quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Um Completo Desconhecido: soprando no vento

 

O músico e compositor Bob Dylan já foi tema de um documentário de Martin Scorsese (No Direction Home, 2005) e também interpretado em versões distintas de sua vida por Cate Blanchett, Ben Whishaw, Marcus Carl Franklin, Heath Ledger, Christian Bale e Richard Gere no filme biográfico estilizado Não Estou Lá (2007), dirigido por Todd Haynes. Agora, chega às telas a nova cinebiografia Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown, 2024), dirigida por James Mangold, que limita seu recorte aos primeiros anos do artista.

O jovem Robert Zimmerman, com 19 anos, chega a Nova York no início dos anos 1960 com seu violão e um talento revolucionário. Seu primeiro objetivo é mostrar uma de suas composições ao ídolo da juventude, o astro da folk music Woody Guthrie, internado em um hospital psiquiátrico. Assim, inicia-se a jornada do grande músico e compositor que passaria a ser conhecido pelo nome artístico de Bob Dylan (Timothée Chalamet). Na cidade, ele estabelece relações com a cena musical da época e dá os primeiros passos na carreira, ainda no gênero folk. Nesse período, conhece a cantora Joan Baez (Monica Barbaro), com quem viria a formar uma dupla nos primeiros tempos, dentro e fora dos palcos. Rapidamente, Dylan alcança o sucesso, mas sua ascensão à fama é marcada por muitos conflitos pessoais e artísticos. A culminância daquele primeiro período do artista acontece em 1965, com sua polêmica e transgressora apresentação no Festival Newport Folk, quando ousou utilizar elementos do rock elétrico em suas canções.

Bob Dylan, como retratado no filme, surge como um artista em constante transformação, um espírito inquieto em busca de sua verdadeira forma de expressão. Ao longo de sua trajetória, ele não se limita a um único gênero musical, transitando com maestria entre o folk, o blues e outros estilos, em uma jornada que reflete não apenas a evolução de sua música, mas também de sua identidade como criador. Essa busca incessante por uma voz autêntica vai além da mera experimentação sonora: é, antes de tudo, uma tentativa de dar forma musical à sua poesia, transformando palavras em melodias que ecoam a complexidade de suas reflexões e a profundidade de seu olhar sobre o mundo. Dylan não se contenta em repetir fórmulas ou seguir expectativas alheias. Ele desafia convenções, reinventa-se e, ao fazê-lo, redefine os limites da música popular, consolidando-se como um dos maiores ícones da cultura a partir dos anos 1960.

O desempenho de Timothée Chalamet é nada menos que especial e autêntico. O ator captura com talento a essência de um jovem Bob Dylan, transmitindo não apenas a postura e os maneirismos icônicos do artista, mas também a inquietude e a vulnerabilidade que definem sua busca por uma identidade artística. Chalamet mergulha profundamente no personagem, entregando uma interpretação que vai além da imitação superficial, revelando camadas emocionais que conectam o espectador à jornada introspectiva de Dylan.

Ao seu lado, Monica Barbaro (vista em Top Gun: Maverick) brilha como uma presença cativante e multifacetada. No papel de uma musa inspiradora, ela não só seduz Bob Dylan, mas também conquista a plateia com seu carisma e profundidade dramática. A química entre os dois funciona maravilhosamente bem, elevando a narrativa e adicionando um toque de humanidade e complexidade ao relacionamento tumultuado que viveram por um tempo. Barbaro, assim como Chalamet, demonstra uma entrega absoluta ao papel, tornando-se um dos grandes destaques da produção.

Juntos, Chalamet e Barbaro não apenas honram as figuras que representam, mas também elevam o filme a um patamar artístico superior, transformando a cinebiografia em uma experiência cinematográfica emocionalmente relevante. Seus desempenhos foram devidamente reconhecidos pela Academia, com indicações ao Oscar de Melhor Ator e Melhor Atriz Coadjuvante.

Apesar de todas as boas intenções, Um Completo Desconhecido (título retirado de um verso de uma das canções de Dylan) é uma cinebiografia mais convencional do que poderíamos desejar. Até onde se sabe publicamente, não houve participação direta de Bob Dylan na aprovação do material, o que, de certa forma, explica a abordagem superficial e reverencial adotada pelo filme. James Mangold, que já retratou figuras complexas em obras como Copland, Johnny & June e Ford vs. Ferrari, opta aqui por um caminho seguro, avesso a controvérsias: em vez de mergulhar nas contradições e nuances do artista, escolhe celebrar o mito, evitando questionamentos mais profundos sobre a persona e a obra de Dylan.

O resultado é um filme tecnicamente competente e com momentos de brilho, mas que acaba reduzindo a complexidade de uma das figuras mais enigmáticas e influentes da música do século XX. A ausência de uma interpretação mais ousada ou crítica faz com que Um Completo Desconhecido se aproxime mais de um tributo clássico e rotineiro do que de uma exploração genuína do homem por trás do mito. Em um momento em que as cinebiografias têm se esforçado para desconstruir ícones em busca de veracidade, o projeto, gestado por Mangold por vários anos, deixa transparecer sua inequívoca admiração pelo artista retratado, invalidando uma eventual perspectiva distante e crítica. O diretor opta, portanto, por reforçar apenas a lenda, perdendo a oportunidade de oferecer uma visão mais reveladora e desafiadora.

Assista ao trailer: Um Completo Desconhecido


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Flow: uma jornada animal

A animação Flow (Straume, 2024) surpreendeu e fez história em sua terra natal, a Letônia — e também no mundo todo, diga-se de passagem. Com este filme, o país conquistou suas primeiras indicações ao Oscar desde a independência da União Soviética, em 1990. Um marco significativo não apenas para o cinema letão, mas também para a indústria cinematográfica internacional, que viu neste filme uma narrativa única e visualmente deslumbrante. A produção dirigida por Gints Zilbalodis foi indicada em duas categorias: Melhor Animação e Melhor Filme Internacional (portanto, é um concorrente do brasileiro Ainda Estou Aqui).

A realidade apresentada em Flow nos transporta para um cenário pós-apocalíptico, onde o ser humano está completamente ausente. As razões para esse desaparecimento permanecem incertas e não são explicitamente justificadas ao longo da narrativa. No entanto, essa falta de explicação não se torna um obstáculo para a experiência do espectador; pelo contrário, reforça o caráter universal e atemporal da fábula que o filme se propõe a contar. Em seu lugar, a natureza e os animais assumem o protagonismo, criando um mundo onde a vida flui de forma orgânica e desimpedida, livre das interferências humanas.


Quando as águas avançam como um dilúvio bíblico, engolindo a terra e apagando todos os vestígios da civilização humana, o cenário em que a história se desenrola reflete um planeta inteiramente transformado. Embora a ação se concentre em uma localidade específica, a sensação é de que o mundo todo foi redesenhado por essa catástrofe, restando apenas um vasto oceano e a incerteza do que ainda permanece. Nesse contexto, um gato solitário e confuso vê-se ameaçado pela elevação das águas. Em busca de abrigo, ele encontra um barco que serve de refúgio não apenas para si, mas também para um grupo de animais tão desorientados quanto ele: um cão, uma capivara, um lêmure e uma garça. Unidos pela necessidade de sobrevivência, cada um deles representa, de certa forma, um arquétipo humano ou papéis sociais que assumimos diante de uma coletividade. 

A sobrevivência, no entanto, exige mais do que encontrar um lugar seguro: é preciso superar medos, preconceitos e diferenças. Para o gato – real protagonista da história -, que sempre temeu a água, o desafio é duplo: enfrentar suas próprias fobias e aprender a conviver com seres tão diferentes. Nessa jornada imprevisível, eles descobrem que suas diferenças, longe de serem um obstáculo, podem se tornar sua maior força.


A animação Flow captura a essência da linguagem cinematográfica, remetendo ao primitivo cinema narrativo da transição do século XIX para o XX, quando a experiência mágica do cinema era construída sem a utilização de vozes ou diálogos. A história era contada apenas por meio da música e do poder sugestivo das imagens em sucessão, criando uma conexão única com o espectador. O filme é uma prova clara de que o grande trunfo para o sucesso de uma produção ainda reside em suas ideias e propósitos, e não em um orçamento milionário. Em Flow, os recursos de produção não foram o foco principal: o projeto foi realizado com uma fração do custo das grandes produções dos estúdios, contando com uma equipe reduzida, equipamentos quase domésticos e softwares de computação gratuitos e de código aberto.

Flow é uma fábula que transcende o mundo animal, servindo como um espelho reflexivo para nós, humanos racionais. Através de uma narrativa aparentemente simples, o filme mergulha em temas profundos e universais, como o valor da amizade, a força da compaixão e a importância de compreender e respeitar as diferenças. Em um mundo onde a divisão e o conflito parecem ser a norma, a história nos apresenta uma convivência improvável entre opostos, desafiando expectativas e mostrando que a harmonia pode surgir mesmo quando tudo indica o contrário.

O filme não apenas emociona, mas também provoca reflexões sobre como lidamos com o 'outro' em nossas vidas. A relação entre os personagens, marcada por desafios e superações, simboliza a possibilidade de união em meio à diversidade. É um lembrete poderoso de que, muitas vezes, são justamente as diferenças que nos tornam mais completos e capazes de evoluir. Flow é, portanto, uma obra que vai além do entretenimento, oferecendo uma mensagem urgente e necessária para os tempos atuais.

Os personagens centrais de Flow são animais, mas esqueça as versões antropomorfizadas que costumamos ver em produções da Disney, Pixar e afins. Aqui, um gato é simplesmente um gato, um cão é apenas um cão, e uma capivara não passa de uma capivara. O filme não humaniza seus personagens; em vez disso, ele os apresenta em sua natureza mais pura e instintiva. A trama se desenvolve a partir da interação de um pequeno grupo interracial, composto por espécies que, na natureza, estariam em lados opostos da cadeia alimentar. No entanto, diante de uma situação extrema, eles são forçados a encontrar maneiras de conviver — literalmente, todos estão no mesmo barco.


O que emerge dessa dinâmica é um retrato fascinante de como o instinto de sobrevivência e o senso de preservação da espécie podem falar mais alto do que as hierarquias naturais. O filme nos convida a refletir sobre como, em momentos de crise, as diferenças podem ser superadas em prol de um objetivo comum Flow é, portanto, uma narrativa que vai além do óbvio, explorando não apenas a luta pela vida, mas também a complexidade das relações, mesmo entre aqueles que, em outras circunstâncias, seriam inimigos naturais. A manifestação do instinto animal é retratada no enxuto roteiro da animação com graça e sensibilidade, elevando a história para um nível de comoção que não deixa o público indiferente. Seja ele adulto ou infantil, pois a mensagem é universal.

Flow é mais do que uma simples narrativa sobre sobrevivência; é uma meditação poética sobre resiliência, adaptação e a força da coletividade. Através de sua estética visual deslumbrante e de uma narrativa minimalista, o filme convida o espectador a refletir sobre a fragilidade da civilização humana e a capacidade da natureza de se regenerar.

Assista ao trailer: Flow


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Emilia Pérez: muito barulho por nada

 

Polêmica. Esta é a marca que acompanha a produção francesa desde a primeira exibição no Festival de Cannes em 2024, onde conquistou o Prêmio do Júri e o prêmio de Melhor Atriz, concedido para a performance coletiva do elenco feminino. As primeiras vozes dissonantes já surgiram lá mesmo no prestigiado festival e prosseguem até hoje, turbinadas após as surpreendentes 13 indicações ao Oscar. Para o público brasileiro há ainda outro aspecto bastante particular e localista. A lenha na fogueira das controvérsias só aumentou após Emilia Pérez (Emilia Pérez, 2024) representar o grande adversário de Ainda Estou Aqui na corrida pela estatueta dourada do Oscar.

Assunto para alimentar o debate apaixonado é o que não falta. Declarações equivocadas e preconceituosas do diretor Jacques Audiard se somam às antigas mensagens inconvenientes da protagonista, a atriz Karla Sofía Gascón, resgatadas nas redes sociais, além de todo um contexto de acusações de exploração preconceituosa da realidade cultural mexicana representada no filme. Todo este cenário cerca a recepção e/ou rejeição de Emilia Pérez neste momento em que chega às telas em seu lançamento comercial.

O filme acabou entrado em um terreno minado. As repercussões destas controvérsias têm contaminado uma eventual boa vontade da audiência na apreciação isenta da produção. Convenhamos, no entanto, que Emilia Pérez reúne uma série de temas e abordagens de alto risco: olhar europeu etnocentrista sobre a América Latina; cartéis de narcotraficantes mexicanos; protagonista trans; procedimentos de transição de sexo e, cereja do bolo, o filme é um musical, justamente no ano em que Coringa 2 fracassou amargamente por apostar no mesmo caminho. Reúna tudo isto em um único filme e pronto. As chances de não funcionar são enormes. Não funcionou mesmo. Independente das contestações e acusações que surgiram no período pós-indicações ao Oscar, o fato é que Emilia Pérez não foi feliz no resultado.

Uma sinopse rápida para quem tem pressa: chefão do narcotráfico mexicano, Juan “Manitas” Del Monte, casado com Jessi (Selena Gomez), contrata advogada, Rita Castro (Zoe Saldaña), para ajudá-lo a se retirar do seu negócio e realizar o sonho secreto de tornar-se mulher. Assim, nasce Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón).

Neste processo de transformação efetivamente duas novas vidas surgem. Rita, a advogada com poucas perspectivas de crescer na profissão torna-se imediatamente uma milionária pelos serviços prestados, e Juan / Emilia realiza o desejo de viver com outro corpo ressignificando seu gênero. Cresce entre elas uma amizade para a vida, mas há uma questão a resolver com o destino da esposa Jessi e os filhos. É basicamente sobre este entrecho dramático que se sustenta o filme de Jacques Audiard. A questão da transformação em si, da mudança de sexo, é quase um tema secundário em Emilia Pérez.

O processo de transformação não mudou apenas o corpo de Emilia. A percepção dos males do mundo aflora em sua mente acionando um gatilho de consciência. Quando existia em um corpo inadequado o chefão praticava o mal extremo, quando encontrou sua adequação de gênero ocorre o despertar. Inicia então uma cruzada de arrependimento e redenção ao assumir um papel público como símbolo de justiça social e luta pelos direitos da população esquecida. Nesta nova missão de vida Emilia assume ares de figura mítica, adorada pelo povo como uma santa popular.


Em termos de abordagem e concepção Emilia Pérez revela suas fragilidades como realização cinematográfica. Não há como negar que representa o México, os mexicanos e a cultura latina em geral com os estereótipos mais rasteiros que usualmente encontramos em produções de Hollywood. Por ser uma produção europeia, que supostamente trataria com mais cautela e atenção estes temas, o filme pecou muito. O que se percebe com clareza é que o contexto latino, multicolorido e sonoramente exuberante, não passa de um artifício cosmético com efeito manipulador. 

Algo semelhante ocorreu com Romeu + Julieta de Bazz Luhrmann, que se apropriou de uma estética “caliente” para transportar a Verona da obra original para a modernidade em Venice Beach na Califórnia dos anos 90. Neste caso com um nível de alegoria e fantasia que Emilia Pérez não alcança por buscar um caminho mais naturalista na essência de sua narrativa. Inclusive, na utilização da música, Romeu + Julieta (para permanecermos no mesmo exemplo comparativo) se sai melhor. Como musical o filme de Jacques Audiard também não se realiza plenamente. Números musicais nada memoráveis se somam às canções nada marcantes apenas comprovam que o diretor errou a mão, demonstrando pouca intimidade (ou inspiração) para o gênero.

Emilia Pérez é mais moralista do que gostaria de ser. Evidencia ser uma produção oportunista que se apropria de um discurso progressista, concebida com estratégicos apelos mercadológicos, que pega carona na levada do momento. Faltou verdade, convicção e propósito na história que pretendia contar. Restou, citando Shakespeare, “muito barulho por nada”.

Assista ao trailer: Emilia Pérez

Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O Homem do Saco: lenda popular reciclada

Uma possível surpresa para aqueles que assistirem O Homem do Saco (Bagman, 2024) é descobrir que essa não é uma lenda exclusivamente brasileira. Por aqui essa figura sinistra que apavora o imaginário infantil é mais conhecida com o nome de Velho do Saco, uma espécie de andarilho que recolhe as crianças malcriadas e desobedientes as colocando em um saco e levando para local desconhecido. O fato é que este personagem simbólico está presente na cultura popular de muitos países, com predominância naqueles de língua latina, com pequenas variações nas mitologias locais. 

Então neste O Homem do Saco temos uma versão de como esta figura é tratada nas terras do Tio Sam. Nesta (inexistente) disputa de versões estamos em larga vantagem. O nosso tradicional Velho do Saco raiz é muito mais apavorante do que esse tal de Bagman, com sua sacola de couro com zíper. A direção é do cineasta britânico Colm McCarthy, que possui grande experiência na TV onde dirigiu vários episódios para séries como Doctor Who, Sherlock, Peaky Blinders e Black Mirror.



A história que assombra as crianças ganha vida própria em O Homem do Saco. A entidade das sombras que povoa os pesadelos de várias gerações passa a perseguir uma família. Tudo começa no passado quando o pequeno Patrick vive uma experiência perturbadora que deixa traumas que o acompanham por toda a vida. Anos, depois, já adulto, Patrick (Sam Claflin) está casado, com um filho. Após retornar para a cidade natal, para cuidar de empresa madeireira que foi de seu pai, Patrick, sua esposa e filho passam a ser perturbados por uma entidade misteriosa que ronda a casa onde moram. Será o Homem do Saco que retornou para acertar as contas do passado? 

Para esta versão cinematográfica de uma lenda popular o roteiro de O Homem do Saco incorporou alguns elementos que não fazem parte da mitologia original atribuída à tradição do personagem. Esta proposta na verdade acabou por enfraquecer o conteúdo de terror que é inerente ao mito. Há claramente um propósito de trabalhar o personagem Homem do Saco como um personagem pop, com potencial para assegurar futuras sequências. Falhou enormemente. O filme é raso, recheado de clichês e uso demasiado do truque do jump scares, aqueles sustos repentinos que pretendem fazer a plateia saltar da poltrona.


O filme pretende acrescentar camadas de complexidade em uma história que não é nada menos que banal, já vista tantas vezes, mas aqui executada com carência absoluta de criatividade. A narrativa coloca gratuitamente no mesmo saco (desculpe o trocadilho involuntário!) algumas linhas narrativas que não se comunicam nem se justificam. O fato é que o filme não convence em momento algum. Como diziam nossas avós, “saco vazio não para em pé”. Sábias palavras. O único saco que O Homem do Saco enche é o da plateia.

Assista ao trailer: O Homem do Saco


Jorge Ghiorzi

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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A Verdadeira Dor: jornada interior


O poder da memória e sua capacidade de moldar a trajetória das nossas vidas é a chave que deflagra o processo transformador dos personagens centrais de A Verdadeira Dor (A Real Pain, 2024). O filme vem sendo apontado (com toda justiça) como o melhor trabalho de Jesse Eisenberg como roteirista e diretor, com direito a duas indicações ao Oscar 2025: Roteiro e Ator coadjuvante. Mais conhecido do grande público em sua faceta ator, com papéis marcantes como Mark Zuckerberg, em A Rede Social, e Lex Luthor, em Batman vs. Superman: O Origem da Justiça, Jesse Eisenberg conquista, com este filme, um novo status como artista autoral na nova formatação da indústria de Hollywood. 

O elemento catalisador da narrativa é o Holocausto, evocado pela memória da recentemente falecida avó dos primos David (Eisenberg) e Benji (Kieran Culkin). Para reverenciar a figura da avó, uma sobrevivente dos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial, os dois partem em uma excursão para a Polônia. Lá visitam marcos históricos da guerra, pontos turísticos relacionados à sua ascendência familiar, um campo de concentração e também conhecem a casa onde a avó havia morado no passado distante, o principal objetivo da viagem da dupla.


A Verdadeira Dor se configura como um clássico road movie, o filme de estrada, de viagem, repleto de experiências sensoriais e psicológicas que funcionam como gatilho para a modificação da visão de mundo dos personagens. Filmes desta natureza ficam essencialmente amparados no arco narrativo e na jornada interior, exatamente os processos que levam David e Benji a questionarem seu passado e as perspectivas de futuro. Deslocados em terra estranha os dois se confrontam com suas inquietações interiores e revelam abertamente que possuem personalidades antagônicas que se complementam. David é o cara metódico, pai de família, com perfil retraído que não demonstra seus sentimentos. Benji é completamente o oposto. Ele é o cara extrovertido, envolvente, sem freios na língua, sem medo de expressar o que pensa e sente, aquele tipo de pessoa que “preenche” um ambiente com a simples presença. Ou seja, ambos são as duas faces de uma mesma moeda, que anseiam recuperar as conexões que já tiveram no passado.


A viagem à Polônia conscientiza David e Benji a respeito do verdadeiro papel que ocupam no mundo: dois jovens judeus, brancos e privilegiados. Nesta condição mostram-se a princípio anestesiados para as verdadeiras dores do mundo. E que dor coletiva maior haveria além do Holocausto? Este é o fantasma que assombra o passado dos protagonistas, descendentes diretos da tragédia. Apesar desta abordagem, não espere um drama pesado. Surpreenda-se com A Verdadeira Dor que trata do assunto com muita sensibilidade, alguma irreverencia e um pouco de humor. Os personagens centrais são desfuncionais, cada um a sua maneira. Além da parceria e cumplicidade, o principal sentimento que realmente compartilham é o da culpa que carregam por um passado que realmente não viveram ou sequer presenciaram, mas determinante para o que são hoje. Um trauma recriado apenas pela lembrança. 

Além do roteiro muito bem construído, com diálogos espirituosos, que fogem da melancolia barata, o maior destaque de A Verdadeira Dor é o desempenho de Kieran Culkin, nada menos que exuberante e cativante. Seu personagem, com segredos e dores profundas, é extremamente verossímil e realista apesar das complexidades que traz dentro de si.


A Verdadeira Dor é aquele tipo de filme adulto médio – não pelas qualidades, mas pelo alcance da sua visibilidade – que a indústria de Hollywood parece ter esquecido de incentivar. Há dois anos Os Rejeitados de Alexandre Payne ocupou este posto. O filme de Jesse Eisenberg possui uma superfície de simplicidade, mas o que efetivamente entrega é uma história profunda de luto e redenção. Uma joia rara que você começa a assistir com um sorriso no rosto e encerra com um nó na garganta.

Assista ao trailer: A Verdadeira Dor


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Conclave: habemus papam

 

O poder de imaginação proporcionado pelo cinema permite criar mundos inexistentes, reproduzir mundos conhecidos e, acima de tudo, especular sobre mundos inacessíveis, ainda que reais. Neste último caso entra em cena a especulação, baseada em fatos parciais, cujas lacunas são preenchidas pelo o que chamamos de ficção. Um ótimo exemplo desta capacidade especulativa da sétima arte é o thriller dramático Conclave que se passa inteiramente no ambiente intramuros do Vaticano durante o processo de votação dos cardeais para a escolha do novo papa para liderar a Igreja Católica. Sabe-se que este processo é extremamente sigiloso, realizado sob rígidas regras de compliance que proíbem a divulgação pública de alguns de seus ritos secretos. Portanto, resta ao cinema – e também à literatura - conjecturar com o salvo-conduto da liberdade criativa. Baseado no livro de Robert Harris lançado em 2016, Conclave foi dirigido pelo alemão Edward Berger, que ganhou destaque mundial há três anos com o drama de guerra Nada de Novo no Front.

A vacância do trono papal se dá imediatamente na primeira sequência de Conclave. A partir da morte do sumo pontífice iniciam todos os procedimentos para o funeral e posterior organização do encontro dos cardeais, vindos de diversas partes do mundo diretamente para o Vaticano, com o objetivo de promover a votação para a escolha de um novo papa. O responsável pela organização e supervisão do conclave é o cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes). Isolados do mundo exterior os cardeais ficam confinados na Capela Sistina, submetidos a várias rodadas de votação, até que se defina por unanimidade o eleito para assumir o trono.

O que em tese seria enfadonho como narrativa cinematográfica, ganha contornos de uma emocionante trama de suspense e thriller de investigação quando os disputantes ao pleito entram no jogo pesado e obscuro de mentiras, segredos comprometedores e destruição de reputações dos favoritos. No centro das ações está a figura do cardeal Lawrence que deve conduzir um desgastante processo eleitoral com serenidade e justiça, ainda que segredos inconfessáveis tenham chegado ao seu conhecimento. Dividido entre verdades inconvenientes e a defesa da credibilidade da Igreja Católica perante os fiéis, ele carrega o peso de uma decisão que tortura sua consciência.

Como seria de se esperar, o filme tem sido criticado pelo Vaticano por mostrar uma face negativa da Igreja Católica, marcada por corrupção, vaidade e ambição. O mais provável é que o que realmente incomodou as lideranças religiosas foi a inserção de uma visão progressista em oposição ao conservadorismo, representados por dois cardeais postulantes ao cargo de papa que abertamente apresentam ideias antagônicas. Sabidamente esta é uma pauta que a Igreja Católica não deseja enfrentar. Há ainda lançadas ao longo do roteiro – enxuto e brilhante – outras questões que costumam forçar os limites tradicionais dos dogmas da igreja, como diversidade, inclusão e sacerdócio feminino.

Conclave é um filme contido, de pouca ação, e surpreendente ao incluir em dado momento um inesperado momento explosivo. Toda a construção dramática se dá mediante diálogos precisos e contextualizados acompanhados por uma edição ao mesmo tempo elegante e dinâmica. O desenvolvimento da trama mantém o permanente interesse ao trabalhar a tensão do mistério como um elemento catalizador.

O personagem do cardeal Lawrence, ao investigar um segredo que se esconde nas sombras do Vaticano, em certa medida emula um misto de Hercule Poirot (o clássico investigador criado por Agatha Christie) e Robert Langdon, o professor especialista em simbologia criado por Dan Brown (O Código Da Vinci), interpretado nas telas por Tom Hanks. A propósito, uma das aventuras de Langdon, Anjos e Demônios, se passa justamente no Vaticano com suas tramas palacianas. O desempenho de Ralph Fiennes como o cardeal “detetive” é um dos destaques incontestáveis do filme de Edward Berger. Após alguns anos fora do radar das grandes produções de destaque, aqui Fiennes entrega uma das melhores interpretações da sua carreira.

Conclave é uma realização deslumbrante que trata com ousadia e rigor temas pertinentes de uma Igreja Católica que se debate entre a tradição e a modernidade. Um empolgante thriller de suspense religioso que se movimenta sinuosamente pelos espaços do confinamento com provações que questionam a fé, a justiça e a verdade.

Assista ao trailer: Conclave


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Babygirl: desejo e paixão

 

A utilização do sexo como instrumento de poder e submissão é um dos fatos da vida utilizado com frequência na ficção da literatura e do cinema. Está aí, para comprovar uma referência exemplar, Ligações Perigosas, o romance de Pierre Choderlos de Laclos e a versão cinematográfica (dentre tantas outras) de Stephen Frears em 1988. Os temas fulcrais da narrativa da obra clássica da literatura francesa estão presentes como a matéria prima e gatilho propulsor do misto de drama e thriller erótico Babygirl, estrelado por Nicole Kidman em ousado e transgressor desempenho, levando-se em conta o status da estrela e o estágio atual da sua carreira. O papel foi um desafio ao qual a atriz se entregou completamente.


Subvertendo uma lógica recorrente em diversos filmes, desta vez a posição de poder é exercida por uma mulher. Esta diferença fundamental no equilíbrio de poder proporciona uma nova dinâmica nas relações, sejam elas corporativas, conjugais, amorosas ou sexuais. A protagonista é uma executiva bem-sucedida, Romy (Nicole Kidman), CEO de uma grande empresa de logística de e-commerce. Sua vida é dividida entre as demandas crescentes na empresa e as demandas da vida privada em família, onde vive um casamento de pouco desejo e paixão pelo marido (Antonio Banderas). As perspectivas de Romy mudam radicalmente quando um jovem estagiário da empresa atrai sua atenção. Colocando em risco sua carreira e sua família Romy embarca em um tórrido romance extraconjugal com o jovem Samuel (Harris Dickinson). O caso, que inicialmente funcionava como inocente e furtiva válvula de escape para exercitar fetiches e fantasias de Romy, aos poucos se acentua a ponto de tornar-se um escândalo de grandes proporções. Estaria havendo entre os dois um caso clássico de assédio no ambiente corporativo? Para a diretora de Babygirl, Halina Reijn, esta questão não possui uma resposta pronta e objetiva.


Relações amorosas com potencial explosivo no ambiente corporativo já foram exploradas em diversos thrillers eróticos. Um deles, clássico dos anos 90, é Assédio Sexual, dirigido por Barry Levinson, com o qual Babygirl permite um paralelismo, ainda que imperfeito. No filme de 1994 um executivo (Michael Douglas) era acusado de assédio no ambiente de trabalho. Ao fim descobre-se que tudo não passou de uma conspiração empresarial onde a verdadeira vítima era o próprio executivo, manipulado pela ambiciosa profissional (Demi Moore) em busca de uma promoção rumo ao topo da hierarquia corporativa. Em Babygirl o protagonismo é da figura feminina, no entanto a condição de vítima e algoz desta vez é algo difusa pelo fato da relação entre ambos ser claramente consentida e incentivada. Por propósitos distintos, é verdade.


Babygirl não se limita ao ambiente corporativo, indo além das meras tramas de ambição profissional. Seu olhar está direcionado para as pulsões vitais da personagem de Nicole Kidman. Exemplos explícitos desta perspectiva estão dados no início e no fim do filme. Babygirl abre com a sequência de um clímax sexual fake e encerra com um outro clímax, desta vez verdadeiro e prazeroso. Entre estes dois pontos Romy percorre uma jornada em busca do orgasmo perfeito. Babygirl é um filme sexy, porém não é necessariamente sedutor. Ele trabalha no registro da fantasia, dos jogos sexuais que beiram ao sadomasoquismo, mas o prazer visível na superfície da relação dos dois amantes esconde na verdade uma urgência crescente, constantemente ameaçados por um explosivo desfecho.


O filme de Halina Reijn é, na maior parte do tempo, um filme moralmente ambíguo. Em diversas passagens demonstra uma intenção de criticar uma certa hipocrisia social dos ambientes supostamente esclarecidos, seja no âmbito familiar ou empresarial. No entanto, fica no meio do caminho ao não aprofundar subtramas e personagens com potencial, como o marido e a filha. Neste sentido o filme não oferece grandes complexidades, apenas se contenta com o verniz de uma ousadia pasteurizada e bem fotografada. Babygirl se apresenta como uma espécie de Cinquenta Tons de Cinza com o bônus de ter sido realizado com um pouco mais de ambição e exigir mais as sinapses do público.

Assista ao trailer: Babygirl


Jorge Ghiorzi

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