quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Era Uma Vez um Gênio: muita fantasia e pouca imaginação

 

O conto fantástico que apresenta um gênio da lâmpada que concede três desejos faz parte da compilação árabe “Mil e Uma Noites”. Graças às inúmeras versões cinematográficas a história ganhou popularidade e se incorporou também na tradição ocidental. A mais nova versão deste conto, que chega às telas pelas mãos de George Miller, traz uma nova abordagem. O gênio, sempre tratado como um personagem secundário, desta fez é alçado à condição de coprotagonista e narrador da história.

A filmografia do australiano George Miller é um caso à parte pela diversidade de temas, abordagens e gêneros. Aos 77 anos o diretor segue filmando com a energia de diretor estreante, sem medo de se aventurar por terrenos inexplorados, desafiando riscos. O cineasta que criou Mad Max nos anos 70, já filmou porquinhos e pinguins digitais e recentemente nos entregou o vigoroso Mad Max: Estrada da Fúria, não para de nos surpreender. Seu mais recente trabalho, Era Uma Vez um Gênio (Three Thousand Years of Longing), é um misto de drama, romance e comédia que se insere na mesma linha de, por exemplo, As Bruxas de Eastwick - que Miller realizou em 1987 – no que se refere à inserção de elementos de fantasia na narrativa.


Enquanto participava de uma conferência em Istambul (Turquia) a intelectualizada e solitária Drª Alithea Binnie (Tilda Swinton), especialista em narrativas históricas, adquire um pequeno jarro de vidro em uma loja de souvenir. Ao lavar a peça acaba libertando um djinn (Idris Elba), uma entidade sobrenatural da mitologia árabe que no ocidente conhecemos como “Gênio". A criatura lhe oferece três desejos em troca de sua liberdade. A Drª se recusa a fazer os pedidos, pois sua racionalidade coloca em dúvida a veracidade do mito que está à sua frente. O djinn, então, tenta convencê-la contando histórias fantásticas de seu passado. Por fim, ela acaba fazendo um surpreendente pedido que expressa seus mais profundos desejos com consequências inesperadas para os dois.

O filme em grande medida resgata a tradição das histórias orais colocando em cena um narrador (no caso o próprio djinn) como uma espécie de menestrel que supervaloriza sua própria biografia. O objetivo era seduzir sua interlocutora com suas incríveis aventuras por reinos e reinados ao longo da história. Mas, para azar do gênio sedutor, Alithea é uma pessoa racional demais para embarcar naquelas narrativas. É neste ponto que se revela o tema central do filme: o conflito entre Mito e Ciência.


As discussões filosóficas dos dois personagens num quarto de hotel revelam inicialmente duas posições antagônicas, que ao fim encontram um ponto comum de convivência. O gênio encontra razões para aceitar uma vida mais “humana” e a doutora, por sua vez, rompe (parcialmente) suas sólidas convicções racionais e cede para uma vida mais leve, com fantasia e imaginação.

A estrutura de uma história, dentro de uma história, dentro de uma história de Era Uma Vez um Gênio nos leva inevitavelmente a uma narrativa episódica, que raramente conquista a atenção da plateia, e aqui, particularmente, é maçante por vários momentos. O todo e suas partes tende a ser um pouco dispersivo, pois o ritmo dramatúrgico é sacrificado em favor de uma narrativa que parece se encantar demasiadamente com os encantos da própria história que está encenando. Onde tudo isso nos leva?


O ponto de chegada não é exatamente recompensador em termos de espetáculo de entretenimento. O terceiro ato do filme de George Miller é uma reversão de expectativa. Os três mil anos que o enredo do filme abrange se concluem de maneira trivial e decepcionante. Muito barulho por nada, diria Shakespeare. Difícil acreditar que Era Uma Vez um Gênio faça carreira e encontre público nos cinemas. O destino parece ser mesmo o streaming, onde eventualmente até possa ser uma boa opção para uma sessão sem compromisso.

Então, só nos resta dizer: “Senhor Miller, por favor, volte logo para a estrada furiosa”.

Assista ao trailer: Era Uma Vez um Gênio


Jorge Ghiorzi / Membro da ACCIRS


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

“Não! Não Olhe!”: verdades ocultas

 


O que os olhos não veem o coração não sente, diz o provérbio popular. Portanto, “corra”, “não, não olhe”. Este é o melhor conselho que “nós” podemos lhe dar, pois a ameaça do novo filme de Jordan Peele vem do espaço e pouco podemos fazer para escapar ileso. Com o lançamento de Não! Não Olhe! (Nope) o cineasta conclui seu tríptico revisionista das narrativas hollywoodianas, inserindo definitivamente seu nome na galeria dos mais destacados realizadores contemporâneos de gênero.

Localizado no Vale de Santa Clarita, nos arredores de Los Angeles, o Rancho Haywood dos irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) é uma herança do falecido pai, criador e domador de cavalos utilizados pela indústria cinematográfica em filmes e séries. Os negócios já não prosperam como nos velhos tempos. A economia mudou, Hollywood mudou. O passado é só uma lembrança nostálgica.


Enquanto lutam para manter o funcionamento do rancho, OJ e Emerald começam a perceber a ocorrência de fenômenos e acontecimentos inexplicáveis que parecem ter origem bem acima deles, nos céus sobre o árido deserto. Obcecados para desvendar o mistério – e se possível ganhar algum dinheiro com isso – os irmãos decidem criar uma forma de filmar e registrar aqueles fenômenos de origem desconhecida.

O protagonismo de elencos predominantemente negros é uma constante nos trabalhos de Jordan Peele, e aqui não é diferente. O contexto racial também está presente, ainda que mais atenuando do que em Corra, por exemplo. Protagonismo este que desta vez extrapola os limites do filme e se expande para o próprio Cinema como um todo. Isto se manifesta já nos primeiros minutos quando somos apresentados à história por trás dos pioneiros experimentos do fotógrafo Eadweard Muybridge. No final do século 19 ele registrou pela primeira vez um simulacro de movimento através das imagens – o que seria o protocinema – quando apresentou ao mundo uma série de fotografias de um cavalo montado por cavaleiro. Jordan Peele nos conta então, através da personagem Emerald, uma versão cheia de liberdades (que atende aos propósitos do diretor) de que aquele cavaleiro era um homem negro. Portanto, a primeira imagem em movimento de um ser humano foi protagonizada por um negro, porém, o apagamento histórico não permitiu o devido reconhecimento daquele personagem.


Há constantemente no subtexto do filme uma relação direta com o cinema e o contexto do olhar do expectador. O universo da indústria cinematográfica está presente na atividade dos protagonistas – fornecedores de cavalos para o cinema – e também de um personagem secundário, o ex-astro mirim de uma série de sucesso da TV, marcado por uma tragédia ocorrida nos estúdios de gravação. O mistério que sobrevoa o Rancho Haywood não deve ser desafiado pelo olhar. Não devemos olhar para “ele”, sob pena de ser eliminado. Mas, nada consta que não possa ser registrado pelo “olhar eletrônico” de uma câmera de vídeo. Ou seja, o fato só torna-se real, objetivo, quando captado por vídeo. A imagem só é legitimada quando devidamente registrada. Uma subversão do real que só o cinema pode reivindicar.

Nem seria necessário um olhar mais atento para percebermos que desta vez Jordan Peele está vivendo seu momento Shyamalan. No caso, é real e intencional a semelhança, reconhecida pelo próprio realizador que cita o cineasta de origem indiana como uma referência na concepção do filme, cujo roteiro é do próprio Peele.


Não! Não Olhe! é simultaneamente complexo, misterioso e desafiador, sem, no entanto, deixar de ser também divertido com plena consciência da noção de espetáculo para grandes públicos. Muito longo para ser um episódio de Twilight Zone (cuja nova versão tem o comando de Peele) e muito curto para ser uma minissérie, o filme se ressente das consequências do excesso de ambição do realizador. Jordan Peele parece não ter dado conta plenamente de todas as potencialidades que são construídas ao longo da narrativa, reduzindo a essência do seu filme ao que ele realmente é: um exercício de terror e suspense com ecos de Filme B. Um entretenimento puro sangue.

Assista ao trailer: Não! Não Olhe!


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS

sábado, 7 de maio de 2022

De Olhos Abertos


 

por Alexandre Derlam


De Olhos Abertos

“Quando os integrantes do Boca se reúnem, eles formam uma roda. Ninguém fica na frente ou atrás de ninguém. Todos podem se olhar nos olhos da mesma distância. Em 18 anos de vida, passamos por muita coisa juntos. JUNTOS, essa é a palavra que nos define...”.

Este texto é apresentado na abertura do documentário De Olhos Abertos. A cena em questão é uma reunião das pessoas em situação de rua que produzem e vendem o seu próprio jornal, o “Boca de Rua”, único no mundo. Os participantes formam uma roda e a jornalista Rosina Duarte, uma das criadoras do Boca de Rua, compartilha o texto em voz alta. Rosina exerce um papel como figura central na história. Em suas conversas com o grupo vamos conhecendo os moradores de rua integrantes do Boca. Um misto formado por relatos, registros da vida e até da rotina destes moradores e suas representações. Manifestações contundentes e reveladoras. Com potencial para nos fazer pensar: Como a gente os vê? De onde a gente olha? Quais relações criamos e como reagimos?


A narrativa se apoia nos depoimentos e olhares dos integrantes do Boca de Rua. Suas impressões sobre a cidade, o cotidiano e o valor do trabalho realizado com o jornal. Junto aos depoimentos e conversas, está a constante observação da câmera. Acompanhando os moradores pelas ruas. Enquanto oferecem o jornal, dormem, brincam e se alimentam. Vemos repetitivamente calçadas e seus buracos. Lages quebradas numa demonstração de abandono. Durante as reuniões todos são participantes ativos. Discutem e debatem os temas definindo as escolhas de pautas, matérias e fotos. Conferem e aprovam capas e edições. De forma democrática e participativa, cabendo sempre a Rosina mediar as conversas e desavenças.  Há espaço para contestação e indignação. Mas as regras estabelecidas são cumpridas. Alguns dos personagens ganham mais evidência. Seja na eloquência de seus relatos e pensamentos (caso específico de Anderson). Ele se inscreveu no vestibular da UFRGS e foi aprovado. Inteligente e questionador, Anderson se destaca entre os depoimentos ao longo dos 112 min de projeção.

Há também um simpático e diplomático candidato a vereador. O camarada é um sonhador como ele mesmo diz. Seus recursos de oratória e visual caprichado (o tempo todo vestindo blaser e gravata) conferem uma certa nobreza, espontaneidade e bom humor. A propósito o alto astral está presente em boa parte do filme. Uma empatia natural que emana da tela. E este é apenas um entre outros pontos positivos da produção. Capaz de dar voz a todos e todas com sensibilidade, carinho e respeito (sem apelar a vitimismo ou fazer uso de dados assistenciais ou sentimentais) e sim dialogando com o espectador. Permitindo suas reações e reflexões.


Em uma dinâmica com fluência de imagens e som. De Olhos Abertos possui dois fundamentos muito importantes e que podem ser identificados com uma observação mais próxima. A montagem é assinada pela diretora Charlotte Dafol e por Alfredo Barros. Sendo coerente e precisa. Alfredo é um nome conhecido e atuante no meio cinematográfico. Um montador experiente que também atua como professor de cinema. Uma outra atração a parte é a trilha sonora a cargo do trio de compositores Rafael Sarmento, Marcelo Cougo e Paulo Bettanzos. Além de funcionar organicamente, fornece ritmo e contagia a plateia, colaborando nas passagens e transições ao longo da projeção. Sem esquecer a contribuição do trabalho de desenho de som realizado por Juan Quintáns.


O filme vem construindo uma carreira significativa com sessões culturais, sociais e principalmente obtendo justa notoriedade e reconhecimento em premiações. Foi selecionado em diversos festivais nacionais e internacionais. Fruto da proximidade e entrosamento da diretora com os entrevistados. Da capacidade de demonstrar uma visão intima de classe. Se por um lado De Olhos Abertos não apresenta experimentação com a linguagem, suas boas escolhas são acessíveis e familiares ao público. Como resultado principal, o filme nos devolve um pouco da esperança e da crença em espaços sociais onde possamos coexistir. Com mais coletividade e sendo plurais.

quarta-feira, 23 de março de 2022

“Ambulância – Um Dia de Crime”: motorista sem limites

 


Abram caminho no trânsito. Lá vem a ambulância. A bordo, um policial ferido e uma socorrista. No volante, dois assaltantes em fuga. No comando, um cineasta movido à adrenalina aditivada: Michael Bay. Esta poderia ser uma sinopse minimalista de Ambulância – Um Dia de Crime (Ambulance), a eletrizante versão estadunidense de um filme de ação dinamarquês lançado em 2005. Porém, de minimalista não temos nada. Tudo é over e superlativo, afinal, estamos falando de Michael Bay.

E é justamente pela visão do realizador que se inicia a análise deste vertiginoso thriller de assalto a banco. Há ali, de maneira flagrante, uma assinatura, um estilo de filmar, um modo de injetar vertigem na narrativa, sem dar trégua ao espectador. Não se trata de uma forma esporádica de filmar. É uma tradição recorrente que se reafirma, filme após filme, desde Os Bad Boys, A Rocha e Armageddon, nos anos 90, até Transformers, Sem Dor, Sem Ganho e 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi, nos anos 2000. Então, sim, para Michael Bay a forma se impõe decisivamente sobre o conteúdo.


Posto isso, vamos ao que interessa. O “rei das explosões” está de volta, desta vez com uma veloz e furiosa Ambulância como uma das “personagens”, que entra por azar no centro de um malogrado assalto a banco. Os autores do roubo são dois irmãos (um deles adotivo). Danny (Jake Gyllenhaal) é um criminoso profissional, reconhecido pela ousadia e inteligência. Will Sharp (Yahya Abdul-Mateen, do recente Matrix Ressurectons), seu irmão, é um ex-combatente do Exército norte-americano, em dificuldades financeiras para bancar a cirurgia da esposa. Ao pedir ajuda ao irmão, Will é convencido por Danny a participar do grupo que vai assaltar um banco em busca de 32 milhões de dólares (isso, dinheiro físico, cédulas). O roubo, que parecia fácil, dá errado e a dupla escapa da cena do crime sequestrando uma ambulância que está no local para atender os feridos do intenso tiroteio.

Em se tratando de filme de Michael Bay, a formatação clássica dos três Atos sofre uma sensível distorção dos cânones hollywoodianos. Temos dez minutos expositivos no primeiro Ato, seguidos de frenéticos 90 minutos no segundo Ato, e por fim rápidos três minutos de desfecho no terceiro Ato. É papo reto.


Diferente de Velocidade Máxima (1994), com o qual guarda alguma semelhança pelo mote da perseguição implacável, com alguma surpresa podemos identificar que em Ambulância – Um Dia de Crime o diretor vai um pouquinho além (bem pouco, diga-se) demonstrando alguns sinais vitais em seus personagens principais. Isso mesmo, há vidas reais por trás daqueles personagens, mas nada que roube a cena a ponto de distrair a plateia para a essência da caçada motorizada pelos subúrbios da ensolarada Los Angeles. Neste aspecto se destaca a socorrista Cam Thompson, vivida pela mexicana Eiza Gonzáles (Em Ritmo de Fuga e Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw), que apresenta um arco de personagem que a transforma ao longo da narrativa. A Cam Thompson do inicio do filme não é a mesma do final, após o desfecho do episódio da perseguição. O coração do filme está em suas mãos, no sentido figurado e literal. O cinema da testosterona de Bay dá ainda sinais que se atualiza aos novos tempos de diversidade: um dos agentes do FBI tem um relacionamento homoafetivo.


A natureza nos impõe algumas leis irrevogáveis, mas não para Michael Bay. Para ele a Lei da Gravidade simplesmente não existe. Além disso, a energia cinética dos seus veículos em movimento parece desafiar a Física que se conhece. Tudo em nome do espetáculo, e que espetáculo! Algumas das sequências ensandecidas das perseguições (e dos tiroteios também) são no mais das vezes empolgantes. A utilização de drones nas tomadas está cada vez mais desenvolvida, e o diretor faz um excelente trabalho utilizando esta técnica de captação do movimento real.

A edição frenética e a câmera instável também estão presentes, um cacoete que Michael Bay trouxe dos diversos videoclipes musicais que dirigiu antes de entrar para a carreira de diretor de cinema. Nestes aspectos visuais Bay traz alguns traços de semelhança com o trabalho do precocemente morto Tony Scott, que tinha o hábito (amuleto?) de utilizar um surrado boné rosado durante as filmagens. Curioso que em Ambulância um dos personagens (líder da equipe do FBI) utiliza também um surrado boné com esta cor. Caso tenha sido uma homenagem intencional, foi bem-vinda.


Ambulância – Um Dia de Crime não reinventa a roda, mas dá fôlego para um gênero de filme de ação que parecia não empolgar mais as plateias pela repetição ad infinitum da fórmula (está aí a franquia Velozes & Furiosos, testando os limites da paciência do público). Aqui estão, lado a lado, o melhor e o pior de Michael Bay. Ao equilibrar-se entre a megalomania e a pieguice, ele até se permite a fazer piadinhas autorreferentes com dois de seus maiores sucessos, A Rocha e Os Bad Boys. Agora, vamos aguardar seu novo projeto, uma ficção científica chamada Robopocalypse.

Assista ao trailer: Ambulância – Um Dia de Crime


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


quarta-feira, 9 de março de 2022

“Belfast”: crônica irlandesa


A utilização das cores, ou sua ausência, é uma decisão estética que prenuncia a proposta memorialista de Belfast (Belfast, 2022) de Kenneth Branagh. O exercício de estilo se evidencia já na abertura com os planos aéreos da colorida capital da Irlanda do Norte nos dias atuais. Na sequência ocorre uma transição, as cores desbotam e retornam ao básico preto e branco. Num passe de mágica da edição somos transportados para o passado. Mais precisamente a Belfast de 1969, quando o realizador tinha apenas nove anos. A cidade passa a ser então apenas cenário, pois o protagonismo será do seu pequeno alter ego, Buddy (Jude Hill). Será sob seus olhos que seremos testemunhas de um doce e singelo acerto de contas com as memórias afetivas de Branagh. E que maneira melhor para um artista do audiovisual fazer isto senão através de um filme de recorte nostálgico?

À sua maneira Kenneth Branagh faz de Belfast um Amarcord (Fellini), um Roma (Cuarón), um Os Esquecidos (Truffaut) para chamar de seu. A referência não é gratuita, pois o cinema, de modo geral, está muito presente na crônica por meio das memórias dos filmes que Buddy assiste na TV (sempre em preto e branco) ou nas salas de exibição (sempre coloridos). Naquela época Belfast – e a Irlanda de modo geral – vivia tempos de guerra civil com os constantes embates entre protestantes e católicos.



No meio deste conflito encontramos pela primeira vez o pequeno Buddy. No caso específico, literalmente. Enquanto brincava na até então tranquila rua na frente de casa, em um bairro proletário dos subúrbios da cidade, o garoto vê, para seu espanto genuíno, uma guerra ser deflagrada bem na frente dos seus olhos. Em um elegante giro de 360º (tipo Cidade de Deus) a câmera identifica todo o entorno do personagem até assumirmos seu ponto de vista. Um bando de ativistas protestantes invade a rua e barbariza geral com bombas e tiros a quietude daquela gente, exigindo a retirada imediata de todos os católicos da região. Este episódio de violência vai afetar e determinar os destinos de Buddy e sua família a partir de então.


Para o garoto o conflito é apenas um acontecimento chato, que atrapalha as brincadeiras de rua devido às barricadas que os vizinhos do bairro montam nas esquinas para não serem novamente surpreendidos pelos ataques. Parcialmente alheio, ou ao menos sem a compreensão total do que está ocorrendo, Buddy na verdade está mais interessado nos filmes, no despertar do olhar para as garotas, nos chocolates surrupiados do armazém da esquina e nos papos com seus amorosos avós (Ciarán Hinds e Judi Dench, espetaculares). Em casa vive num lar com pais separados – não pelo casamento - mas pelas condições de trabalho. O pai (Jamie Dornan) trabalha em outra cidade e passa longas temporadas longe de casa. A mãe (Caitriona Balfe) assume a gestão da família, dos filhos, da sobrevivência em meio aos conflitos e das dívidas com o banco. Tudo isto leva a um ponto de inflexão que exigirá uma difícil decisão para a família: mudar de cidade para buscar melhores condições de vida, deixando para trás suas raízes culturais e afetivas, ou ficar lutando para tentar mudar uma realidade que ameaça o futuro dos filhos.


Tudo é narrado por Branagh de forma sincera, honesta e afetuosa, sem revelar dor excessiva. A guerra, o desemprego e as lutas religiosas são meros panos de fundo quando vistos pelos olhos inocentes de uma criança. O roteiro (do próprio diretor) opta por captar apenas o lado alegre da vida, apesar da realidade circundante eventualmente não ser um mar de rosas. Não é exatamente uma fuga da realidade, mas uma forma humanizada de resgatar o passado, como a nos dizer que, apesar de tudo, “éramos felizes e não sabíamos”.


Formalmente belo e sedutor, Belfast propõe uma visão humanizada – mas idealizada e romântica - de um momento decisivo da história da Irlanda. Não é assim que funcionam nossas reminiscências? Contamos as melhores partes e deixamos as dores para trás.  O longa representa também uma bem-vinda retomada de Kenneth Branagh aos filmes mais autorais. Nos últimos tempos ele vinha se especializando em ser um artesão de luxo de Hollywood realizando uma série de projetos grandiosos sob encomenda para os grandes estúdios, que procuram o verniz de um diretor de prestígio para comandar grandes filmes populares (Thor, Cinderela, Artemis Fowl). No início de carreira chegou a ser chamado de “novo Laurence Olivier” por dirigir e estrelar com grande sucesso uma versão de Henrique V em 1989. Que este reencontro de Branagh com o passado em Belfast sirva para reorientar sua carreira para novos rumos.

Assista ao trailer: Belfast

 

Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


quarta-feira, 2 de março de 2022

“Batman”: mais herói, menos super


O Halloween, o Carnaval dos países anglo-saxônicos, é aquela celebração pública onde somos autorizados a vestir uma fantasia e colocar uma máscara para interpretar um papel diferente daquele que vivemos no cotidiano. Não é a toa que o novo Batman (The Batman), recriado por Matt Reeves (Cloverfield – Monstro, Deixe-me Entrar e Planeta dos Macacos – O Confronto), inicie justamente em um dia 31 de outubro, Dia das Bruxas. Os mascarados, heróis e vilões, saem das sombras e barbarizam numa soturna Gotham City. Os primeiros minutos da nova aventura do cavaleiro das trevas já dão a senha: esqueça tudo que você já viu do Batman. Inicia aqui uma Nova Era para as adaptações cinematográficas do personagem.

Após uma dezena de encarnações em diferentes filmes, com diversas interpretações e distintas estéticas, tudo leva a crer que o Batman de 2022 tenha enfim chegado ao tão desejado estado da arte almejado pela Warner / DC. Com direito a bônus. O filme ainda possui potencial para disputar as estatuetas do Oscar no ano que vem, ainda que tenha sido lançado cedo demais, pois as indicações só começam a esquentar e definir-se a partir de outubro. Portanto, a Warner terá que manter o hype por vários meses.


Quando o novo projeto de uma adaptação de Batman foi anunciado há poucos anos, houve forte manifestação contrária dos fãs mais radicais, essencialmente preconceituosa, que criticaram a escolha de Robert Pattinson para substituir Christian Bale no papel de Bruce Wayne / Batman. O receio era que o forte recall de Pattinson como o frágil e insosso vampiro da franquia Crepúsculo poderia comprometer a credibilidade do personagem. Mas, com o filme na tela, a desconfiança evaporou, como se nunca tivesse existido. Pattinson encontrou o tom adequado para interpretar o Batman fatalista e amargurado proposto por Matt Reeves.

Isto no leva a outro ponto de observação. Desta vez Batman é efetivamente o protagonista que conduz a história, acompanhamos essencialmente o ponto de vista do herói, e não dos vilões, como estava se tornando certa tendência nas encarnações anteriores. Mas do que se trata este novo Batman sob o comando de Reeves? Basicamente o que temos é uma história de caça ao assassino, o mote elementar das histórias policiais de investigação. O que, convenhamos, faz total sentido com o cânone original do herói mascarado. Afinal, o homem-morcego surgiu no mundo dos quadrinhos em uma publicação chamada “Detective Comics” em 1939, e logo passou a ser conhecido como o “Melhor Detetive do Mundo” no universo das HQs. Portanto, estamos diante de um retorno à essência do personagem, um resgate de identidade.


Localizado no segundo ano após o surgimento de Batman como vigilante das ruas de Gotham City, o filme nos mostra um Bruce Wayne recluso, refugiado em sua gótica mansão. Seus poucos contatos são o ajudante de ordens, Alfred Pennyworth (Andy Serkis), e o Tenente James Gordon (Jeffrey Wright). Quando um sádico assassino serial tem como alvo a elite política da cidade, uma série de mensagens enigmáticas leva o “maior detetive do mundo” para o centro das investigações no submundo corrupto da cidade. Na jornada ele encontra personagens como Selina Kyle, também conhecida como Mulher-Gato (Zoë Kravitz), Oswald Cobblepot / Pinguim (Colin Farrell), Carmine Falcone (John Turturro) e Edward Nashton, conhecido como o Charada (Paul Dano). Batman precisa desmascarar o(s) culpado(s) e fazer justiça ao abuso de poder e à corrupção que há muito tempo assola Gotham.

Um fato flagrante que salta aos olhos neste novo Batman é a utilização comedida do CGI, o que resulta em um personagem e uma narrativa mais orgânica. O conceito de low tech também se manifesta nas bat-gadgets. O carro do Batman está mais para um Mustang tunado e a moto é praticamente convencional, bem distante da visão altamente tecnológica que Christopher Nolan mostrou na sua trilogia com naves sofisticadas, supercarros e motos com design inovador. Então, estamos diante de um Batman mais pé no chão. O contato com o chamado mundo real que vivemos é ainda espertamente reforçada com a utilização de uma canção do Nirvana que pontua o filme e cujas primeiras notas (rearranjadas pelo autor da trilha sonora, Michael Giacchino) são acordes que assinam a presença do herói mascarado. Por fim, um destaque para a maravilhosa paleta de cores do fotógrafo Greig Fraser (do recente Duna) que inclui o vermelho neon, sem comprometer o aspecto soturno e pesado da direção de arte, que por vezes nos remete a Seven de David Fincher, não por acaso um filme sobre um assassino serial.


Diferente da imensa maioria dos filmes inspirados em quadrinhos o Batman de Reeves não sucumbe à urgência de uma narrativa de caráter pop, pois tem sempre algo um tanto mais consistente a nos contar. O andamento é ritmado, pausado, expandido. Dá o tempo necessário de reflexão ao expectador e assegura robustez à construção do protagonista, com suas motivações, seus vacilos, sua ação cerebral e suas interações pessoais. Claro, sem abrir de das necessárias sequências pontuais de ação (sem excesso), afinal, trata-se de uma adaptação de quadrinhos para o cinema, e a base de fãs precisa ser contemplada com o espetáculo.


Estamos diante de um ponto de virada nas adaptações de quadrinhos? Difícil afirmar, mas a amostra é promissora. O que podemos sim reconhecer é que houve uma dose de ousadia da DC em explorar novas possibilidades e finalmente dar uma cara própria para seus filmes de (super) heróis. Com Batman (cujo título no Brasil não leva o artigo “O”) a DC ganha autoridade e personalidade com uma muito bem sucedida reinterpretação do morcego mascarado.

Assista ao trailer: Batman


Jorge Ghiorzi

Membro da ACCIRS


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Barfly – Condenados Pelo Vício


     

por Alexandre Derlam

 

Barfly – Condenados Pelo Vício


- Mas o que tu quer com isso?

Aquela pergunta direta, objetiva e nada insinuante foi feita por meu irmão.

Se bem me lembro, lá no começo dos anos 90. E o alvo do questionamento era o meu interesse e a verdadeira idolatria pelo filme Barfly. Houve um ano em que dediquei boa parte de meu tempo no feriado entre natal e ano novo, vendo e revendo trechos do filme. Sobre o que vou falar agora, eu dedico aos mais experientes. Eu tinha uma daquelas fitas VHS e havia conseguido gravar o filme completo da televisão com o vídeo cassete. Além disso, havia também as locadoras. E se podia locar a fita original. Com mais qualidade. Era o que tínhamos e resolvia.

Agora se você ainda não conhece ou não está lembrando de Barfly – Condenados Pelo Vício (1987), a direção é do francês  Barbet Schroeder, protagonizado por Mickey Rourke e Faye Dunaway, com produção de Francis Ford Copolla e roteiro assinado por Charles Bukowski. Saiba que Barfly é o filme que escolhi para dar início a essa resenha mensal aqui no espaço “Os Menores Filmes da Minha Vida”. E sobram motivos para essa escolha. Mas calma. Antes que alguém possa entender mal, eu desejo esclarecer o que motivou o nome da sessão.


Escolhi o termo “menores” para este espaço porque vamos tratar de filmes que jamais serão óbvios ou desinteressantes. Mas sim em sua grande parte desconhecidos, ou desvalorizados ou ainda considerados malditos, herméticos... O que for. Outra coisa; e que fique bem clara: jamais um filme com orçamento de três milhões de dólares poderá ser taxado como menor. E já falando em qualidade: os diálogos e pensamentos reverberam com uma potência e sonoridade extrema e convincente, vinda das ruas. Fiel ao estilo inconfundível de Bukowski.

- Algumas pessoas nunca enlouquecem. Que vida horrível eles devem levar? Nós todos estamos em uma espécie de inferno. E o hospício é o único lugar onde as pessoas sabem que estão num inferno.

Sobre o filme. Iniciando pela sua atmosfera marginal, obscena sofrida e doida. Considerando todo seu conjunto de personagens, lugares, situações, todos os seus tipos estranhos, as ruas, bêbados, prostitutas, vadios, transexuais, desiludidos e derrotados. Toda aquela gente perdida. Ou como Henry Chinaski - escritor, alcoólatra, amante de música clássica, alter ego de Charles Bukowski, nos lembra:

- Qualquer um pode ser sóbrio. Mas para ser um bêbado é preciso talento e persistência. Afinal ninguém sofre como os pobres.


Agora vamos à história. Logo após uma câmera em movimento, sair das ruas e adentrar o interior de um bar vazio, com um barman entretetido lendo um jornal, surge um trôpego Henry, assim de supetão, em meio a uma estridente briga nos fundos. Cuspindo sangue pela boca. Com expressão raivosa e letal.

- Implorar pra você seria como chupar um pinto pela eternidade!

Palavras praticamente vomitadas por ele em resposta ao seu adversário. Eddie com quem travará duelos por toda a película. Alguns socos e tropeções depois e lá está Henry caído e acabado. Na sarjeta. E como ele combina com aquele lugar. Pronto. Temos tudo que precisamos para o que virá a seguir. Vamos acompanhar Henry durante as noites bebendo e arrumando briga por bares de Los Angeles. Em uma delas, ele conhece Wanda e logo vão morar juntos. Após traições e bebedeiras, os dois acabam se acertando.


Se Rourke personifica com brilho, carisma e na dose certa para aquela canastrice contagiante de escritor maldito, Faye Dunaway é dona de um timming preciso para compor Wanda. Depressiva, insegura, amarga e reflexiva, ela dá o tom perfeito para eles formarem um par e tanto. Henry atua com movimentos, gestos, presença física e caretas, ela concentra sua força dramática no olhar, na atitude conseguindo aliar drama e comédia em uma sincronização exemplar. Ela só precisa de um olhar, uma baforada de cigarro para nos ganhar. Mickey Rourke cresce nas cenas dos poemas e versos. Em minha opinião, estes são os melhores momentos da sua atuação. E há de se destacar também o texto e a direção. O velho Buck caprichou nos diálogos. E a condução de Barbet Schroeder vai do lirismo ao delírio. Obtendo um bom conjunto como resultado final. O jogo e a utilização da trilha sonora colabora muito para as nossas sensações e experiências. Ouvimos trilhas deliciosas de jazz, blues e música clássica através de doses bem generosas. Fantasias alcoólicas se misturam a histórias rudes e ríspidas. O filme consegue apresentar até delírios cômicos sem perder uma indisfarçável ternura pelos excluídos e perdedores.

O que mais atrai na obra é justamente a presença constante de um humor desconcertante, repleto por desolação, tomado de cinismo autodefensivo, de egoísmo, senso de ridículo e irreverente compaixão. Barfly vale cada segundo de sua projeção. Justamente por conseguir obter e revelar altas doses de humanidade e poesia. Presente em quartos imundos, bares enfumaçados e insanidade corrosiva. Uma jornada original e maluca pelo universo caótico e muito real do velho Buck. Há diálogos memoráveis e a linguagem reúne violência ao captar as agruras e devaneios de perdedores e excluídos. Uma espécie de aura iluminada por transgressão, lirismo e loucura. Um copo bem cheio. Que jamais se esvazia.