quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

O Homem do Saco: lenda popular reciclada

Uma possível surpresa para aqueles que assistirem O Homem do Saco (Bagman, 2024) é descobrir que essa não é uma lenda exclusivamente brasileira. Por aqui essa figura sinistra que apavora o imaginário infantil é mais conhecida com o nome de Velho do Saco, uma espécie de andarilho que recolhe as crianças malcriadas e desobedientes as colocando em um saco e levando para local desconhecido. O fato é que este personagem simbólico está presente na cultura popular de muitos países, com predominância naqueles de língua latina, com pequenas variações nas mitologias locais. 

Então neste O Homem do Saco temos uma versão de como esta figura é tratada nas terras do Tio Sam. Nesta (inexistente) disputa de versões estamos em larga vantagem. O nosso tradicional Velho do Saco raiz é muito mais apavorante do que esse tal de Bagman, com sua sacola de couro com zíper. A direção é do cineasta britânico Colm McCarthy, que possui grande experiência na TV onde dirigiu vários episódios para séries como Doctor Who, Sherlock, Peaky Blinders e Black Mirror.



A história que assombra as crianças ganha vida própria em O Homem do Saco. A entidade das sombras que povoa os pesadelos de várias gerações passa a perseguir uma família. Tudo começa no passado quando o pequeno Patrick vive uma experiência perturbadora que deixa traumas que o acompanham por toda a vida. Anos, depois, já adulto, Patrick (Sam Claflin) está casado, com um filho. Após retornar para a cidade natal, para cuidar de empresa madeireira que foi de seu pai, Patrick, sua esposa e filho passam a ser perturbados por uma entidade misteriosa que ronda a casa onde moram. Será o Homem do Saco que retornou para acertar as contas do passado? 

Para esta versão cinematográfica de uma lenda popular o roteiro de O Homem do Saco incorporou alguns elementos que não fazem parte da mitologia original atribuída à tradição do personagem. Esta proposta na verdade acabou por enfraquecer o conteúdo de terror que é inerente ao mito. Há claramente um propósito de trabalhar o personagem Homem do Saco como um personagem pop, com potencial para assegurar futuras sequências. Falhou enormemente. O filme é raso, recheado de clichês e uso demasiado do truque do jump scares, aqueles sustos repentinos que pretendem fazer a plateia saltar da poltrona.


O filme pretende acrescentar camadas de complexidade em uma história que não é nada menos que banal, já vista tantas vezes, mas aqui executada com carência absoluta de criatividade. A narrativa coloca gratuitamente no mesmo saco (desculpe o trocadilho involuntário!) algumas linhas narrativas que não se comunicam nem se justificam. O fato é que o filme não convence em momento algum. Como diziam nossas avós, “saco vazio não para em pé”. Sábias palavras. O único saco que O Homem do Saco enche é o da plateia.

Assista ao trailer: O Homem do Saco


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A Verdadeira Dor: jornada interior


O poder da memória e sua capacidade de moldar a trajetória das nossas vidas é a chave que deflagra o processo transformador dos personagens centrais de A Verdadeira Dor (A Real Pain, 2024). O filme vem sendo apontado (com toda justiça) como o melhor trabalho de Jesse Eisenberg como roteirista e diretor, com direito a duas indicações ao Oscar 2025: Roteiro e Ator coadjuvante. Mais conhecido do grande público em sua faceta ator, com papéis marcantes como Mark Zuckerberg, em A Rede Social, e Lex Luthor, em Batman vs. Superman: O Origem da Justiça, Jesse Eisenberg conquista, com este filme, um novo status como artista autoral na nova formatação da indústria de Hollywood. 

O elemento catalisador da narrativa é o Holocausto, evocado pela memória da recentemente falecida avó dos primos David (Eisenberg) e Benji (Kieran Culkin). Para reverenciar a figura da avó, uma sobrevivente dos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial, os dois partem em uma excursão para a Polônia. Lá visitam marcos históricos da guerra, pontos turísticos relacionados à sua ascendência familiar, um campo de concentração e também conhecem a casa onde a avó havia morado no passado distante, o principal objetivo da viagem da dupla.


A Verdadeira Dor se configura como um clássico road movie, o filme de estrada, de viagem, repleto de experiências sensoriais e psicológicas que funcionam como gatilho para a modificação da visão de mundo dos personagens. Filmes desta natureza ficam essencialmente amparados no arco narrativo e na jornada interior, exatamente os processos que levam David e Benji a questionarem seu passado e as perspectivas de futuro. Deslocados em terra estranha os dois se confrontam com suas inquietações interiores e revelam abertamente que possuem personalidades antagônicas que se complementam. David é o cara metódico, pai de família, com perfil retraído que não demonstra seus sentimentos. Benji é completamente o oposto. Ele é o cara extrovertido, envolvente, sem freios na língua, sem medo de expressar o que pensa e sente, aquele tipo de pessoa que “preenche” um ambiente com a simples presença. Ou seja, ambos são as duas faces de uma mesma moeda, que anseiam recuperar as conexões que já tiveram no passado.


A viagem à Polônia conscientiza David e Benji a respeito do verdadeiro papel que ocupam no mundo: dois jovens judeus, brancos e privilegiados. Nesta condição mostram-se a princípio anestesiados para as verdadeiras dores do mundo. E que dor coletiva maior haveria além do Holocausto? Este é o fantasma que assombra o passado dos protagonistas, descendentes diretos da tragédia. Apesar desta abordagem, não espere um drama pesado. Surpreenda-se com A Verdadeira Dor que trata do assunto com muita sensibilidade, alguma irreverencia e um pouco de humor. Os personagens centrais são desfuncionais, cada um a sua maneira. Além da parceria e cumplicidade, o principal sentimento que realmente compartilham é o da culpa que carregam por um passado que realmente não viveram ou sequer presenciaram, mas determinante para o que são hoje. Um trauma recriado apenas pela lembrança. 

Além do roteiro muito bem construído, com diálogos espirituosos, que fogem da melancolia barata, o maior destaque de A Verdadeira Dor é o desempenho de Kieran Culkin, nada menos que exuberante e cativante. Seu personagem, com segredos e dores profundas, é extremamente verossímil e realista apesar das complexidades que traz dentro de si.


A Verdadeira Dor é aquele tipo de filme adulto médio – não pelas qualidades, mas pelo alcance da sua visibilidade – que a indústria de Hollywood parece ter esquecido de incentivar. Há dois anos Os Rejeitados de Alexandre Payne ocupou este posto. O filme de Jesse Eisenberg possui uma superfície de simplicidade, mas o que efetivamente entrega é uma história profunda de luto e redenção. Uma joia rara que você começa a assistir com um sorriso no rosto e encerra com um nó na garganta.

Assista ao trailer: A Verdadeira Dor


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Conclave: habemus papam

 

O poder de imaginação proporcionado pelo cinema permite criar mundos inexistentes, reproduzir mundos conhecidos e, acima de tudo, especular sobre mundos inacessíveis, ainda que reais. Neste último caso entra em cena a especulação, baseada em fatos parciais, cujas lacunas são preenchidas pelo o que chamamos de ficção. Um ótimo exemplo desta capacidade especulativa da sétima arte é o thriller dramático Conclave que se passa inteiramente no ambiente intramuros do Vaticano durante o processo de votação dos cardeais para a escolha do novo papa para liderar a Igreja Católica. Sabe-se que este processo é extremamente sigiloso, realizado sob rígidas regras de compliance que proíbem a divulgação pública de alguns de seus ritos secretos. Portanto, resta ao cinema – e também à literatura - conjecturar com o salvo-conduto da liberdade criativa. Baseado no livro de Robert Harris lançado em 2016, Conclave foi dirigido pelo alemão Edward Berger, que ganhou destaque mundial há três anos com o drama de guerra Nada de Novo no Front.

A vacância do trono papal se dá imediatamente na primeira sequência de Conclave. A partir da morte do sumo pontífice iniciam todos os procedimentos para o funeral e posterior organização do encontro dos cardeais, vindos de diversas partes do mundo diretamente para o Vaticano, com o objetivo de promover a votação para a escolha de um novo papa. O responsável pela organização e supervisão do conclave é o cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes). Isolados do mundo exterior os cardeais ficam confinados na Capela Sistina, submetidos a várias rodadas de votação, até que se defina por unanimidade o eleito para assumir o trono.

O que em tese seria enfadonho como narrativa cinematográfica, ganha contornos de uma emocionante trama de suspense e thriller de investigação quando os disputantes ao pleito entram no jogo pesado e obscuro de mentiras, segredos comprometedores e destruição de reputações dos favoritos. No centro das ações está a figura do cardeal Lawrence que deve conduzir um desgastante processo eleitoral com serenidade e justiça, ainda que segredos inconfessáveis tenham chegado ao seu conhecimento. Dividido entre verdades inconvenientes e a defesa da credibilidade da Igreja Católica perante os fiéis, ele carrega o peso de uma decisão que tortura sua consciência.

Como seria de se esperar, o filme tem sido criticado pelo Vaticano por mostrar uma face negativa da Igreja Católica, marcada por corrupção, vaidade e ambição. O mais provável é que o que realmente incomodou as lideranças religiosas foi a inserção de uma visão progressista em oposição ao conservadorismo, representados por dois cardeais postulantes ao cargo de papa que abertamente apresentam ideias antagônicas. Sabidamente esta é uma pauta que a Igreja Católica não deseja enfrentar. Há ainda lançadas ao longo do roteiro – enxuto e brilhante – outras questões que costumam forçar os limites tradicionais dos dogmas da igreja, como diversidade, inclusão e sacerdócio feminino.

Conclave é um filme contido, de pouca ação, e surpreendente ao incluir em dado momento um inesperado momento explosivo. Toda a construção dramática se dá mediante diálogos precisos e contextualizados acompanhados por uma edição ao mesmo tempo elegante e dinâmica. O desenvolvimento da trama mantém o permanente interesse ao trabalhar a tensão do mistério como um elemento catalizador.

O personagem do cardeal Lawrence, ao investigar um segredo que se esconde nas sombras do Vaticano, em certa medida emula um misto de Hercule Poirot (o clássico investigador criado por Agatha Christie) e Robert Langdon, o professor especialista em simbologia criado por Dan Brown (O Código Da Vinci), interpretado nas telas por Tom Hanks. A propósito, uma das aventuras de Langdon, Anjos e Demônios, se passa justamente no Vaticano com suas tramas palacianas. O desempenho de Ralph Fiennes como o cardeal “detetive” é um dos destaques incontestáveis do filme de Edward Berger. Após alguns anos fora do radar das grandes produções de destaque, aqui Fiennes entrega uma das melhores interpretações da sua carreira.

Conclave é uma realização deslumbrante que trata com ousadia e rigor temas pertinentes de uma Igreja Católica que se debate entre a tradição e a modernidade. Um empolgante thriller de suspense religioso que se movimenta sinuosamente pelos espaços do confinamento com provações que questionam a fé, a justiça e a verdade.

Assista ao trailer: Conclave


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Babygirl: desejo e paixão

 

A utilização do sexo como instrumento de poder e submissão é um dos fatos da vida utilizado com frequência na ficção da literatura e do cinema. Está aí, para comprovar uma referência exemplar, Ligações Perigosas, o romance de Pierre Choderlos de Laclos e a versão cinematográfica (dentre tantas outras) de Stephen Frears em 1988. Os temas fulcrais da narrativa da obra clássica da literatura francesa estão presentes como a matéria prima e gatilho propulsor do misto de drama e thriller erótico Babygirl, estrelado por Nicole Kidman em ousado e transgressor desempenho, levando-se em conta o status da estrela e o estágio atual da sua carreira. O papel foi um desafio ao qual a atriz se entregou completamente.


Subvertendo uma lógica recorrente em diversos filmes, desta vez a posição de poder é exercida por uma mulher. Esta diferença fundamental no equilíbrio de poder proporciona uma nova dinâmica nas relações, sejam elas corporativas, conjugais, amorosas ou sexuais. A protagonista é uma executiva bem-sucedida, Romy (Nicole Kidman), CEO de uma grande empresa de logística de e-commerce. Sua vida é dividida entre as demandas crescentes na empresa e as demandas da vida privada em família, onde vive um casamento de pouco desejo e paixão pelo marido (Antonio Banderas). As perspectivas de Romy mudam radicalmente quando um jovem estagiário da empresa atrai sua atenção. Colocando em risco sua carreira e sua família Romy embarca em um tórrido romance extraconjugal com o jovem Samuel (Harris Dickinson). O caso, que inicialmente funcionava como inocente e furtiva válvula de escape para exercitar fetiches e fantasias de Romy, aos poucos se acentua a ponto de tornar-se um escândalo de grandes proporções. Estaria havendo entre os dois um caso clássico de assédio no ambiente corporativo? Para a diretora de Babygirl, Halina Reijn, esta questão não possui uma resposta pronta e objetiva.


Relações amorosas com potencial explosivo no ambiente corporativo já foram exploradas em diversos thrillers eróticos. Um deles, clássico dos anos 90, é Assédio Sexual, dirigido por Barry Levinson, com o qual Babygirl permite um paralelismo, ainda que imperfeito. No filme de 1994 um executivo (Michael Douglas) era acusado de assédio no ambiente de trabalho. Ao fim descobre-se que tudo não passou de uma conspiração empresarial onde a verdadeira vítima era o próprio executivo, manipulado pela ambiciosa profissional (Demi Moore) em busca de uma promoção rumo ao topo da hierarquia corporativa. Em Babygirl o protagonismo é da figura feminina, no entanto a condição de vítima e algoz desta vez é algo difusa pelo fato da relação entre ambos ser claramente consentida e incentivada. Por propósitos distintos, é verdade.


Babygirl não se limita ao ambiente corporativo, indo além das meras tramas de ambição profissional. Seu olhar está direcionado para as pulsões vitais da personagem de Nicole Kidman. Exemplos explícitos desta perspectiva estão dados no início e no fim do filme. Babygirl abre com a sequência de um clímax sexual fake e encerra com um outro clímax, desta vez verdadeiro e prazeroso. Entre estes dois pontos Romy percorre uma jornada em busca do orgasmo perfeito. Babygirl é um filme sexy, porém não é necessariamente sedutor. Ele trabalha no registro da fantasia, dos jogos sexuais que beiram ao sadomasoquismo, mas o prazer visível na superfície da relação dos dois amantes esconde na verdade uma urgência crescente, constantemente ameaçados por um explosivo desfecho.


O filme de Halina Reijn é, na maior parte do tempo, um filme moralmente ambíguo. Em diversas passagens demonstra uma intenção de criticar uma certa hipocrisia social dos ambientes supostamente esclarecidos, seja no âmbito familiar ou empresarial. No entanto, fica no meio do caminho ao não aprofundar subtramas e personagens com potencial, como o marido e a filha. Neste sentido o filme não oferece grandes complexidades, apenas se contenta com o verniz de uma ousadia pasteurizada e bem fotografada. Babygirl se apresenta como uma espécie de Cinquenta Tons de Cinza com o bônus de ter sido realizado com um pouco mais de ambição e exigir mais as sinapses do público.

Assista ao trailer: Babygirl


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Nosferatu: a sedução do horror

 

Um dos clássicos mais icônicos do Cinema Expressionista alemão, Nosferatu foi realizado por F. W. Murnau em 1922. O roteiro foi baseado no romance “Drácula” (1897) de Bram Stoker, no entanto, por problemas legais – a viúva de Stoker negou a venda dos direitos quando a produção já estava em andamento - o filme ganhou um novo título e o nome dos personagens foi alterado. O conde Drácula foi rebatizado como conde Orlok, por exemplo. A primeira versão cinematográfica oficial só chegaria às telas em 1931, no longa-metragem “Drácula”, produzido pela Universal em Hollywood com Bela Lugosi no papel-título. Quase 60 anos depois do Nosferatu original, em 1979 o diretor alemão Werner Herzog, conterrâneo de Murnau, lançou uma sóbria e soturna refilmagem estrelada por Klaus Kinski, Isabelle Adjani e Bruno Ganz, que no Brasil ganhou o subtítulo de O Vampiro da Noite

O vampiro que nunca morre renasce mais uma vez no cinema, pouco mais de um século após a primeira aparição em celuloide. A nova versão traz a assinatura de Robert Eggers que já mostrou afinidade com o universo do horror e da fantasia fantástica em filmes como A Bruxa, O Farol e O Homem do Norte. O primeiro ponto a se ressaltar aqui é que Nosferatu (2024) não é um simples remake em grande escala do clássico do cinema mudo. Trata-se mais de uma releitura cheia de imaginação do sombrio território das sombras – já conhecido à exaustão - temperado com altas doses de sedução e abordagem erótica que aflora à pele com calafrios e desejo. 


O entrecho da trama é bastante conhecido. Na Alemanha do século XIX o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult) viaja até o isolado castelo do conde Orlock (Bill Skarsgard), localizado na Transilvânia, para fechar o contrato de venda de uma mansão na fictícia Wisborg, cidade portuária alemã onde mora. O objetivo do conde é viver próximo da sua paixão, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), esposa de Thomas. A chegada do amaldiçoado conde vampiro em busca da amada traz também o caos e o horror para a população.

Nesta versão o rigorismo formal de Eggers presta um tributo ao Expressionismo alemão ao trabalhar os elementos característicos do movimento: luzes, sombras, contrastes e distorções espaciais na cenografia. Além do que, como reverência definitiva ao filme de 1922, ainda preserva os nomes dos personagens, desconsiderando os nomes utilizados no romance de Bram Stoker. Não temos, portanto, Drácula, Jonathan, Mina, Van Helsing ou Renfield. 


Nosferatu transita entre o mundo das sombras, manifesto por recorrentes pesadelos, e o mundo real das coisas, onde o Mal assume o corpo físico de Orlok. O desequilíbrio destes mundos inicia quando Jonathan acessa o território do conde amaldiçoado, quase como concedendo uma permissão para a criatura invadir o universo dos pobres mortais. Há neste aspecto uma espécie de permuta de posições, como houvesse um troca de identidades. O ponto comum deste espelhamento é a figura de Ellen, objeto do desejo de ambos. Estabelece-se então um perigoso e mortal triângulo amoroso. O roteiro concede uma expansão da trama original propondo novas camadas de complexidades nas relações do trio de protagonistas. 

Usualmente interpretado como uma história amor que chega aos limites do folhetinesco em versões anteriores da obra de Bram Stoker, além de outras representações dos vampiros em versões pop da indústria cultural, neste Nosferatu a abordagem vai além da mera paixão romântica ao assumir uma conotação abertamente sexual com apelo carnal. Estamos, portanto, diante de uma história de adultério, sexy, visceral e extrema. O terreno explorado aqui é o do desejo e da paixão no contexto de uma história de terror gótico. O amor tóxico de Orlok por sua amada revela uma parte desconhecida da natureza da personalidade de Ellen, que horrorizada se divide entre a repulsa e a entrega. Somente um derradeiro orgasmo visceral pode dar conta do paradoxo que invade seu coração.  


A imagem da figura do insepulto Nosferatu / Orlok é uma das mais conhecidas da história do cinema de horror. Reinterpretar esteticamente este personagem clássico certamente foi um dos maiores desafios de Robert Eggers. A decisão foi reinterpretar na totalidade o visual do vampiro. Não há nada de beleza sedutora aristocrática, nem pele clara e smokings alinhados nesta nova representação. A lógica da concepção é de que se trata essencialmente de um cadáver, portanto, carnes podres, inchadas e repulsivas fazem sentido na composição do personagem. Nesta construção o visual do conde assume mais um aspecto demoníaco do que propriamente vampiresco. Completa o quadro a cavernosa voz de Orlok que traz ecos inconfundíveis do sotaque gutural característico da inflexão de Bela Lugosi (com um “r” muito carregado), fruto da ascendência romena e conhecimento parcial da língua inglesa. O resultado é uma espécie de Darth Vader das trevas.
  

Nosferatu arrebata os sentidos com uma versão exuberante de narrativa sólida e consistente. É em igual medida assustador e sedutor em seu mergulho profundo nas sombras da mente de seus personagens protagonistas. Ao explorar novos caminhos, inexistentes tanto na obra original quanto nas diversas versões cinematográficas, Robert Eggers acerta em todas suas decisões estéticas que elevam o filme a uma condição de produto artístico de excelência.

Assista ao trailer: Nosferatu


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Queer: uma odisseia existencial

 

A temporada de 2024 assinala duas produções dirigidas pelo prolífico diretor italiano Luca Guadagnino. Acredite, ele está com outros 6 (!) projetos em andamento. No primeiro semestre tivemos a estreia do ótimo Rivais, um drama esportivo de poliamor com um trisal de tenistas liderado por Zendaya. Agora, no fechamento do ano, é lançado Queer, estrelado por Daniel Craig, em sua fase pós-007, abandonando definitivamente a persona de James Bond que encarnou por 15 anos. Um ponto comum aproxima estas duas obras de Guadagnino: o sexo utilizado como artifício de sedução, manipulação e poder.

Inspirado no livro homônimo de William S. Burroughs, Queer é um drama histórico, parcialmente biográfico, com alta carga erótica, protagonizado pelo personagem alter ego William Lee, presente em outras obras do autor. Em Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), de David Cronenberg, o mesmo personagem William (Bill) Lee foi interpretado por Peter Weller. Em Queer o alter ego de Burroughs ganha o corpo e a alma de um provocativo Daniel Craig, que entrega uma atuação ousada e desprendida como você nunca viu em nenhum de seus trabalhos anteriores.


A história se passa no México dos anos 50. É lá que vive o expatriado americano William Lee. O filme passa ao largo de uma explicação mais clara da verdadeira razão que o levou a sair dos Estados Unidos. No livro este passado é esclarecido: ele foi dispensado da Marinha, dentre outras razões, por ser usuário de drogas. A trama de Queer segue a vida de Lee que percorre, de bar em bar, os ambientes da comunidade homossexual masculina da cidade, sempre em busca de novas aventuras e parceiros para uma noitada. A vida boêmia de Lee ganha novos contornos quando conhece o jovem Eugene Allerton (Drew Starkey), de orientação sexual inicialmente ambígua, porém abertamente disponível para outras possibilidades. Juntos vivem uma intensa paixão que os levará para uma reveladora viagem pelas florestas equatorianas em busca de experiências sensoriais com drogas alucinógenas. 


A origem literária do material de Queer fica explicitado logo nas sequências iniciais com a exibição de páginas de manuscrito datilografado com trechos da obra. A referência de origem nas letras fica ainda mais explícita quando o roteiro é construído como capítulos intitulados de um livro, recurso utilizado com frequência em muitas produções, a propósito. Esta divisão em capítulos contribui para a construção da trama em dois grandes blocos narrativos, como volumes separados da mesma obra, distintos entre si pela alteração de cenário, cores e significados. O primeiro deles, marcado pela descoberta do corpo, mostra o cotidiano de William Lee em suas interações com a cidade e seus personagens. Aqui a perspectiva é absolutamente hedonista, com uma busca incessante pelo prazer acima de qualquer outro estímulo vital. No segundo bloco, com a viagem de experiências místicas e transcendentais sob os efeitos de erva alucinógena (que não faz parte do livro de Burroughs), Queer assume uma perspectiva existencial. A busca passa a ser a liberação da mente. O arco da jornada de William Lee percorre então os dois princípios básicos e opostos da existência humana, os arquétipos de Eros e Thanatos, as pulsões de Vida e Morte.

Sob o comando de um inspirado Guadagnino, claramente interessado no universo que retrata, um insuspeito Daniel Craig passeia em cena com seu indefectível terno de linho branco, chapéu e óculos de sol em busca de aventuras amorosas. Completando a construção de um personagem descontruído, Lee carrega no coldre junto ao corpo uma pistola onipresente, um objeto de conotação fálica, que não passa de símbolo aleatório de representatividade de poder, reminiscência de um passado do qual não se liberta na totalidade. Em um diálogo confessional e revelador conta que, de alguma maneira, é portador de uma “maldição” hereditária que predestinou sua orientação. 


A viagem por terras estranhas na América do Sul profunda assume contornos bizarros pelos reais propósitos. Os alegados poderes telepáticos do “yage”, ou ayahuasca, é a verdadeira motivação de Lee que deseja ardentemente penetrar na mente de Eugene para descobrir o que ele realmente pensa e sente, pois suspeita que seu amor profundo não é correspondido. A “viagem” proporcionada pelo chá da erva conduz às inquietantes sequências de alucinação, uma experiência psicodélica de transformação que unificam, fundem e distorcem os limites de seus corpos. Tempo e espaço voltam a ser subvertidos no desfecho de Queer. A imagem de William Lee na velhice nos remete ao astronauta solitário de Stanley Kubrick no final de 2001, que mira a si mesmo e sua história derradeira enquanto encara a morte inelutável. O destino dos protagonistas parece comprovar que o mesmo amor que salva pode ser o amor que condena.


Com sua usual ousadia estilística Luca Guadagnino explora com sensibilidade temas fundamentais do ser humano como amor-próprio, solidão e identidade. Estranho e incomum, Queer é um filme inquietante com uma pungente história de amor e luxúria, embriagada de tequila em terras tropicais.

Assista ao trailer: Queer


Jorge Ghiorzi

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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O Conde de Monte Cristo: vingança épica

 

Aparentemente há em curso um revival de adaptações cinematográficas de clássicos da literatura francesa. A novidade é a origem nacionalista destas adaptações. Por décadas Hollywood produziu inúmeras reinterpretações de obras de grandes escritores franceses, muitas delas permanecendo até hoje no imaginário popular como as versões definitivas. A novidade no movimento atual é que as novas adaptações que estão chegando aos cinemas são produzidas na própria França, assegurando desta maneira, além da língua nativa, um olhar mais condizente com o contexto territorial da origem das obras. Assim foi com as duas recentes adaptações de Os Três Mosqueteiros transformados em um díptico com ares de superprodução revisionista por respeitarem a obra original: D’Artagnan e Milady (ambos de 2023). 

Parte da equipe criativa por trás destes dois filmes está de volta com mais um projeto baseado na obra de Alexandre Dumas. A dupla de roteiristas de D’Artagnan e Milady desta vez assume a posição de realizadores. Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte assinam a direção de O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo, 2024). Retomando aquela questão das adaptações norte-americanas, é bastante provável que a adaptação mais popular e presente na mente das pessoas seja a versão de 2002, dirigida por Kevin Reynolds (Robin Hood: O Príncipe dos Ladrões e Waterworld) e estrelada por Jim Caviezel, Guy Pearce e Henry Cavill.


A versão 2024 reforça o caráter de aventura épica que fez a fama do romance de Alexandre Dumas. O filme acompanha Edmond Dantès (Pierre Niney) um jovem marinheiro que sofre uma trágica injustiça no dia de seu casamento. Ele é preso devido a uma conspiração organizada pelos seus supostos amigos, que o acusam de espião aliado a Napoleão Bonaparte. Enclausurado no sinistro Château d’If, Edmond acaba conhecendo no cárcere, como vizinho de cela, um abade que relata uma mirabolante narrativa a respeito de um gigantesco tesouro escondido. Após 14 anos (cerca de uma hora de tempo de tela) Edmond consegue escapar da prisão e parte em busca da fortuna escondida. Torna-se rico e poderoso, porém obstinado em castigar aqueles que o traíram. Reaparece na alta sociedade parisiense como o misterioso e magnífico Conde de Monte Cristo com um único objetivo: vingar-se daqueles que destruíram a sua vida.

Essencialmente O Conde de Monte Cristo é uma história de vingança que transita por três blocos narrativos: injustiça, penitência e redenção. O roteiro bem estruturado permite uma edição dinâmica, ainda que não existam grandes cenas de ação, fator que proporciona a fruição da história por três horas sem grande esforço por parte do espectador. Em termos técnicos e artísticos (fotografia, figurinos, direção de arte) o filme da dupla Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte é um deleite para os olhos e garante um espetáculo em alta escala.


A ardilosa trama de vingança de Edmond relembra, com a devida ressalva, as elaboradas tramas de filmes como Missão Impossível, que envolvem trocas de identidades com personagens dissimuladas que não são exatamente quem parecem ser. O que efetivamente exige uma boa dose de suspensão de descrença por parte da plateia. A diferença fundamental entre as artimanhas de Tom Cruise e a cruzada vingadora de Edmond, além dos 180 anos que as separam, é a elementar ausência da tecnologia. No mais, a motivação, a sagacidade, o ardil e a capacidade de iludir são exatamente iguais. 

O formato aventuresco com grandes subtramas se explica pelo fato de que O Conde de Monte Cristo foi publicado inicialmente no formato de folhetim ao longo de dois anos (1844 a 1846). Os ganchos dramáticos eram uma necessidade da estrutura da obra para garantir o interesse dos leitores ao longo do tempo. Modelo semelhante às atuais telenovelas e séries de TV. Portanto, uma adaptação cinematográfica necessariamente teria de abrir mão parcial ou total de algumas destas tramas paralelas sob pena de tornar inviável dramaturgicamente uma narrativa visual em tempo razoável. Ainda assim, esta versão de 2024 é uma das adaptações mais fiéis da obra original ao respeitar sua essência narrativa, permitindo desta maneira um amplo alcance da totalidade da criação literária de Alexandre Dumas.



Grande e vigoroso, O Conde de Monte Cristo percorre o caminho obstinado da vingança de Edmond com sobriedade e seriedade, sem momentos de alívio cômico (como as versões recentes de Os Três Mosqueteiros) que afastem o propósito da condução da história, que em sua essência foca sempre no destino trágico do protagonista. Bem produzida, bem interpretada e bem dirigida esta versão captura a profundidade emocional do romance entregando para o público contemporâneo a reinterpretação de um clássico.

Assista ao trailer: O Conde de Monte Cristo


Jorge Ghiorzi

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