinado a fechar contrato com a Adidas, mas então entra em cena a mãe de Jordan (Viola Davis), que sempre soube o imenso valor do talento de seu filho dentro e fora das quadras.

A empreitada do funcionário da Nike para obter a todo custo a atenção de Jordan e sua família passa por uma série de obstáculos (apresentados de maneira simplista) e o roteiro doura um tanto a pílula, abusando de personagens bem intencionados. Sabemos, claro, que não é exatamente assim que ocorre no ambiente corporativo dos tubarões predadores dos grandes negócios.


Air – A História Por Trás do Logo faz um justo e merecido tributo a um dos maiores atletas da história, mas traz um ranço típico de filmes biográficos “chapa branca”, que não ousam, optando por mostrar seus personagens apenas com virtudes, sem nuances. Consta que o próprio Michael Jordan participou, ainda que informalmente, na concepção da história que vemos nas telas. Certamente isto explica o clima de “filme de sessão da tarde”, sem grandes conflitos, o que resulta em uma obra meramente didática e burocrática. Jordan não aparece em cena, mas o filme retrata uma parte importante da sua vida. No elenco o destaque fica mesmo com Matt Damon e Viola Davis, ambos nada mais do que corretos, operando em modo piloto automático.

Como cineasta Ben Affleck se mostra como um realizador absolutamente convencional, sem nenhum traço autoral identificável que o tire da condição de aplicado operário padrão de Hollywood. Ainda que, vale lembrar, Argo tenha recebido o Oscar de Melhor Filme, em 2013, e Affleck premiado pela direção no Globo de Ouro e BAFTA.


Air – A História Por Trás do Logo é o mais longo comercial da Nike que você já viu, apresentado com toda pompa e circunstância como um primoroso case de marketing com lições que farão a alegria de mentores de carreira, coachs motivacionais e gestores corporativos.

Assista ao trailer: Air - A História Por Trás do Logo


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 29 de março de 2023

O Urso do Pó Branco: sessão VHS

 


Em 1985 diversos pacotes de cocaína foram lançados de um avião de contrabandistas sobre uma floresta no estado da Georgia (EUA). Este episódio verídico, que recebeu grande atenção da imprensa à época, é apenas o ponto de partida para o longa O Urso do Pó Branco (Cocaine bear). A partir deste fato inusitado a imaginação dos roteiristas entra em ação para contar o que poderia ter ocorrido após um urso encontrar os pacotes da droga, cheirar o pó, ficar doidão e sair barbarizando todos os humanos que encontra pela frente. A história possui todos os elementos para uma história de horror, mas o que temos aqui é a mais escrachada das comédias, cujo urso protagonista mereceria sim o apelido de “Pablo Escobear”.


A direção da comédia é de Elizabeth Banks, atriz que está cada vez mais se consolidando como realizadora, cujo último trabalho atrás das câmeras havia sido a mal sucedida nova versão de As Panteras, em 2019, estrelada por Kristen Stewart. Com as “panteras” Elizabeth Banks não se deu bem nas bilheterias, mas com o urso “Pablo Escobear” ela acertou a mão. O filme tem sido recebido pela crítica e público como um divertido entretenimento, que desperta um gatilho nostálgico que nos remete às comédias malucas com a marca registrada dos anos 80.


O climão oitentista está presente nos 91 minutos de duração de O Urso do Pó Branco. É absolutamente intencional o desejo de Banks em recriar o estilo do humor meio non sense e escatológico das comédias de 35/40 anos atrás. Para tanto parece que a realizadora buscou inspiração direto na fonte, com realizadores como Sam Raimi (especialmente pela trilogia Evil Dead) e os irmão Coen dos primeiros filmes (antes de começarem a se levar a sérios demais). A propósito, Banks fez muito bem este tema de casa. Seu filme é suficientemente esperto e eficiente justamente por um descompromisso em problematizar e cair na tentação de criar camadas de complexidade para um enredo cuja premissa não passa de uma grande bobagem.


O Urso do Pó Branco é aquele tipo de filme que seria um sucesso nas prateleiras das finadas videolocadoras de VHS. Um pouco de violência, um pouco de sangue e vísceras, um tanto de humor pastelão, um punhado de personagens descartáveis e um urso chapadão botando pra quebrar. No elenco um destaque para a participação de Ray Liotta como um descontrolado mafioso de segundo escalão, seu último papel no cinema, antes do morrer em 2022.


Uma versão brazuca possível desta história poderia ser inspirada no chamado “Verão de lata”, que ocorreu em 1987, quando centenas de latas com maconha surgiram boiando no litoral do Rio de Janeiro. Se um urso cheira pó, um tubarão pode “fumar” maconha, não é verdade? Então, roteiristas, mãos à obra.

Assista ao trailer: O Urso do Pó Branco


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 22 de março de 2023

John Wick 4 – Baba Yaga: insano, empolgante e divertido

 


E pensar que tudo começou por causa de um carro e um cachorro. A saga de John Wick chega ao seu quarto episódio dando sequência ao seu acerto de contas com o passado, ao mesmo tempo em que luta para não ser eliminado pelos vilões que encontra onde quer que ele apareça. Seja nas ruas de Nova Iorque ou nas areias do deserto, seja em Paris, Tóquio ou Berlim. Inimigos é o que não faltam na vida do icônico personagem interpretado por Keanu Reeves já há uma década.

No folclore russo a expressão Baba Yaga é o equivalente ao nosso brasileiríssimo “bicho-papão”. John Wick 4 – Baba Yaga chega ao circuito, mais uma vez com direção de Chad Stahelski, o que já é garantia, no mínimo, de uma unidade narrativa e artística, que ganha desdobramentos e expande o conceito original de maneira consistente a cada novo episódio da franquia.

Com exceção dos primeiros minutos do primeiro episódio da série, quando adotou um tom mais realista (com a devida ressalva do termo!), o fato é que a saga John Wick mergulha cada vez mais fundo, a cada novo filme, em uma espécie de universo paralelo e alegórico. Neste espaço-tempo onde transcorrem as tramas a ordem das coisas e as leis da física são particularmente distintas da realidade na qual nós, simples mortais, vivemos. Que não fiquemos surpresos se em algum episódio futuro da série o agente Nick Fury surgir em cena para convidar John Wick para integrar o time dos Vingadores no MCU.


Muito já se falou sobre o impacto que o primeiro John Wick, lançado em 2014, provocou nos filmes de ação. Em um passe de mágica tudo que se fazia até então no gênero ficou ultrapassado. O truque, se é que podemos falar assim, está na bem sucedida aposta do realizador Chad Stahelski (um ex-dublê) que ousou filmar as cenas de luta como grandes planos-sequência, com poucos cortes e recursos de edição. Algo semelhante aos filmes de Kung Fu dos anos 70 e aos filmes de ação asiáticos dos anos 80/90, que também adotam esta forma de filmar com poucos cortes. Muito diferente, por exemplo, dos filmes de Jason Bourne, celebrizados na primeira década dos anos 2000 justamente pela edição acelerada que fragmentava em excesso as cenas de luta.

A influência do estilo “John Wick” já está presente, por exemplo, nos filmes da franquia James Bond, que sempre foram muito espertos em captar o espírito do seu tempo em busca de renovação para manter a relevância. Neste formato de filmar lutas mais expositivas e menos descritivas, a essência do trabalho artístico deixa de ser uma tarefa do editor e passa a ser mais do coreógrafo. Ou seja, valoriza o elemento humano/orgânico (em desfavor do tecnológico), isto sem falar na maior exigência dos atores envolvidos. Que o diga o próprio Keanu Reeves. Consta que ele participa da quase totalidade das sequências, sem utilização de dublês.


Em John Wick 4 o plot básico segue inalterado: vingança. O nível da caçada pela cabeça de Wick, no entanto, está vários graus acima dos episódios anteriores, algo que beira ao épico, diríamos, sem medo do exagero. Mas o mundo não é perfeito. Ganhamos mais (muito mais) ação, porém a trama é frágil como nunca e se sustenta em um fio de história. Isto parece um lamento? Hum, creio que não. Não há uma reclamação aqui. Apenas uma constatação. O que John Wick 4 nos oferece em troca é o melhor dos mundos em termos de vitalidade, energia, ação ininterrupta e incríveis (e longas) sequências de ação. Keanu Reeves está mais veloz e mais furioso, como nunca o vimos antes, pelo menos até o próximo filme.


A já citada alegoria, sob a qual transcorrem todas as tramas de John Wick, atinge um ápice neste episódio quatro da franquia e reforça o caráter mitológico que se constrói na série. Fomos apresentados ao personagem John Wick quando ele já estava aposentado como assassino profissional. O retorno à ativa espelha, em certa medida, a Odisseia de Ulisses, que depois de anos e anos na guerra deseja apenas voltar para a tranquilidade do lar. Após violar as regras da Alta Cúpula, Wick precisa, no entanto, passar pela penitência, tal qual os Doze Trabalhos de Hércules. Nesta trajetória enfrenta desafios e provas, mas parece um trabalho sem fim, como o Mito de Sísifo que tenta em vão subir a montanha. A fantástica sequência da escadaria é uma excelente analogia desta provação.


John Wick 4 é um produto ousado e arriscado para um mercado cinematográfico que ainda busca recuperação após o período pandêmico, que restringiu o acesso às salas de cinema. Suas quase 3 horas de duração poderiam ser um veneno de bilheteria. Mas, creiam, os 169 minutos passam voando. JW4 é insano, exagerado, empolgante e divertido. Enfim, pacote completo. Que venha o 5.

Assista ao trailer: John Wick 4 – Baba Yaga


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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terça-feira, 21 de março de 2023

Além de Nós: estradas da vida

 


Rodado em catorze cidades de cinco estados - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia - Além de Nós é o longa-metragem de estreia do diretor Rogério Rodrigues para as telas grandes (anteriormente o realizador dirigiu a série Universo Z para canais de streaming). O filme se passa parcialmente no pampa gaúcho, mas sua narrativa se estende para outras regiões e locais do país, como o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e o tradicional Rodeio do Rancho Quarto de Milha em Presidente Prudente, no interior paulista.

Além de Nós conta a história de Léo (Miguel Coelho), um jovem peão de fazenda que nunca saiu de seu pequeno vilarejo no sul do Brasil. Ele sofre duas grandes perdas no mesmo dia: é demitido e testemunha a morte do pai (participação de Clemente Vascaíno). Ao encontrar uma foto e uma carta, Leo se depara com a necessidade de realizar o último desejo de seu pai. Para atender ao pedido, viaja com seu tio Artur (Thiago Lacerda) para a cidade do Rio de Janeiro. No caminho desconhecido, Leo resgata a relação com o tio, de quem discorda totalmente sobre a forma de ser e de viver, tornando esta jornada uma grande aventura de descobertas e transformações.

O filme de Rogério Rodrigues foi exibido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2022.


Há um pecado original na exposição inicial dos personagens de Além de Nós. Nada que comprometa essencialmente a obra, mas efetivamente retarda nossa identificação com a narrativa. Os protagonistas, Artur e Leo, são apresentados de maneira um tanto apressada e elíptica, com muitas lacunas que devem ser preenchidas (ou intuídas pelo espectador). Artur é o tio sem eira nem beira, aparentemente um gaúcho urbano que não encontra formas razoáveis e satisfatórias de conviver na solidão da vida na fazenda. A bebida é sua grande companheira e aliada. Em síntese, um péssimo exemplo a ser seguido pelo sobrinho Leo, um jovem peão de estância. O episódio da demissão de Leo é o estopim que move a narrativa. Não sabemos a razão objetiva da demissão, não sabemos se houve injustiça ou não. Portanto, a princípio, Leo não conta como nossa empatia. Ao relatar sua demissão para o pai ocorre uma discussão, único momento de interação entre os dois. A relação de Leo com o pai é aparentemente fria e conflitada. Nada que justifique plenamente, portanto, a missão que o jovem toma para si ao cumprir a qualquer custo o desejo final do falecido pai. A motivação parece frágil, ainda que represente uma espécie de acerto de contas decorrente de um sentimento de culpa.


Superado este impasse narrativo do primeiro ato, finalmente vamos embarcar na jornada. Os termos “embarcar” e “jornada”, utilizados aqui, não são gratuitos, pois trata-se sim de uma viagem. Além de Nós é um road movie, e como todos filmes que trabalham neste registro, o movimento exterior é sempre uma metáfora do movimento interior dos personagens. Cenários mudam, estradas se sucedem, experiências se acumulam e valores de transformam. Esta é a fórmula dos “filmes de estrada”. O longa de Rogério Rodrigues não foge desta cartilha.

Na condição de road movie Além de Nós é um filme de personagens em contraste com paisagens, e deste confronto a resultante é a sabedoria, o entendimento do sentido da vida e do lugar que ocupamos no mundo. Esta é a transformação que ocorre com os protagonistas, Artur e Leo. Um tema subjacente, que perpassa a narrativa, é a transformação pela qual passa o campo, em oposição ao avanço da civilização tecnológica. A lida campeira, raiz e tradicional, vem perdendo espaço, como bem comprova o peão Leo ao lamentar que a fazenda onde trabalhava optou pelo reflorestamento, abrindo mão da criação de gado no pasto. A imagem icônica de uma barreira de árvores, que interrompe a cavalgada livre do gaúcho em sua montaria, é um símbolo eloquente que representa em imagens este embate desigual.


A transformação de Leo se manifesta por um movimento inverso e espelhado entre a natureza externa da paisagem e o universo interior do personagem. Contido, quase deprimido, quando em seu habitat natural – o extenso pampa gaúcho com horizonte distante – Leo sai do casulo e assume uma personalidade expansiva e livre quando exposto à opressão do meio urbano e a rudeza do asfalto. A relação com o tio Artur (uma composição interessante de Thiago Lacerda) passa por diversas fases, da rejeição à aceitação, da indiferença à dependência. A jornada aparou as diferenças, estimulou a tolerância e revelou novas perspectivas para olhar o outro. A realização do último desejo do pai passa a ser apenas um pretexto para uma forçosa – e dolorosa – descoberta pessoal.

Além de Nós é uma viagem onde o ponto de chegada está longe de ser o destino final. É apenas o início das diversas estradas da vida que estão à nossa frente.

Assista ao trailer: Além de Nós

 

Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Até os Ossos: amor e sangue

 


Na temporada 2022, onde o canibalismo já surgiu forte na série campeã de audiência sobre o serial killer Jeffrey Dahmer na Netflix, o cinema nos brinda com uma ousada, impactante e surpreendente história de amor que também tem como pano de fundo o canibalismo. Porém, diferente daquele produto do streaming, onde o tema aparece como um ritual escatológico de caráter criminoso, no drama de horror Até os Ossos (Bones and All), de Luca Guadagnino (Suspiria, 2018), o canibalismo recebe um tratamento mais metafórico e metafísico, como uma maldição mesmo, ainda que seja extremamente mais explícito na exibição do ato canibal em si.

Reconheçamos, de antemão, que este não é um tema fácil a ser explorado nas obras audiovisuais. É recorrente que o apelo sensacionalista venha sempre em primeiro lugar. Mas não é o caso aqui, ainda que, fosse apenas por este aspecto, Até os Ossos já mereceria nosso olhar mais atento. Mas o filme de Guadagnino vai muito além e não deixa de surpreender o espectador a todo o momento.


Baseado em livro de Camille DeAngelis, premiado em 2016, a adaptação cinematográfica traz a história de um casal de jovens, Maren (Taylor Russell) e Lee (Timothée Chalamet). Eles se encontram ao acaso em uma viagem pelo interior dos Estados Unidos. Ambos marginalizados, em fuga de seus traumas interiores. Uma particularidade os une em um misto de paixão, cumplicidade e sobrevivência: são canibais. O caráter da viagem – literal e simbólica – é um elemento muito presente nos livros da romancista DeAngelis, além de questões feministas e solidão. O filme de Guadagnino respeita estes conceitos e conduz sua narrativa como uma longa jornada de autoconhecimento, o combustível que conduz Maren e Lee até um destino incerto.

Até os Ossos é um road movie de horror e paixão. O guia onipresente da viagem/fuga é o pai de Maren, que deixa de legado uma extensa mensagem gravada em áudio, que a jovem vai ouvindo ao longo da estrada, como fossem capítulos de uma longa história de revelação de suas origens. Ela, assim como nós, é apresentada à verdadeira realidade da sua condição de “devoradora”, ou seja, consumidora de carne humana. Ainda assim, a história se revela incompleta. Falta a figura da mãe, que torna-se então o objeto de busca.


Nesta Via Crucis espiritual Maren encontra, além do parceiro de jornada, Lee (igualmente em processo de entendimento e aceitação da sua condição), outros personagens enigmáticos, que também compartilham o desejo pela carne humana. Em cada etapa da jornada, a cada parada, a cada cidade, o casal recebe novos aprendizados que dão pistas e informações vitais de sobrevivência para aqueles que vivem à margem da sociedade, amaldiçoados pelo desejo da carne.


Luca Guadagnino propõe uma experiência de realidade paralela ao espectador. Ao nos mergulhar no submundo dos chamados “seres devoradores”, somos imersos em um universo de regras próprias. São raras e pontuais as interações do mundo, digamos, corriqueiro e real. A quase totalidade da narrativa se dá em um registro alternativo. Até os Ossos é um relato de personagens marginais. Uma fábula de horror com devoradores de carne humana por necessidade, pois há uma ética e uma moral a ser respeitada. Neste arco narrativo tanto Maren quanto Lee confrontam seus fantasmas e a irreversibilidade de suas existências. Até os Ossos é um filme que permanece ecoando em nossas mentes após a sessão e já nasce predestinado a ser cultuado.


A escolha de Timothée Chalamet por Luca Guadagnino não deixa de revelar uma certa ironia do destino. Ambos já trabalharam juntos em Me Chame Pelo Seu Nome (2017), com Armie Hammer, o ator que teve a carreira destruída por acusações de cometer atos de... canibalismo! Outro destaque do elenco é a canadense Taylor Russell, que ganhou grande visibilidade ao participar da nova versão de Perdidos no Espaço (3 temporadas) da Netflix, no papel de Judy Robinson. Sua presença é o grande destaque e o melhor da série. Está aí uma atriz à beira do estrelato no primeiro time.

Assista ao trailer: Até os Ossos


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS

janeladatela@gmail.com